domingo, 31 de outubro de 2021

L.A. Zombie (EUA/Alemanha, 2010)



O zumbi extraterrestre, que emerge do mar, interpretado pelo astro pornô francês, François Sagat, com seu avantajado falo, pode trazer pessoas mortas de volta à vida - enfiando a parte nas feridas e depois ejaculando sobre o corpo.

O cineasta underground Bruce LaBruce volta a misturar zumbis e pornografia: em seu antecessor Otto; ou Viva Gente Morta(2008), ele cruzou sexo e vísceras de uma forma astuta e embriagante.

L.A. Zombie emoldura a figura do homossexual em um zumbi para retratar não só a maneira monstruosa que parte da sociedade enxerga a homossexualidade, como também para mostrar o vazio existente na busca ensandecida por sexo.


Sangue, entranhas escorrendo e esperma negro ocupam uma proporção considerável do tempo. Assim como as cenas de sexo explícito, que são atrevidas e até longas demais. Mas pela primeira vez zumbi não mata pessoas mas traz os mortos de volta à vida.

A referência ao problema dos sem-teto em Los Angeles é claramente legível. Paradoxal e bastante inteligente: o estrangeiro assume a forma humana e, no entanto, permanece um estranho na sociedade. Nas filmagens da guerrilha na cidade, LaBruce abordou pessoas realmente marginalizadas e as colocou na frente das câmeras.

A metáfora simples, bonita e quase religiosa do sêmen na ferida aberta é como um fenômeno. A fé, a arte e o sexo podem fazer isso idealmente: transmutar os corações e cabeças dos mortos e curá-los de forma vodu milagrosamente.

L.A. Zombie toma forma humana e caminha pelas ruas de Los Angeles, um homem em dor, famoso símbolo do mais profundo desespero. As pessoas estão assistindo. Quando vai à padaria, não consegue pronunciar uma palavra. 


As cenas de crime cheias de sangue e feridas são fotografadas com extrema arte e brilhantismo, como um provocativo anúncio de moda. O interior vermelho profundo, está respingando sangue por toda a parte. Há duas versões do filme, uma de 63min, exibida em Festivais, e outra de 100min que leva o subtítulo HARDCORE e traz as sequências mais escandalosamente explícitas.

sábado, 30 de outubro de 2021

A Hora do Pesadelo 2: A Vingança de Freddy(A Nightmare on Elm Street 2: Freddy's Revenge, EUA, 1985)


Há várias evidências que Jesse(Mark Patton), o protagonista de A Hora do Pesadelo II: A Vingança de Freddy, seja, no mínimo, bissexual. Ele grita como uma garota, ele dança freneticamente e Freddy Krueger(Robert Englund) quer dominá-lo. Quando Jesse começa a ter pesadelos e a agir de forma estranha, seus pais pensam que ele está drogado, mas não têm ideia do que está reservado para seu filho.

A Vingança de Freddy, de Jack Sholder, usa os sonhos como um ponto de partida, além de incorporar a casa icônica da Elm Street, antiga residência da família Thompson e agora vivida pelos Walshes, o adolescente Jesse, sua irmã mais nova(Christie Clark), a mãe preocupada (Hope Lange) e o pai autoritário(Clu Gulager). 


Jesse é o garoto novo na cidade e já está cheio de pesadelos horríveis envolvendo um cara queimado com um suéter vermelho e verde e uma luva com lâminas na mão direita. Sua nova amiga Lisa(Kim Myers) gosta dele, mas ele ainda precisa lidar com o treinador Schneider (Marshall Bell), que gosta de fazer turnês em clubes S&M à noite, e o rival/amigo Grady (Robert Rusler) cuja primeira cena com Jesse envolve puxar suas calças para baixo e lutar com ele no chão.

As coisas ficam estranhas quando Freddy Krueger diz a Jesse “Temos um trabalho especial a fazer. Você tem o corpo, eu tenho o cérebro” antes de rasgar seu próprio crânio e expor um cérebro pulsante. Outras ocorrências incluem o periquito da família enlouquecendo, em um aceno para Os Pássaros(1963), antes de explodir em chamas.


Uma noite, Jesse entra dormindo em um clube gay S&M onde pede uma cerveja. O treinador Schneider o leva de volta para Springwood High e o faz correr na quadra como punição. Em seguida, ainda vestido com sua roupa de couro, o professor é atacado por equipamentos esportivos voadores, amarrado em um chuveiro, chicoteado no traseiro com uma toalha e golpeado até a morte por Freddy, ou talvez Freddy usando o corpo de Jesse.

Além de várias fotos de um Jesse seminu e suado, cuja amizade com Grady envolve rivalidade no campo de esportes, alguma luta e união de vestiário, vemos Jesse em uma espécie de confusão sexual. Ele está dançando em seu quarto, numa cena icônica, girando ao som da música, quando Lisa se depara com ele.

Há esse ar desorientado onde parece que Jesse está dividido entre os sentimentos por Lisa e os sentimentos por Grady . As aparições de Freddy podem até ser consideradas a homossexualidade reprimida de Jesse tentando sair de dentro dele.

