segunda-feira, 31 de janeiro de 2022

A Vida Depois(The Fallout, EUA, 2021)

A Vida Depois é uma história de amadurecimento sobre estudantes do ensino médio tentando continuar com suas vidas depois de sobreviver a um tiroteio na escola. A rigidez da premissa, do filme de estreia de Megan Park, ecoa os disparos de obras como Elefante(2003) e Tiros em Columbine(2002).

Vada (Jenna Ortega) está no meio de um dia normal quando pede para sair da aula para ir ao banheiro atender um telefonema de sua irmãzinha sobre algo que, em retrospecto, parecerá trivial. Ao ouvir disparos, ela acaba se escondendo com os colegas Mia, Maddie Ziegler, revelada nos clipes da Sia, e Quinton (Niles Fitch).

Só este último viu o que está acontecendo diretamente, sua camiseta está coberta com o sangue do irmão , mas todos eles ouviram os tiros, tentando ficar quietos por um tempo que parece interminável. Por causa do que não vemos, acompanhamos o efeito que o evento tem sobre eles, das expressões em seus rostos e aquelas respirações curtas, rápidas e urgentes. 


A maior parte do filme se passa após o tiroteio, no ponto em que a polícia e os paramédicos foram embora, o circo midiático se desfez e as pessoas de fora esperam que as vidas voltem ao normal. O melhor amigo de longa data de Vada, Nick (Will Ropp), sente que normal é a última coisa que eles deveriam querer, que normal facilitou isso, e imediatamente se aplica à campanha, fazendo aparições na mídia para falar sobre controle de armas.


Vada entende isso, mas não consegue se identificar. Além do medo de voltar aos espaços onde tudo aconteceu, ela não parece sentir muita coisa. Obrigada a ir a uma conselheira, ela diz o que acha, mas a conselheira ressalta que ter algum tipo de sentimento é um pré-requisito para o processo de recuperação.

A experiência da morte ou violência imediata nesta escala é desorientadora em qualquer idade, mas ainda mais na juventude, quando se tem tão pouco para comparar que é difícil contextualizar. As únicas pessoas que parecem entender a experiência específica de Vada são aquelas com quem ela a compartilhou, então ela gravita em direção a elas, esquecendo-se de conexões anteriores.

Seguem resultados típicos de trauma: comportamento impulsivo, experimentação, sexo catastrófico. Sem um foco, Vada não sabe o que está acontecendo com ela. Seu mundo encolhe em um presente intenso. Sua família e professores tentam encontrar o equilíbrio certo em fornecer espaço e apoio, enquanto Nick faz o possível para ser um amigo sem julgamentos. Ela luta para se conectar com eles, como se estivesse ouvindo debaixo d'água, enquanto suas interações com Mia e Quinton se tornam tão intensas que ameaçam causar mais danos.

O roteiro de Megan Park apresenta essa experiência caótica de uma forma não linear que ajuda o espectador a entrar na cabeça de Vada. Enquanto na maioria dos filmes observamos os personagens tomarem decisões, aqui somos os companheiros de viagem da protagonista, pois sua vida parece seguir sem direção.

O crédito também deve ir para Julie Bowen e Lumi Pollack como mãe e irmãzinha de Vada, respectivamente, cada uma lutando com a forma abrupta como um dos relacionamentos mais importantes de suas vidas mudou. Os pais de Vada parecem reconhecer que ela precisa estar totalmente focada em si mesma por um tempo para processar o que aconteceu, mas viver com isso ainda é difícil, especialmente à luz de seus próprios instintos protetores intensificados.


Park encontra momentos de comédia em suas interações que fermentam o estresse em exibição e, apesar de seu assunto, a última parte do filme nunca é realmente sombria. A jornada inebriante de Vada torna a visualização atraente. Ela é charmosa e livre dos limites convencionais, disposta a descobrir uma sexualidade colorida junto de Mia e também de Quinton.


Animado, inteligente e brilhantemente composto, A Vida Depois dá um soco no estômago, desferindo golpes que você não verá chegar. A diretora não perde tempo com sentimentos ociosos ou censuras, mas entrega algo que parece totalmente real. 

domingo, 30 de janeiro de 2022

Os Primeiros Soldados(Brasil, 2021)

 É 31 de dezembro de 1982. O biólogo Suzano(Johnny Massaro), está de volta à Vitória, na casa da irmã Maura(Clara Choveaux) e do sobrinho Muriel(Alex Bonini), após uma temporada em Paris. O personagem já começa a apresentar sintomas, de algo que ele sabe que contraiu, e se prepara para a proximidade da morte.

Os Primeiros Soldados, de Rodrigo de Oliveira, descentraliza a ação do eixo Rio-SP, e nos leva para o Espírito Santo, para tratar de um tema até então pouco explorado no cinema nacional: o início da epidemia da AIDS, e faz isso de forma nunca antes vista.