O filme sabiamente mantém Freddy em segundo plano durante a maior parte do tempo de execução. Os efeitos especiais são muito criativos, o destaque é uma sequência de transformação onde Freddy literalmente sai do estômago de Jesse antes de descartá-lo como se ele estivesse simplesmente tirando um terno.

Em 2019, foi lançado o documentário Scream, Queen! My Nightmare on Elm Street,  dirigido por Roman Chimienti e Tyler Jensen. O filme examina o legado da sequência de A Hora do Pesadelo e a vida do ator principal do filme, Mark Patton. Em particular, A Vingança de Freddy conquistou reputação por seus temas e assuntos homoeróticos, o que afetou Patton, que estava no armário na época da produção do filme. 

sexta-feira, 29 de outubro de 2021

Cisne Negro(Black Swan, EUA, 2010)


Cisne Negro, de Darren Aronofsky, é um melodrama completo, contado com intensidade apaixonada e sombriamente absurda. É centrado na performance, ganhadora do Oscar, de Natalie Portman que é nada menos que heroica e reflete o conflito entre o bem e o mal no balé “Lago dos Cisnes”, de Tchaikovsky. Uma coisa é se perder na sua arte. A bailarina de Portman enlouquece.

Tudo no balé clássico se presta ao excesso. A forma de arte é um grande gesto, a ilusão de triunfo sobre a realidade e até mesmo a força da gravidade. No entanto, exige de seus executores anos de perfeccionismo rigoroso, o tipo de treinamento físico e mental que tem ascendência sobre a vida normal. Esse conflito entre o ideal e a realidade está consumindo Nina Sayers, a personagem de Portman.


Sua vida foi dedicada ao balé. Sua mãe, Erica (Barbara Hershey), já foi dançarina e agora dedica sua vida à carreira de sua filha. Elas compartilham um pequeno apartamento que às vezes parece um refúgio, às vezes como uma cela. Elas se abraçam e conversam como irmãs. Algo parece errado.


Nina dança na Companhia do Lincoln Center de Nova York, comandado pelo autoritário Thomas Leroy (Vincent Cassel). O alcance de seu ego é sugerido por sua temporada atual, que irá “reinventar” os clássicos.


Tendo abandonado sua ex-primeira bailarina e amante, Beth MacIntyre (Winona Ryder), ele agora está fazendo um teste para um novo papel principal. “Lago dos Cisnes” exige que o líder desempenhe papéis opostos. Nina é claramente a melhor dançarina do Cisne Branco. Mas Thomas a acha “perfeita” demais para o Cisne Negro. Ela dança com técnica, não com sentimento.



O filme parece se desenrolar em linhas que podem ser antecipadas: há tensão entre Nina e Thomas, e então Lily (Mila Kunis), uma nova dançarina, chega da Costa Oeste. Ela é tudo o que Nina não é: ousada, solta, confiante. Ela fascina a protagonista, não apenas como rival, mas também como modelo e amante. Lily é, entre outras coisas, um ser claramente sexual, e suspeitamos que Nina nunca tenha tido um encontro, muito menos dormido com um homem. Para ela, Lily representa um desafio profissional e uma repreensão pessoal.


Thomas, a besta, é bem conhecido por ter casos com seus dançarinos. Interpretado com arrogância intimidante por Cassel, ele claramente tem planos para a virginal Nina. Isso cria uma crise em sua mente: como ela pode se libertar da perfeição técnica e da repressão sexual imposta por sua mãe, enquanto permanece fiel ao relacionamento psicológico deles?


Os principais suportes da história de Cisne Negro são tradicionais: rivalidade nos bastidores, ciúme artístico, uma grande obra de arte refletida na vida de quem a interpreta. Aronofsky vagueia assustadoramente nessas diretrizes confiáveis ​​para a mente de Nina. Ela começa a confundir limites. O filme começa com um sonho, e fica claro que sua vida onírica é contígua à vida dela acordada. 


De alguma forma, a atuação obcecada de Natalie Portman também vai além e ainda permanece no personagem: mesmo nos extremos, você não a pega atuando. Os outros atores são como parceiros de dança segurando-a no alto. Barbara Hershey oferece uma atuação perfeitamente calibrada como uma mãe cujo amor é real, cujas deficiências não são sinalizadas, cujo próprio perfeccionismo foi todo focado na criação de sua filha.


É tradicional em muitos dramas baseados em balé que um resumo ocorra em um terceiro ato de bravura. Cisne Negro tem muita beleza em toda sua obscuridade. Toda a confusão da realidade e dos sonhos se unem em uma grande e sombria paixão. Na verdade, só há um caminho para onde o filme pode nos levar. E ele leva. 

quinta-feira, 28 de outubro de 2021

Arrebato(Espanha, 1979)



Declarado por Pedro Almodóvar como um de seus filmes favoritos, e fonte de inspiração para o roteiro e cenas de A Lei do Desejo(1987) e Dor e Glória(2019), Arrebato, de Iván Zulueta é um filme de terror psicológico, que se tornou um clássico cult em seu país por um motivo: seu homoerotismo, mesclado com o uso de drogas pesadas, impulsiona uma viagem fantasmagórica onde o cinema é um vampiro que drena a alma.