Em seu primeiro grande papel no cinema, Renata Carvalho se destaca como Rose, ela surge em cena dizendo que ‘travesti não é bagunça’. Ela, que sonha em ser a Blanche, em Um Bonde Chamado Desejo, brilha em diversos momentos, especialmente quando apresenta e performa uma inusitada canção na Festa de Ano Novo.

“Festa de entendido não se dispensa”, diz Joca(Higor Campagnaro), o ex de Suzano, resgatando as gírias do passado, e que quer reatar, mas não sabe que algo pode estar acontecendo. Por outro lado Humberto(Vitor Camilo), um videomaker, está acompanhando os passos de Rose, enquanto demonstra um interesse por Jean.


Mas oito meses após a noite de Réveillon, nada mais será o mesmo. Suzano informa a família que voltará para Paris, Rose e Humberto desaparecem, e o que vinha sendo documentado como um show, acaba se tornando o registro dos sintomas e da evolução dos primeiros impactados pelo HIV, no sudeste brasileiro.

A narrativa, não completamente linear, nos permite acessar esses momentos de felicidade, que são acompanhados pela trilha original de Giovani Cidreira junto à clássicos de Secos e Molhados, 14 Bis, Fernando Mendes e Gonzaguinha, ao convívio do grupo LGBTQIA+ tentando se adaptar e descobrir mais sobre essa sua nova condição.

O poder da atuação de Johnny Massaro e Renata Carvalho potencializado pela estética de vídeos-amadores, que são captados por Humberto, um personagem secundário, mas igualmente importante, dá vida a esse roteiro maravilhoso, sobre pessoas com seus corações partidos e que precisam aprender algo fascinante sobre a barbárie, antes de partir.

“Eles tentam nos matar desde que o mundo é mundo e o que a gente faz é sobreviver, sendo linda”, diz Rose, num dos momentos mais inspirados do roteiro de Oliveira. Os Primeiros Soldados, é claro que não proporciona um final feliz, mas sim uma reflexão sobre aqueles que iniciaram e perderam essa guerra invisível, para que outros pudessem triunfar no futuro.

sábado, 29 de janeiro de 2022

Mala Mala(Porto Rico, 2014)

documentário colorido sobre a comunidade transgênero porto-riquenha, apresenta abertamente nove protagonistas muito diferentes, Mala Mala lentamente se transforma em uma celebração de solidariedade e ativismo coletivo sem nunca perder de vista seus simpáticos personagens. Altamente divertido, mas nunca redutor ou explorador, a estreia bem trabalhada de Dan Sickles e Antonio Santini, irá encantar o público LGBTQIA+.

Com exceção de Paxx Moll, um homem trans, os temas do filme estão em transição de homem para mulher. Se sua história é pequena, é explicado pelo fato de que ele simplesmente não consegue encontrar os meios para fazer a transição em seu país de origem, nem pode encontrar apoio da comunidade ou quem sem se identificar. Em seu quarto limpo e iluminado, ele parece apenas um garoto isolado.

Algumas, como April Carrión, Queen Bee Ho e Alberic Pradoc, são simplesmente drag queens, vivendo como homens durante o dia e atuando como mulheres à noite. Eles parecem totalmente à vontade com essa dualidade, totalmente despreocupados mesmo no meio da transformação.

Embora Pradoc tenha passado por cirurgias para melhorar as maçãs do rosto e adore espirrar em banhos de espuma, ele não deseja se tornar uma mulher; aliás, durante o filme, ele fica cada vez mais desiludido com sua persona feminina “Zahara”. Carrion atinge o semi-estrelato nos EUA através de uma aparição no programa de RuPaul, enquanto Ho, cuja reputação cresce localmente, se irrita com a estreiteza da celebridade porto-riquenha.


Mas não são apenas as transformistas que buscam fervorosamente o glamour. Denise “Sandy” Rivera, que ocupa um papel quase protagônico no filme e ganha a vida, assim como muitas das meninas, como prostituta, sente que, como ainda usa um órgão “que os homens não querem”, ela precisa ser e estar belíssima para atrair clientes.


Ivana Fred, uma porta-voz quase oficial da comunidade transgênero que faz aparições em vários programas de TV, trabalhou muito para criar seu corpo curvilíneo por meio de cirurgia de redesignação de sexo, no Equador. Certamente a atratividade de Fred provou ser fundamental para seu sucesso.

Mas em uma discussão entre Fred e Soraya Santiago Solla, uma porto-riquenha de 65 anos pioneira na redesignação de sexo, é feita uma distinção entre aqueles que, como Solla, se identificam profundamente como mulheres, e aqueles que, como Fred, querem ser todas modeladas. O avanço da idade, afirma Solla, separará as verdadeiras mulheres das que buscam adulação, já que ninguém quer ser uma Barbie de meia-idade.


Sophia Voines e Samantha Close  aprenderam a aceitar seus looks nada glamourosos. Voines, uma nova-iorquina transplantada, simplesmente quer ser tratada como uma mulher comum. Close, cuja pobreza a levou a experimentar hormônios destrutivos do mercado negro, teve que suspender sua transformação, desafiadoramente exigindo que o mundo a aceitasse como ela é.


Os cineastas forjam um sentimento de comunidade por toda parte. Cenas na Doll House, onde as drag queens se pavoneiam, dissipam rapidamente qualquer sensação de separação entre artistas e público. Então, quando elas decidem militar ativamente por direitos iguais, liderados por Denise Rivera – que não esconde seu desejo, compartilhado por muitos, de ser empregada produtivamente em um trabalho menos humilhante que a prostituição – o movimento ressoa como uma extensão de uma solidariedade já existente .

Mala Mala segue um momento profundo da história LGBTQIA+ local: a aprovação do Projeto de Lei 238 do Senado, que proíbe a discriminação com base na orientação sexual e identidade de gênero. Junto a bandeira da “Butterfly Trans Foundation”  as protagonistas de Mala Mala marcham para os degraus da capital do estado, levando ao final surpreendentemente otimista do filme. 



sexta-feira, 28 de janeiro de 2022

Drown(Austrália, 2015)

O drama, de Dean Francis, é sobre um grupo de jovens que pertencem a um clube de salva-vidas de surf. Len(Matt Levett) é um membro de longa data e o mais bem-sucedido, tendo vencido vários campeonatos. Sua vida é abalada com a chegada do jovem Phil(Jack Matthews), que salva alguém de se afogar em seu primeiro dia e passa a mostrar que ele poderia muito bem ser um desafio ao estrelato de Len.

No entanto, não são apenas suas habilidades físicas e salva-vidas que Len tem dificuldade, mas também o fato de ele ser atraído pelo jovem – algo com o qual ele não quer lidar. Enquanto isso, Phil está bem ciente de que ele é gay e tem namorado, mesmo que mantenha isso quieto no clube. A tensão começa a crescer e, à medida que Len acha cada vez mais difícil lidar com seus sentimentos, eles ameaçam explodir de maneiras extremamente perigosas.


Inicialmente Drown pode ser um pouco confuso, pois em vez de contar sua história de maneira linear, ele tende a pular para diferentes momentos da história. No começo, pode ser difícil acompanhar onde você está, mas à medida que começa a revelar mais sobre o que está acontecendo e quem são essas pessoas, a coisa toda se abre para se tornar cada vez mais tensa e absorvente.


O  que realmente ajuda a atrair o espectador é sua representação nítida de Len, de modo que, mesmo quando ele está no seu pior você tem uma compreensão de seu conflito interno. É essencialmente a dissecação de um valentão, um homem cheio de dúvidas e inseguranças mantido unido por uma concepção frágil de “masculinidade” e o que é ter valor próprio.


Fica claro que o filme é sobre algo muito mais sombrio do que um romance, e, no final, há uma enorme quantidade de tensão e uma borda verdadeiramente obscura no que está acontecendo. A questão não é se Len pode aceitar a si mesmo, mas se ele conseguirá sustentar seu ego severamente perturbado por tempo suficiente para assumir ou não, e se puder, o que isso significa para aqueles ao seu redor.


Phil também é um personagem interessante. Ele vem de uma geração que está mais confortável com sua sexualidade, mas também ciente de que nem todo mundo está. Enquanto ele tenta conciliar o namoro com o clube, ele está constantemente tendo que lidar com os dois lados, sabendo que a vantagem quase inerentemente homoerótica de um bando de homens que passam a vida seminus um ao lado do outro provavelmente não será totalmente tolerante à diferença, e onde uma mentalidade machista  pode causar problemas.


Ele quer se encaixar e também parece ciente de que Len está atraído por ele, mas suas esperanças de ser aceito adequadamente podem levá-lo a situações em que as coisas podem sair do controle muito rapidamente.


Drown é desafiador, agressivo e surpreendentemente eficaz, analisando duramente a potencial brutalidade da homofobia e quão perigoso pode ser se uma vida for construída sobre negação do que é masculinidade



quinta-feira, 27 de janeiro de 2022

Segundas Intenções(Cruel Intentions, EUA, 1999)



Segundas Intenções é uma versão moderna de Ligações Perigosas, com adolescentes ricos em uma escola preparatória interpretando papéis que foram escritos para aristocratas franceses​​ no perverso romance de 1782, de Choderlos De Laclos. O diretor Roger Kumble, recria um mundo de amoralidade depravada, no qual o único objetivo é satisfazer o egoísmo.