O celuloide sob inspeção na sala de montagem exibe os últimos frames da última produção de baixo orçamento do cineasta José Sirgado, Eusebio Poncela, que anos depois estaria em A Lei do Desejo. Ele é um diretor de filmes de terror, que discute com seu editor por um final abrupto. Teimoso e insatisfeito, o contador de histórias vai para casa, sem saber do pacote tenebroso que ali o espera.


José é um usuário de cocaína e heroína. Sua namorada Ana, Cecilia Roth de Tudo Sobre Minha Mãe(1999), também consumidora de pós ilegais, incentiva e participa do comportamento autodestrutivo do cineasta.


Em meio a um episódio de frustração entorpecida, ele ouve a fita que veio pelo correio de um conhecido intrigante. A voz é de Pedro (Will More), um homem excêntrico, de quase trinta anos, que aparece e se comporta como se fosse muito mais jovem. Sua narração das ocorrências inomináveis ​​envia a história em um flashback significativo de como eles se conheceram. Zulueta processa a narrativa como parte de uma alucinação em todos os momentos, persuadindo o espectador a aceitar que estamos em um mundo distorcido, onde a realidade lentamente desaparece em segundo plano.



Pedro patologicamente capta lapsos de tempo de tudo ao redor de seu domínio usando uma câmera Super 8. Conhecer José, que ele percebe como um verdadeiro cineasta da capital, serve de dose de inspiração para o adolescente perturbado preso em um corpo enganador. O "arrebato" ao qual ele se refere tão veementemente se refere ao estado de transe que o atinge ao filmar pessoas, lugares e coisas que ele nunca viu antes; quando os narcóticos o levam a um êxtase semelhante, ou quando ele está perto de uma memória tangível (um brinquedo ou um adesivo da infância) que preserva sua capacidade juvenil de maravilhar-se.

A mensagem é um aviso e um convite. Zulueta não explica a mecânica precisa das ocorrências sobrenaturais que debilitam Pedro lenta mas implacavelmente, nem a verdadeira natureza de seu interesse mútuo - e isso aumenta nossa perplexidade. Visualmente fundamentado na desordem da casa de um viciado funcional e aprimorado pela textura e iluminação familiares a muitas obras daquele período, até mesmo os movimentos mais estranhos envolvendo objetos sencientes evocam a estética do canadense David Cronenberg.


A paixão pelo cinema vive em Arrebato como um fantasma que se alimenta da energia de quem precisa para se compreender através dos momentos que se eternizam. Sabendo disso, Pedro é incapaz de se afastar, totalmente submisso às vontades da encarnação física do imaginário. Um close de uma agulha perfurando a pele, junto com os truques de edição aumentam a atmosfera do outro mundo. Esta é uma narrativa retirada das vísceras.


O filme possui uma estética pop e representações descaradas de sexualidade indefinida e vícios escandalosos. Arrebato invoca o cinema como uma entidade sobrenatural que possui algo tão viciante quanto às substâncias que alteram a mente. A própria câmera é uma aparição que devora a força vital daqueles extasiados em seus poderes. É um filme sobre se perder para o poder perigosamente entorpecedor de experimentar a vida em um nível diferente de consciência, seja quimicamente induzido ou através de uma lente. 

quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Entrevista com o Vampiro(Interview with the Vampire: The Vampire Chronicles, EUA, 1994)



O jornalista Daniel Malloy(Christian Slater) é abordado por um estranho sujeito de aparência pálida chamado Louis de Pointe du Lac(Brad Pitt), que afirma ser um vampiro com mais de 200 anos, e que precisa contar a história de sua vida para exorcizar seus demônios.

A Paramount já havia adquirido o direito para adaptar a obra de Anne Rice desde a década de 1970, mas após o estrondoso sucesso de Drácula de Bram Stoker(1992), o projeto foi levado adiante, e coube ao britânico Neil Jordan, do então recente e bem-sucedido Traídos pelo Desejo(1992) assumir a direção.


O fato de ser a própria Anne Rice quem roteiriza seu romance garante que o filme tenha muito da sua visão particular sobre o vampirismo e que ela desenvolveu ao longo de sua vasta obra literária. O conceito vampírico de Rice é totalmente diferente de qualquer ideia clássica do que é um sugador de sangue, seja do ponto de vista literário ou cinematográfico.


No filme Tom Cruise dá vida à Lestat, que transforma Louis, que não pode suportar sua própria natureza vampírica que o forçou a matar outras pessoas para sobreviver a si mesmo, levando a um estado de depressão constante. 

A natureza homossexual do relacionamento de Louis e Lestat teve que ser repensada pelo roteiro. Para fazer isso, o filme eliminou referências de atração sexual, mas transmite um verdadeiro afeto através de closes, mãos nos rostos e os gestos dos dois protagonistas. Os rumos mudam com um novo elemento ao trio, a criança Claudia.