O filme é estrelado por Ryan Phillippe, como Sebastian Valmont, um garoto rico que vive em uma mansão em Manhattan com sua meia-irmã Kathryn Merteuil (Sarah Michelle Gellar). Ele é conhecido como um sedutor sem princípios que "nunca pronunciou uma única palavra sem intenções desonrosas".


Logo Sebastian encontra um desafio maior - a virginal Annette (Reese Witherspoon), filha do novo diretor de sua escola. Ela escreveu um artigo para a revista Seventeen elogiando a virgindade pré-marital, e Sebastian aposta com Kathryn que ele pode deflorá-la. A aposta: se ele perder, sua meia-irmã recebe seu jaguar. Se ele ganhar, poderá possuir todos os orifícios de sua meia-irmã.


Sebastian puxa cordas do coração, conta mentiras e emprega estratégias sedutoras desonestas. O filme é melhor nas cenas entre Gellar e Phillippe, que desenvolvem uma carga emocional convincente, e cuja maldade parece funcionar como um estimulante sexual.


Há uma cena em que ela o convence, emocional e fisicamente, a fazer o que ela quer, e somos lembrados de que o erotismo lento e sutil é, afinal, possível nos filmes. Gellar, que vinha de Buffy a Caça Vampiros, é eficaz como uma garota brilhante que sabe exatamente como usar seu lado vadia e Phillippe parece frio e distante o suficiente para torná-lo interessante quando ele finalmente é espetado pela flecha do amor verdadeiro.

Kathryn não vai transar com seu meio-irmão, Sebastian Valmont até que ele deflore algumas virgens como a inocente Cecile Caldwell (Selma Blair), a qual ela inicia na técnica do beijo.  "Down Boy", diz Kathryn quando ele tenta seduzi-la. Nada de sexo até que ele consiga desvirginizar Cecile e Annette.


O filme demonstra que sabe preservar a mecânica central da história original, ao mesmo tempo em que incorpora com sucesso alguns temas contemporâneos ausentes do romance de Choderlos de Laclos, racismo, homossexualidade, Manhattan como o novo centro do mundo. 


Obviamente, mudar a ação para o século 20 significa abrir mão dessa bela linguagem de suprema elegância que as Ligações Perigosas de Stephen Frears souberam musicar tão bem em 1988, em uma perfeita adaptação clássica do romance.



Mas os roteiristas dos diálogos sabem como queimar qualquer lenha e encontram a essência traiçoeira da cruel licenciosidade do autor, especialmente durante os confrontos entre Sebastian e Katryn, que é o coração do filme.

Onde Frears havia convocado Bach, Vivaldi, Handel e Gluck, Segundas Intenções também renuncia ao esplendor único da música barroca, mas tricota uma trilha sonora que representa uma geração, embalada por clássicos de Placebo, The Verve, Blur e Fatboy Slim. 

O filme também é um esplendor para os olhos. Imaginativa, a encenação de Kumble sabe torná-la suficientemente fluida para acompanhar as reviravoltas da dupla conspiração libertina. Em particular, a câmera sabe perfeitamente destacar as esplêndidas locações deste filme, reunindo vários dos mais belos panoramas e edifícios de Nova York e Los Angeles. 


Segundas Intenções é um filme tônico, dialogado com brio, implacavelmente inteligente e diabolicamente elegante. Com esta emocionante e absolutamente agradável versão da Marquesa de Merteuil, Sarah Michelle Gellar, sublime, encontra sem dúvida o papel mais belo da sua filmografia


quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Seguindo Todos os Protocolos(Brasil, 2022)



Escrito, protagonizado e produzido pelo pernambucano Fábio Leal, Seguindo todos os Protocolos acompanha os dias vazios de Francisco, que após 10 meses, encerrado em quarentena, precisa transar.

Trazendo uma nova perspectiva sobre o isolamento, o filme mostra como o protagonista passa o tempo: fumando, se masturbando, fazendo ginástica, meditando, e batendo papos online. No entanto, com sua libido aflorada, ele passa a pesquisar como transar durante a pandemia.

“Seja Kinky” diz Francisco, ao tentar formas seguras de fazer sexo. Usando de criatividade, e uma paranoia com higiene, o personagem começa a marcar encontros, e então experimentar novas formas de prazer, sempre com o uso de máscara. Lucas Drummond, Marcus Curvelo e Paulo César Freire aparecem para iluminar a tela com beleza.

É aí então, que o longa começa suas pinceladas homoeróticas. Não há sexo explícito, porém há muita nudez, exibida com naturalidade, ainda há o close de uma glande, e a textura dos corpos entrelaçados, ressaltada pela fotografia de Gustavo Pessoa.


“Cuidado, Paixão”, quando a música, de Letrux, começa a tocar ilustrando os desejos sexuais de Francisco, temos alguns dos momentos mais coloridos e lúdicos da obra. No entanto o foco está na solidão do isolamento, com o protagonista completamente vulnerável recorrendo ao uso de antidepressivos. Uma cena, em específico, envolvendo violência marca uma virada no personagem.

Mesmo fazendo uma “dieta de informação” Francisco não está completamente alheio a situação do país e há uma leve crítica ao atual governo. De forma inusitada, melancólica e até mesmo delirante, Fábio Leal que já havia dirigido alguns curtas, e codirigido Deus tem AIDS(2021), ao lado de Gustavo Vinagre, faz sua estreia em um longa de ficção ousando de maneira estranhamente relevante.


terça-feira, 25 de janeiro de 2022

Vai Dar Tudo Certo(Everything's Gonna Be Okay, EUA, 2020-2021)

 A nova série criada, escrita e protagonizada por Josh Thomas, para o canal americano Freeform, e distribuída no Brasil pela HBO,  segue a mesma fórmula de seu sucesso australiano Please Like me(2013-2016), porém apresenta uma nova abordagem ao tratar de temas delicados, mas sempre mantendo o humor sagaz, leve e rápido.

Com 10 episódios, apenas o primeiro possui 45min, os demais 20, a série começa apresentando o drama do pai(Christopher May)  de Nicholas(Josh Thomas), que prestes a morrer de câncer está preocupado com o futuro das filhas e com quem deixará a tutela. As meias-irmãs do protagonista são as igualmente especiais: Matilda(Kayla Cromer) e Genevieve(Maeve Press).

“Sinto muito por sua perda”, quando Matilda faz seu discurso no funeral do pai afirmando sua importância em seu desenvolvimento como autista, a própria atriz tem um leve autismo, a personagem oferece um momento comovente, ainda que com doses de constrangimento. A cena mostra o potencial do que está por vir a seguir.

Quanto à Nicholas, é óbvio que a tutela recai sobre ele, enquanto mantém um relacionamento com Alex(Adam Faison), que se muda para a mansão, provocando certa desconfiança nas garotas. O amor, no entanto, parece verdadeiro.


Genevieve está entrando na puberdade e seus dramas estão relacionados ao ensino-médio. Suas amigas Barb(Lori Mae Hernandez), e Telullah(Ivy Wolk) roubam algumas cenas. O trio está sempre envolvido naquele tipo de travessura característica das vivências adolescentes.

Como Nicholas é um etimologista, há exemplo de Please like me, onde havia muita comida, aqui o close é nos insetos. O nome dos episódios são todos de espécies exóticas, e há muitos planos fechados dos bichinhos transitando de uma cena para outra.

Aos 17 anos, Matilda é mentalmente capaz de entrar na melhor universidade de NY, porém o nível de seu autismo preocupa seus irmãos. A personagem está debatendo a perda de sua virgindade e iniciando um relacionamento com a até então incompreendida, Drea(Lillian Carrier).

Enquanto Nicholas aparece reluzindo em drag, performando Don’t leave this Way, de Thelma Houston, as irmãs estão num caminho de descoberta, que se aprofundará ainda mais na segunda temporada.

Mesmo impactada, pela pandemia da COVID-19, a segunda ,e última parte, de Vai dar Tudo certo reforça o orgulho autista. O romance entre Drea e Matilda ganha mais espaço, para que o autor possa explorar de forma lúdica e adocicada o tema da assexualidade.

Cada vez mais dona de si Genevieve se mostra a pessoa mais madura dessa família disfuncional, ao mesmo tempo que também tem seus interesses amorosos. De suas amigas, sobrou apenas Barb, que traz alívio cômico e algumas piadas hilárias, quando como por exemplo olha pasma para o corpo seminu de  Alex e diz: “É um homem!”.

Nicholas é agitado e gosta das coisas de seu jeito, o personagem mostra um enorme senso de humanidade, embora às vezes pareça egocêntrico. A maneira como vive começa a incomodar Alex, e os dois iniciam uma crise no relacionamento. Mas parece que o alicerce do protagonista não é o namorado, e sim suas duas irmãs, que lhe proporcionam momentos de ternura sem fim.

São Matilda e Genevieve que levam Nicholas numa jornada de amadurecimento, troca de aprendizados, além de serem fundamentais nas reviravoltas que estão guardadas para o final. Vai Dar Tudo Certo é uma série que mostra que não escolhemos nossa família, mas que eles são a base, e no final das contas com quem sempre poderemos contar.

segunda-feira, 24 de janeiro de 2022

The Last Thing Mary Saw(EUA, 2021)

Inverno de 1843. Uma jovem está sob investigação após a misteriosa morte da matriarca de sua família. Sua lembrança dos eventos lança uma nova luz sobre as forças eternas por trás da tragédia

O filme, realizado pelo diretor Edoardo Vitaletti, tem todos os ingredientes de um horror folk,  um cenário isolado, tons de intolerância religiosa e uma atmosfera tensa que pode ou não ser por causa de algo sobrenatural. 