E por falar em Claudia, a personagem marcante que revelou a pequena Kirsten Dunst, se destaca como uma força interessante em resposta ao poder e a influência de Lestat em Louis. Apesar da juventude da atriz, sua personagem possui a quantidade necessária de infantilidade e, ao mesmo tempo, maturidade para entender o alcance de sua conversão vampírica, que determinará os ódios que a figura de Lestat e a relação de amor compassivo despertarão nela com Louis. Claudia nos dá sequências preciosas, como a que corta os cabelos, sobre sua dupla natureza.


Por fim, o personagem de Armand, personificado por Antonio Banderas que é decisivo para Louis terminar de assimilar sua condição vampírica, aparece no ato final do filme. Jordan escolheu retratá-lo com um aspecto adulto e maduro como, porque ele preferia uma nuance sexual mais igualitária entre os três vampiros principais. A homossexualidade de Armand, assim como no livro, no entanto, é bem evidente.

Entrevista com o vampiro expõe as criaturas excessivamente sensuais e sexuais sem mostrar tal natureza de forma realmente explícita, mesmo que que também sejam extremamente melancólicas. Além disso, de certa forma, tanto o romance quanto o filme estabelecem um precedente pioneiro para o que seria a concepção de famílias homoparentais.

terça-feira, 26 de outubro de 2021

As Boas Maneiras (Brasil/França, 2017)

As Boas Maneiras, de Juliana Rojas e Marco Dutra, é uma mistura fascinante de terror, fantasia e musical que vai do humor ao comovente, do romântico ao trágico, tudo isso mantendo o senso de conto de fadas.

Na trama, uma mulher chamada Clara (Isabél Zuaa), precisando muito de dinheiro, arruma um emprego como babá da futura mãe solteira Ana, Marjorie Estiano em uma grande atuação. Clara é pobre, lésbica, negra - e Ana - uma rica socialite heterossexual branca.

Ambas parecem ter pouco em comum, mas as duas compartilham uma solidão que as aproxima. O vínculo delas é posto à prova, no entanto, quando Ana começa a exibir um comportamento estranho a cada lua cheia, que vai muito além dos desejos habituais de gravidez.


As Boas Maneiras é carregado de charme e coração surpreendentes. O filme tem o brilho de uma grande produção completa, com excelentes efeitos práticos de CGI, e cinematografia exuberante, de Rui Poças, que pinta São Paulo como um reino urbano mágico enluarado. 



O roteiro, escrito pelos realizadores, nunca menciona abertamente a questão racial, mas a disparidade entre as duas mulheres em As Boas Maneiras fala por si. Da mesma forma, sutis são os comentários e metáforas do filme sobre classe, orientação sexual e gênero.

Porém tudo é maravilhosamente matizado, assim como os próprios personagens são matizados, suas camadas vão se desfazendo conforme a história se desenrola para revelar uma profundidade inesperada em uma trama, onde não vale revelar detalhes.


Ao lado de O Animal Cordial(2017), o filme é um dos projetos mais impressionantes e audaciosos dos últimos anos, o que demonstra o alto nível do cinema nacional atual. Com algumas curvas muito bem trabalhadas  passamos por diferentes gêneros cinematográficos com situações próximas de ficção científica e muito suspense.


O projeto trabalha em diálogos dramáticos, situações românticas e momentos de humor (há muita ironia no filme) graças ao texto original e às interpretações, principalmente das duas atrizes. O surpreendente do filme é que não permanece uma simples história de roteiro e interpretações, mas ele é muito bem trabalhado e muito detalhado nos aspectos artísticos, como a recriação dos cenários, a direção de arte, a obra dos técnicos, maquiadores e figurinistas. 

segunda-feira, 25 de outubro de 2021

Festim Diabólico (Rope, EUA, 1948)



Um cadáver, um baú misterioso e um jantar amigável. Com estes três elementos, o mestre,  Alfred Hitchcock consegue tecer uma história perturbadora que não deixa ninguém indiferente. Era o ano de 1948 e este seu primeiro filme colorido. inspirado na peça de Patrick Hamilton, escrita em 1929, baseada no assassinato do menino Bobby Frank, por um casal de homossexuais apenas por diversão.

A ideia de adaptar esta peça para as telonas inspirou-o a oferecer uma inovação que, em última análise, seria uma das marcas deste filme. Hitchcock queria uma ação contínua para focar a atenção no trabalho de atuação dos atores, então ele decidiu rodar o filme em uma sucessão de sequências, cada uma feita com uma única tomada, sem cortes. O filme não foi inteiramente rodado em plano sequência, pois a tecnologia da época não permitia.

Para vincular cada um dos cortes, sem perceber a transição, em cada extremidade do rolo a câmera foi feita para focar em algum espaço escuro. É talvez um dos filmes em que melhor podemos desfrutar da perícia narrativa de Hitchcock, e mais ainda considerando as limitações impostas pelo fato de toda a ação se desenrolar dentro de um apartamento. Em suma, tanto o ritmo como a encenação são requintados, sem esquecer aquele ponto de suspense que está por trás de toda a trama.