O enredo de The Last Thing Mary Saw nos leva de volta à zona rural de Nova York em 1843. Mary (Stefanie Scott) está no meio do que parece ser um interrogatório brutal, como evidenciado pelo sangue seco que escapou de sua venda nos olhos. Uma série de flashbacks oferece mais informações sobre como exatamente Mary foi parar ali.


Mary vem de uma família fortemente religiosa liderada por uma matriarca austera (Judith Roberts). No entanto, ela começa um caso tórrido com a adorável empregada Eleanor (Isabelle Fuhrman). Como muitas vezes acontece com os religiosos fanáticos, a família de Mary tem certeza de que pode livrá-la de seu pecado por meio de punição severa. No entanto, ela  e Eleanor estão dispostas a enfrentar seus problemas e bolar um plano para fugirem juntas.


Eleanor é forçada a suportar uma série de punições, como ajoelhar-se no arroz durante a noite, e fala-se em mandá-la embora, mas as duas persistem em passar o tempo sozinhas sempre que podem. Este tempo é usado não apenas para o amor, mas para compartilhar ideias perigosas.

À medida que a trama avança, fica claro que The Last Thing Mary Saw apresenta algumas evidências de que algo sobrenatural e sinistro está acontecendo, quando a matriarca do clã misteriosamente aparece morta. Depois, há a questão de um misterioso estranho (Rory Culkin) que chega ao local trazendo presentes, além da presença de um livro nefasto que pode ou não estar na raiz dos acontecimentos.


O cenário de época também é cuidadosamente trabalhado, e o ambiente é lindamente filmado pelo diretor de fotografia de David Kruta, com closes texturizados de ambientes rurais e simbolismos. A sensação à luz de velas e um tanto fechada da cena não apenas reflete o espírito da comunidade, mas oferece o tipo de tom que os espectadores esperam em um filme como esse.


O filme é intrigante, mas nunca chega ao ponto de ser realmente assustador, embora haja momentos perturbadores. O longa também se recusa a lhe dar todas as respostas que você certamente quer. Um filme sombrio que expõe uma visão forte de um cineasta de primeira viagem que definitivamente está dando seus primeiros passos para o sucesso.


domingo, 23 de janeiro de 2022

Breaking Fast(EUA, 2020)


Escrito e dirigido por Mike Mosallam, seu longa de estreia é uma doce, leve e deliciosa comédia romântica. O filme segue as aventuras amorosas de Mo (Haaz Sleiman), um gastroenterologista de trinta e poucos anos, de West Hollywood ,que também é um muçulmano gay religiosamente praticante.

Um prólogo mostra Mo sendo dispensado por um namorado enrustido que ele adora Hassan(Patrick Sabongui). Hassan decidiu se casar com uma mulher para apaziguar sua família religiosa e socialmente conservadora. Mo é um muçulmano abertamente gay com uma família que o apoia e aceita, um luxo que ele dá como certo. No entanto, isso não impede de seguir suas tradições religiosas.


Avançando um ano, encontramos Mo ainda ferido no rescaldo, em uma festa de aniversário de seu melhor amigo muçulmano não praticante Sam (Amin El Gamal). Mo conhece um belo ator chamado Kal (Michael Cassidy) e passa a noite andando pela cidade com ele, em uma série de cenas de diálogo descontraídas.

Kal explica que seu nome vem do nome Krypton original do Superman, Kal-El, um petisco que emociona Mo porque ele é um grande fã do Superman. E o longa, protagonizado por Christopher Reeve, é lindamente homenageado aqui.



Há um certo subtexto: Superman é em si um conto de assimilação de imigrantes no mainstream da vida americana, sobre um indivíduo excepcional que deve manter sua especialidade em segredo para viver uma " vida normal”.

Kal se convida a se juntar a Mo em seus Iftars noturnos, a refeição tradicional consumida pelos muçulmanos durante o Ramadã após o pôr do sol, mas como Mo é extremamente religioso, ele também insiste em se abster de qualquer coisa que se aproxime das relações sexuais. 


Mo certamente está em paz com o fato de ser um muçulmano gay, mas sua postura rígida, principalmente sobre sua fé, não agrada a todos. Sam, por exemplo, também é árabe e nem um pouco religioso e não deixará que nada atrapalhe sua vida. Mo, no entanto, ressalta que, neste clima político atual, mesmo West Hollywood não é um lugar fácil para os árabes gays viverem. 