Quando o filme foi lançado, causou indignação entre o público devido à homossexualidade subliminar dos personagens interpretados por John Dall e Farley Granger. Em nenhum momento essa relação é revelada, mas, segundo os diálogos e a encenação, é evidente. Não foi uma coincidência ou capricho do diretor, mas uma aproximação aos fatos reais que o inspiraram. A relação de dependência que se estabelece entre Brandon(John Dall) e Phillip(Farley Granger) é uma clara alusão ao conceito de dominação e é Brandon quem está botando as cartas na mesa e Phillip é relegado para segundo plano.

No começo do filme, Brandon articula para que matem David(Dick Hogan), enforcado, e escondam o corpo em um baú, onde será servido o jantar para um seleto grupo de convidados. Brandon é perverso, movido pela crueldade, sarcasmo e um um senso de superioridade.



Philip, é a parte frágil dessa relação turva entre os dois assassinos. Um calculista e frio como aço; o outro temperamental e com pouco autocontrole. E é justamente Phillip quem vai acabar dando bandeira numa sequência tensa em que toca piano para o público.


Como professor desses dois alunos, temos Rupert Cadell, interpretado por um excelente James Stewart. Ao contrário do que veríamos anos depois em Janela Indiscreta(1954), aqui ele é mais contido, fechado sobre si mesmo. De certa forma, representa a sociedade e seus valores, uma sociedade que não vê o assassinato com bons olhos, assim como a homossexualidade, por mais que o motivo seja discutido.

Curiosamente, há um protagonista que passa despercebido e com quem ninguém conta: o cadáver. Talvez porque ele seja apenas mais um espectador desse crime perverso .Outro detalhe é que os esforços dos atores não se limitaram ao lado interpretativo. Eles também tiveram que respeitar escrupulosamente as marcações no palco para se encontrarem no momento certo, coincidindo com o arranjo da luz e das câmeras.

Este filme foi um desafio para Hitchcock em mais de um aspecto. Por um lado, era seu primeiro filme colorido, então ele teve que dar atenção especial à fotografia e fez isso com uma grande janela ao fundo que conforme a ação do filme vai acontecendo, o sol vai caindo. 


Um crime que só visa a reafirmação do intelecto superior sobre os fracos e que através da figura do professor revela o quão perigosos certos ideais podem ser. É um suspense, mas também um thriller psicológico intenso onde os protagonistas brincam de gato e rato constantemente. Uma obra com enredo sombrio mas que navega perto do humor negro. É um filme enorme em tantos aspectos e que marcou uma guinada na carreira de Alfred Hitchcock.


domingo, 24 de outubro de 2021

Gayby Baby(Austrália, 2015)

 
Gayby Baby é um documentário australiano, dirigido por Maya Newell, que mostra quatro crianças que têm pais do mesmo sexo. O filme  disseca sutilmente as possíveis diferenças e pressões, pedindo aos espectadores que questionem suas presunções sobre pais gays e seus filhos.

O filme segue o ponto de vista das crianças. Há Graham, que foi adotado de uma situação extremamente difícil quando tinha cinco anos, altura em que ainda não era capaz de falar. Embora ele tenha feito um grande progresso, seus dois pais agora o mudaram para Fiji, um país que não aceita particularmente a homossexualidade. Embora Graham já esteja enfrentando problemas educacionais, ele agora tem que lidar com o fato de ter dois pais, mas não ser capaz de reconhecer isso de maneira geral para aqueles ao seu redor.


Também, há Gus, que é principalmente um garoto muito normal, mas tem uma enorme obsessão pela luta livre. O filme questiona se isso é resultado de sua falta de uma figura parental masculina, enquanto suas mães se preocupam se sua crescente identificação com esse mundo está dando a ele uma visão desequilibrada do que significa ser um homem.

O filme inclusive segue Matt, que está passando por uma crise existencial. Uma de suas mães é bastante cristã e deseja que seu filho siga seus passos (embora ela também queira dizer que o apoiará de qualquer maneira), mas ele está cada vez mais inseguro se acredita em Deus, especialmente alguém de uma religião que frequentemente rejeita gays e famílias como a dele. 

Finalmente, há Ebony, a única garota do grupo, e as lutas de sua família enquanto eles fazem o seu melhor para ajudá-la a realizar seus sonhos de ser uma cantora e frequentar uma escola de artes performáticas de prestígio. No entanto, eles não têm muito dinheiro e seu irmão mais novo tem problemas graves decorrentes de sua epilepsia. O filme também analisa o fato de que a mãe de Ebony nem sempre esteve com uma mulher, e que sua filha teve que se adaptar a isso, já que já havia feito piadas sobre gays e coisas assim.

 

Gayby Baby é um filme inteligente e interessante, que apoia muito os pais homossexuais, ao mesmo tempo que reconhece que as coisas nem sempre são "iguais". Ter pais gays pode trazer problemas específicos e pressões das quais não adianta fugir, quer seja o conflito entre religião e sexualidade, igualdade, a necessidade de modelos masculinos e femininos ou um sentimento geral de diferença por não vir de uma família "típica".


O longa apresenta isso como questões superáveis, mas também como coisas que precisam ser resolvidas. O documentário ainda olha o mundo com inteligência através dos olhos dos filhos, em vez de olhar para eles de cima a baixo ou de se preocupar demais com os problemas dos pais .