Mosallam adaptou o filme de seu curta-metragem, de mesmo nome, de 2015, que teve grande sucesso,  sendo exibido no Festival de Cinema de Cannes. Ele mostra que é um tema com o qual ele tem uma grande empatia e há uma autenticidade real em seu roteiro espirituoso. Ele também é bem servido pelas performances perfeitas de seus dois atores principais.

sábado, 22 de janeiro de 2022

No Ritmo da Vida(Jump, Darling, Canadá, 2020)

Russell (Thomas Duplessie) está se recuperando de um rompimento, sem lugar para ficar e sem dinheiro para fazer as coisas acontecerem. Então ele decide arrumar suas perucas e meias arrastão e curar suas feridas no campo, na casa de sua avó Margaret(Cloris Leachman).

A agradável senhora está encantada em tê-lo por perto, principalmente porque isso a ajudará a evitar a casa de repouso local, a qual ela se recusa inflexivelmente e firmemente a ir, apesar de estar convencida que ela realmente não é mais capaz de cuidar de si mesma.


Russell, até recentemente, perseguiu a atuação, mas abandonou essa paixão por outra – drag – o que pode ter contribuído para sua separação. Sua mãe Ene (Linda Kash) aparece de vez em quando e mal parece saber com quem ficar mais exasperada – sua mãe teimosa e doentia ou seu filho vacilante e ainda dependente.

O diretor Phil Connell mantém as coisas simples, permitindo que o relacionamento seja o foco principal do filme. O recém-chegado Russell coloca todo o seu eu no papel. No outro extremo do espectro, este é o trabalho final de Cloris Leachman. É difícil não pensar em sua morte enquanto observa seu estado mental em declínio no filme. 

Connell e a co-roteirista Genevieve Scott criam dois personagens particularmente cativantes através de Russell e Margaret – um artista drag extravagante e autodestrutivo e uma nonagenária em declínio. Embora ambos compartilhem uma vulnerabilidade, eles também são lutadores. O  tom é ocasionalmente sombrio, com pitadas de otimismo entregues por meio de cenas de humor, romance e performance de alta energia.


Há um clima natural de peixe fora d'água em ver o personagem navegando em uma pequena cidade dos EUA e interagindo em um local com o que parece ser uma pequena comunidade LGBTQIA+, mas um romance com um funcionário de bar bissexual no armário, fornece alguma tensão romântica e sexual  em que redireciona a jornada de Russell de volta aos trilhos de sua rotina destrutiva.


E quando se transforma em Fishy, Russell fornece os momentos mais luminosos do filme. Com uma trama que envolve drag queens não poderia faltar Lipsync e boa música: A trilha tem Robyn, Scissor Sisters ft MDNR,Gloria Parker, Years & Years, Allie X, London Grammar, Caveboy e Hidden Cameras.


Os conceitos emocionais difíceis são equilibrados por essas doses suaves de humor. Jump, Darling merece elogios por suas impressionantes sequências de performance drag executadas com uma energia ardente por Duplessie, capturando uma sensação de paixão e perseverança dentro do personagem 

sexta-feira, 21 de janeiro de 2022

Transhood: Crescer Transgênero(EUA, 2020)


O documentário, de Sharon Liese, mantém uma perspectiva bifocal astuta, capturando tanto a impaciência juvenil quanto o impacto nos pais, enquanto acompanha o desenvolvimento físico e emocional de quatro crianças transgênero ao longo de cinco anos.

A abordagem brilhante e humana do filme a um assunto de proeminência cada vez mais cotidiana não é apenas um trabalho de ativismo, a diretora observa francamente os obstáculos práticos e as mudanças psicológicas enfrentadas por seus quatro jovens e suas famílias, às vezes com efeitos perturbadores.


As famílias em questão têm pouco em comum, a não ser sua localização em Kansas City, uma cidade conservadora, e, portanto, uma escolha crítica de localização: a tensão nervosa entre as explorações pessoais de identidade das crianças e o conservadorismo da direita cristã que as cerca é sugerida por toda parte, ocasionalmente explodindo em atos de discriminação ostensiva.

Transhood : Crescer Transgênero, começa com Avery Jackson, uma garota transgênero pré-adolescente de cabelos arco-íris que se tornou uma espécie de símbolo para o movimento após sua aparição na capa da National Geographic, em 2017. Os rigores completos da adolescência podem estar à frente, mas muita vida já foi vivida.


No entanto, à medida que o filme volta no tempo, para 2014, Avery, de sete anos, parece mais segura de si mesma do que a maioria. Apoiada por seus pais Debi e Tom, ela já está dando entrevistas de rádio confiantes sobre sua identidade de gênero. A imprensa se aproxima, assim como um livro ilustrado, com seus pais ansiosos para divulgar a história de Avery como incentivo para crianças menos seguras em sua situação.