O filme é muito mais interessante e comovente emocionalmente conforme você observa as crianças pensando em seus problemas, enquanto crescem e frequentemente mostram uma maturidade surpreendente. Como Ebony diz em um ponto: "sua família que faz de você quem você é".

sábado, 23 de outubro de 2021

O Círculo(Der Kreis, Suiça, 2014)



Em 1956, um grupo da Suíça, um dos poucos países onde a homossexualidade não era ilegal, publicava, há quase 20 anos, a revista Der Kreis, destinada ao público, porém com algumas restrições. O docudrama O Círculo conta a história, dramatizando a reconstituição de eventos e apresentando depoimentos de Ernst Ostertag e Robi Rapp, o primeiro casal homofoafetivo a casar no país, e que se conheceu naquela época.

O filme envolvente, do diretor Stefan Haupt, deixa claro de cara que, não, não havia lugar na Europa que foi uma utopia gay neste período e que mesmo as sociedades mais progressistas tiveram suas dores de crescimento. O filme limita economicamente as correntes sociais que se espalham pela Europa do pós-guerra, retratando um de seus personagens principais, Ernst (Matthias Hungerbühler) ensinando O Estranho, de Camus, para sua aula de francês e sendo gentilmente advertido sobre tal material por um colega.

Ele é um homem gay e faz viagens exploratórias aos escritórios editoriais do Círculo, e seus eventos sociais afiliados, antes de entrar na vida como ela é. É uma existência clandestina, e Ernst e sua espécie não costumam encontrar homofobia retórica perversa como um tipo de tolerância intrigada

Quando conhece o jovem transformista Rob(Sven Schelker), em um dos grandes eventos promovidos pelo Círculo, que atraia homossexuais de todas as partes do mundo, Ernst se apaixona. Esse romance que perdura por décadas é o fio condutor do filme.


O filme se move de maneira agradável o suficiente por um tempo, e a intercalação entre os assuntos da vida real do filme, agora em uma idade avançada, e suas aventuras dramatizadas há quase 60 anos, cria um interesse enraizante de forma convincente. Mas é apenas quando surge a notícia do assassinato do compositor Robert Obbussier, e a suspeita da polícia de um trabalho dentro da comunidade gay que o filme começa a apresentar alguma tensão.

O Círculo demonstra que a conduta policial no caso deu aos indivíduos na força a oportunidade de expressar sua própria homofobia - usar a morte de Obbussier e outras subsequentes como uma forma de apontar desaprovação à comunidade que foi suportando o dano. O que isso leva, entre seus personagens principais, é a compreensão de que mesmo a tolerância que experimentaram não é suficiente: eles têm o direito inalienável de viver como são aos olhos da sociedade. “Não somos criminosos”, diz Ernst perto do final do filme, e tanto o conhecimento quanto os recursos para fazer a proclamação foram descritos como conquistados a duras penas. 

sexta-feira, 22 de outubro de 2021

Vampyros Lesbos (Alemanha/Espanha, 1971)

Em uma boate de Istambul, uma bela mulher de cabelos escuros executa uma dança exótica. Na plateia, Linda Westinghouse (Ewa Strömberg) fica cada vez mais animada à medida que assiste à apresentação, reconhecendo a dançarina como a mulher que está aparecendo para ela em um sonho erótico recorrente.

Linda conta ao seu psiquiatra, Dr. Steiner (Paul Müller), sobre seu sonho, confessando que o achou profundamente erótico. O Dr. Steiner descarta suas preocupações, diagnosticando-a como sexualmente frustrada e sugerindo que ela consiga um amante melhor. Como parte de seu trabalho, Linda é obrigada a deixar Istambul para a Anatólia para ajudar a condessa Nadine Carody (Soledad Miranda) com uma herança complicada.

Chegando na ilha da condessa, Linda encontra a casa de sua cliente deserta. Nervosa com a situação, Linda reage com horror ao ver gotas de sangue escorrendo por uma janela. Preparando-se para sair, ela é interrompida por uma voz de mulher. É a condessa. Linda fica surpresa ao perceber que ela é a mulher da boate - a mulher dos seus sonhos. Linda tenta falar de negócios, mas a condessa sugere um mergulho. Mais tarde, Linda e a condessa discutem os termos da herança, o castelo do conde Drácula.

Linda aceita uma taça de vinho, mas ao bebê-la fica tonta e depois perde a consciência. Quando Linda acorda, ela está nua no chão do quarto. Ela se veste e sai à procura da condessa. Para seu horror, ela a encontra flutuando em sua piscina, aparentemente morta. Linda grita e desmaia…. Recuperando a consciência, Linda se encontra na clínica particular do Dr. Seward (Dennis Price), sem nenhuma lembrança do que aconteceu com ela.

Em Vampyros Lesbos, de Jesus Franco, em vez de habitar as montanhas envoltas em nevoeiro da Europa Central, a condessa prefere as margens ensolaradas do Mediterrâneo. Seu meio de transporte preferido não é uma carruagem puxada por cavalos, mas um carro com motorista; e longe de se esconder dos efeitos mortais dos raios solares, ela passa uma boa parte de seu tempo nadando nua e tomando banho de sol.


Vampyros Lesbos também ostenta um trio feminino na personagem de Agra(Heidrun Kussin), uma interna permanente da clínica do Dr. Seward, que passa a maior parte do tempo se contorcendo seminua e chorando para voltar para a "Rainha da Noite". Uma personagem que lembra bastante o servo de Drácula. A inversão mais inventiva do filme, no entanto, vem no personagem do próprio Dr. Seward que, longe de liderar o bando de caçadores de vampiros, como Van Helsing, na verdade quer se tornar um deles.

Uma convenção que Franco não altera é ter uma mulher como objeto de desejo. Vampyros Lesbos contém mais sexo do que violência, com Soledad Miranda envolvida em longas sequências com Ewa Strömberg e com o "manequim" que divide o palco da boate com Nadine. Essas cenas podem ser exploradoras, mas têm o mérito de serem encenadas com um erotismo honesto.

Visualmente, o filme é sempre interessante. As locações são bem exploradas. O azul do céu e do mar, e os tons de terra dos ambientes externos, fazem um contraste atraente com a decoração em preto e branco e vermelho das casas de Nadine.

A imersão do escorpião como metáfora  sinaliza a desgraça do vampiro. Ao combinar sequências reais de sonhos com tomadas repetidas de cortinas, redes, gotas de sangue e pipas circulando, Franco consegue evocar uma atmosfera alucinógena. Também digno de menção é a incrível trilha sonora psicodélica do filme, composta por Siegfried Schwab e Manfred Hubler.

O final de Vampyros Lesbos é ambíguo e assustador. O filme têm uma ressonância emocional genuína. A própria Nadine é uma personagem distintamente simpática, transformada em vampira contra sua vontade e agora confrontada com a necessidade de infligir o mesmo destino à pessoa que ama para mantê-la.


quinta-feira, 21 de outubro de 2021

Titane(França/Bélgica, 2021)

Ganhador da Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em 2021, Titane da diretora Julia Ducournau, do perturbador Raw(2016), é um filme atrevidamente ousado e deliciosamente visceral. Após sofrer um acidente na infância, Alexia(Agathe Rousselle) precisou colocar uma placa de titânio e carrega uma grande cicatriz na cabeça. Ela é uma stripper feroz e uma assassina compulsivamente delirante.

O que quer que esteja "errado" com Alexia é anterior ao acidente que quebrou seu crânio. Ela é vista pela primeira vez como uma criança lânguida, interpretada por Adèle Guigue, olhando furiosa para seu pai enquanto faz barulho de aceleração do motor em conjunto com o veículo em movimento. É difícil evitar a ideia de que ela quer que o carro bata, ou pelo menos deseja que o acidente aconteça.

Crescida, Alexia com a cabeça ainda raspada pela metade, ganha a vida se despindo em feiras de automóveis. Ela é uma figura solitária e proibitiva, ainda mais quando de repente mata um fã agressivo que a segue até seu carro.

Mais tarde naquela noite, ela se arrasta em um Cadillac bebedor de gás pintado com chamas para outra reunião arrebatadora, só que desta vez é sexual, evocando Crash: Estranhos Prazeres(1996) e Holy Motors(2012). O sexo com o carro resulta em gravidez e Alexia banhada de titânio encara com terror enquanto sua barriga incha, seus seios vazam óleo de motor e um líquido preto escorre de sua vagina no chuveiro. Seu corpo agora está em uma jornada que não a inclui.


Enquanto isso, os corpos se amontoam. Alexia é uma assassina implacável. Esses assassinatos são horríveis ao extremo e acompanhados ao uso inteligente da trilha acenam para Tarantino. Depois de deixar uma testemunha em uma onda de assassinatos, após uma noite de sexo com outra garota, ela é forçada a fugir. Quando ela vê uma imagem gerada por computador de como seria uma criança desaparecida chamada Adrien hoje, Alexia tem uma ideia brilhante. Sem hesitar, ela quebra o próprio nariz, amarra os seios e a barriga grávida e vai a uma delegacia, apresentando-se como o há muito perdido Adrien.


Esta é uma reviravolta perversa que sinaliza a segunda metade do filme, muito diferente da primeira. O pai de Adrien, Vincent (Vincent Lindon), é um bombeiro musculoso que se desmancha em lágrimas ao ver seu filho. Sozinho à noite, ele se injeta com esteroides, cravando a agulha em seu traseiro machucado.

Mas as aparências enganam. Vincent não é a superfície dele, assim como Alexia não é a dela (ou Adrien não é a dele). O Corpo de Bombeiros é um mundo sem mulheres, de homens meio vestidos como machos, e ainda assim a fotografia é codificada por gênero, o interior iluminando um rosa neon suave, os azulejos do banheiro rosa brilhante. Por mais acelerada que seja a primeira metade de Titane, é na segunda onde as coisas realmente decolam, onde Ducournau se aprofunda em seu tema, entrando em águas muito estranhas e complexas.