Jay é apresentado como um menino transgênero, de 12 anos, começando a tomar bloqueadores hormonais, que mantém seu sexo de nascimento em segredo de todos na escola, incluindo sua namorada. Sua mãe Bryce, ela mesma casada com outra mulher, oferece um amor empático e duro, enquanto teme que sua dissimulação seja uma “bomba-relógio”: Com certeza, quando seus colegas descobrem a verdade contra sua vontade, as consequências emocionais resultantes são severas, tornando o material mais desconcertantemente e sincero do filme.

Leena, de 15 anos, uma garota com projetos em uma carreira de modelo e cirurgia de resignação após o ensino médio, é mais estrategicamente seletiva com a verdade. Sobretudo seu pai, amigos e namorado a aceitam por quem ela é. Leena dá de ombros para sua rejeição com uma desenvoltura de partir o coração.


Avery, Jay e Leena têm arcos claros, embora ocasionalmente desviados, em direção à auto-realização. Menos certo, é o de Phoenix, de quatro anos, atribuído ao sexo masculino ao nascer, que ao longo do filme muda de um “menino” autodeclarado para se identificar como feminino ou masculino em diferentes estágios. Liese retrata a incerteza e a natureza mutável de Phoenix, totalmente compreensível em uma idade tão tenra, com graça gentil. Muito mais enervante é a alteração extrema de sua mãe Molly, cuja postura ideológica sobre a identidade de gênero muda radicalmente ao longo de meia década dividida pela ascensão de Donald Trump ao poder.


Incentivado pela edição flexível, de Dava Whisenant e Nick Andert, Transhood se destaca na observação doméstica diária e refinada. Mas também está inteligentemente sintonizado com mudanças sociopolíticas maiores  para melhor e para pior, pois observa o quanto pode mudar – em uma pessoa, em uma família, em um país – em cinco anos. As crianças, ao que parece, crescem muito mais rápido do que os adultos.


quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Meia-Noite no Jardim do Bem e do Mal(Midnight in the Garden of Good and Evil, EUA, 1997)

Clint Eastwood tem o poder de saber contar uma história. A melancólica adaptação do romance verídico, de John Berendt, Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal, é um conto convincente, mas sinuoso de luxúria, assassinato, sexo, vodu e traição. 

O longa é a história do jornalista de Nova York John Kelso (John Cusack), que viaja para Savannah quando a revista Town and Country o contrata para escrever uma história sobre a festa anual de Natal do milionário Jim Williams (Kevin Spacey) .Depois de uma breve discussão com o advogado de Jim, Sonny Seiler (Jack Thompson), John conhece Jim, que acaba sendo um cavalheiro suave e atraente com gostos extravagantes.

O escritor faz um breve tour pela opulenta casa de Jim, que foi construída pelo avô do compositor Johnny Mercer. Ao longo das próximas 24 horas, enquanto espera a festa começar, John conhece alguns moradores locais: um homem que passeia com um cachorro imaginário, um interesse romântico chamada Mandy (Alison Eastwood) e o impetuoso, arrogante Billy Hanson (Jude Law), que é o amante de Jim.

Então, de repente, depois da festa, quando John está se preparando para ir para casa, o filme se transforma em uma história de assassinato. Jim atira e mata Billy em circunstâncias misteriosas, e a questão de sua inocência é colocada diante de um júri.


John, vendo o potencial de expandir seu pequeno artigo em um livro completo, começa sua própria investigação do incidente, e seu trabalho de detetive o leva a mais dois cidadãos incomuns de Savannah: a transexual Lady Chablis (interpretando a si mesma) e Minerva (Irma P. Hall), uma sacerdotisa vodu. A propósito de Lady Chablis, ela é especialista em chocar a burguesia.

Grande parte do mérito do filme está na força das performances dos atores. John Cusack é perfeitamente escalado como a representação do homem comum com um charme irresponsável. Kevin Spacey faz um trabalho excepcional fazendo de Jim uma figura carismática que, paradoxalmente, parece ser aberta e reservada. Lady Chablis, oferece uma interpretação deliciosamente cômica e exagerada de si mesma. 

Tanto John quanto Jim lutam para identificar sua própria zona de conforto ético e descobrem que ela pode não estar no mesmo lugar. O diretor realiza  um excelente trabalho ao fazer Savannah ganhar vida. 


Clint Eastwood concentra todo o seu talento atrás das câmeras e assina um filme estranho e atípico, mas acima de tudo hipnótico. Meia-noite no Jardim do Bem e do Mal é um longa-metragem que desliza suavemente por seus 155 minutos de filmagem; sem grandes choques, mas com solidez exemplar e transmitindo a todo o momento uma segurança espantosa na direção, que contrasta com a incerteza que apodera o espectador durante o desenvolvimento da sua trama. Com o longa, Eastwood, foi além dos dramas de tribunal e capturou uma fatia de vida peculiar, mas envolvente.