Vincent é um personagem real, e o ator traz uma visão profunda revelando a confusão e o medo do menino surgindo sob esses músculos. As metáforas são multifacetadas e a diretora mantém as coisas fluidas de forma inteligente, permitindo que tudo funcione subliminarmente e visualmente.

O processo de transmutação de Alexia em Adrien é arrebatador. Tentando esconder os seios, que carrega no meio da tatuagem Love Is a Dog From Hell, e a barriga, a personagem passa por momentos de horror e agonia. Seu corpo está sendo consumido.

As revelações temáticas mais profundas podem chegar tarde demais no jogo para aqueles que estão excitados pela frenética impiedade do primeiro tempo, mas o filme, incendiário, inventivo e destemido em sua abordagem e sensibilidade, não perde a coragem. 

quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Complete Strangers(Espanha, 2020)



Vivemos na era do sexo, com estranhos, por meio de aplicativos da internet. Escrito, dirigido e estrelado pelo diretor catalão Pau Masó, Complete Strangers alerta para esses perigos, ao contar a história de Robert, interpretado pelo próprio diretor, um alcoólatra em recuperação, que após voltar confuso da reabilitação, em Budapeste, se envolve em diversas tramas obscuras.

O relacionamento cada vez mais fracassado com seu marido, Christian (Sindre Bergfall) leva Robert a começar uma troca de mensagens por meio de um app com Hugo (Matthew Crawley), um cara tão bonito quanto confiante. Uma vez solteiro, Robert começará a interagir cada vez mais com sua nova conquista, enquanto lida com traumas do passado e tenta descobrir as verdadeiras intenções de seu recente galã.


Complete Strangers usa os comportamentos mais humanos para fazer o público entender a situação desesperadora do protagonista. Robert é um homem que desde muito jovem teve problemas e dúvidas sobre si mesmo, o que na vida adulta lhe trouxe relações complicadas.

Ao encontrar Hugo, mesmo sabendo que está agindo de forma extasiada e obsessiva, ele decide se atirar sobre ele como um bote salva-vidas, ignorando propositalmente o fato de que ele é uma pessoa misteriosa, difícil e assustadora.

Quando Robert está longe do mundo e à sua mercê, Pau Masó nos apresenta um thriller em que a força e a inteligência de cada um se enfrentam para sobreviver. O que começa como um jogo em que o erotismo é tudo, vira uma perseguição em que convergem a memória, as más lembranças, o fetiche e a fantasia.


Com Hugo cada vez mais agressivo e ameaçador, Robert fica à beira de uma recaída e também começa a revelar um lado obscuro de si mesmo, segredos do passado vem à tona. O lado sombrio do submundo gay é revelado e o mais assustador do filme é precisamente que não apenas os estranhos representam um perigo: às vezes o inimigo também está lá, em nós mesmos, como um completo estranho. 

terça-feira, 19 de outubro de 2021

Fim de Festa(Brasil, 2019)



Quem espera de Fim de Festa, um novo Tatuagem(2013), pode ficar um pouco frustrado. O longa, de Hilton Lacerda, mantém o lirismo, a poesia e as raízes no movimento Mangue Beat, de seu longa mais emblemático, porém com elementos mais realistas, menos alegóricos e mais sombrios.

O filme começa com imagens experimentais de corpos de jovens negros, dançando e seduzindo durante o carnaval no Recife, é uma linguagem inspiradora. Mas é quarta-feira de cinzas, e Breno, o sempre maravilhoso Irandhir Santos, chega em seu apartamento para encontrar a jovem sobrinha Penha(Amanda Beça) nua, dizendo que está partindo para encontrar sua namorada em Buenos Aires.

A trama gira em torno de uma investigação criminal, de uma jovem francesa que foi morta durante o carnaval, mas isso é o que menos importa no filme, que abre uma reflexão sobre a política e a fluidez dos corpos.

Os personagens jovens de Fim de Festa, Breninho(Gustavo Patriota), o filho do protagonista, vive um poliamor com Ângelo (Leandro Villa), Indira (Safira Moreira) e a prima Penha. São eles que representam os amores líquidos e a libertação sexual. No entanto Breninho e Penha são brancos, e Indira e Ângelo negros, e isso pode evocar memórias da escravidão.


Dividido em atos, a grande estrela do filme é realmente Irandhir Santos, que brilha com um personagem cheio de matizes e conflitos. Um policial, que vai em contra a mão do machismo, e interage com os jovens fluídos enquanto fuma, naturalmente, um baseado com o filho.

Há também uma intersecção do Dracma, um suposto grupo que denuncia os fatos mais perturbadores do Recife. Esses momentos evocam a estética do new queer cinema, especialmente dos filmes mais antigos de Gregg Araki, como Totally Fucked Up(1993), mas sem deixar de lado suas raízes pernambucanas.

Fim de Festa é uma belo estudo sobre a flexibilidade dos corpos. Além do mais o longa nos oferece referências à Acossado(1960), Twin Peaks(1992), uma participação de Hermilia Guedes e ainda um bonito retrato sobre paternidade. Mas como todo carnaval tem seu fim, o longa termina nos deixando uma profunda reflexão.