quinta-feira, 5 de dezembro de 2024

Nighthawks (Reino Unido/Alemanha Ocidental, 1978)

CRÍTICA | Nighthawks: Entre a marginalização e a liberdade do desejo

Por José Marcelo Morato 

Nighthawks é um artefato cinematográfico e culturalmente fascinante que captura um momento muito específico da história queer britânica: o ano é 1978, onze anos após a aprovação do Sexual Offences Act de 1967, que descriminalizou parcialmente os atos homossexuais entre homens com 21 anos ou mais, desde que ocorressem de maneira privada e consensual, e há apenas três anos do advento da epidemia de HIV/AIDS. Nesse contexto, o diretor britânico Ron Peck oferece não apenas um reflexo de sua época, mas também um testemunho das tensões e transformações que moldaram a identidade queer no Reino Unido. 

O filme investiga as fronteiras entre liberdade sexual e medo do desconhecido, além de abordar a marginalização e o desejo de aceitação das identidades dissidentes na sociedade inglesa. Com uma abordagem quase documental, a direção de Ron Peck e a fotografia de Joanna Davis constroem uma obra experimental que combina drama e reflexões sobre a vida noturna, identidade sexual e busca por conexão, capturando com sensibilidade o cenário urbano de uma Londres em transformação, em meio a intensas mudanças sociais e culturais. 

Derek Jarman, figura central na cena cinematográfica queer britânica, contribuiu significativamente no elenco para o feito de Nighthawks. Participando do do filme, ele retrata a vida noturna queer de Londres com uma sensibilidade única. Sua performance, marcada por intensa emoção, reforça seu estilo de abordar temas pessoais e políticos, consolidando sua relação com o cinema independente britânico da época. Mais do que uma mera participação, a atuação de Jarman - seja como artista ou colaborador criativo - simboliza o cinema como espaço de insurgência. Identidades queer encontram ali voz e imagens para expressar histórias marginalizadas, desafiando normas estabelecidas. Sua presença no filme também reafirma o papel do cinema queer como um movimento estético e social, que ressignifica narrativas e projeta novas possibilidades de existir e resistir. 


O protagonista Jim, interpretado com uma contenção intensa por Ken Robertson, é o espelho vivo dessa contradição. Dividido entre seu trabalho como professor em uma escola secundária - um espaço inescapavelmente heteronormativo - e o vibrante, porém vulnerável, mundo dos bares e discotecas da emergente vida noturna queer da Londres dos anos 1970. Durante o dia, Jim apresenta-se como um homem discreto e profissional. Ele é respeitado pelos alunos e colegas, mantendo uma postura que reflete o decoro esperado de um educador. No entanto, há um subtexto de distanciamento emocional em suas interações na escola. Embora Jim seja competente e dedicado, ele quase nunca permite que os outros se aproximem de verdade. Essa separação é uma estratégia de autopreservação, já que revelar sua sexualidade em um ambiente predominantemente heteronormativo poderia trazer consequências profissionais e sociais severas. No entanto, sua aproximação com a também professora secundarista Judy (Rachel Nicholas James), Jim começa a experimentar outras relações sociais. A relação entre ela e Jim começa como uma amizade que, ao longo do filme, revela camadas de uma conexão mais complexa, marcada pela busca por intimidade e pela luta contra os padrões heteronormativos. A vida não-normativa de Jim faz Judy repensar seu papel como mulher na sociedade britânica, confrontando as limitações impostas pelas expectativas sociais. Isso a leva a questionar a repressão e as normas de gênero, estimulando uma reflexão sobre sua liberdade de expressar desejos e identidade fora do conformismo social. 


À noite, nos clubes e bares gays, Jim adota um comportamento mais descontraído e em busca de intimidade com outros rapazes, mas ainda assim marcado por um senso de reserva emocional. As conversas despretensiosas, embora regadas pela música alta e pelas luzes neon que dominam os espaços noturnos, muitas vezes, são permeadas por uma sensação de efemeridade. As conexões que ele tenta estabelecer são frequentemente superficiais, limitadas a encontros casuais que não oferecem o tipo de vínculo emocional profundo que ele deseja, mas hesita em buscar de forma direta. Essa dualidade é emblemática da experiência de muitos homens gays da época, que precisavam equilibrar a conformidade com as expectativas sociais e a busca por autenticidade em suas vidas privadas. Assim, nota-se que Jim é um retrato autêntico de uma vida vivida em compartimentos estanques, uma vida em que a autoaceitação é um privilégio que ele mal ousa tocar. 



Nessa Londres Pré-HIV/Aids, Peck cria um contraponto ao "universo queer", excessivamente, fetichizado e estereotipado de Cruising (1980), do cineasta estadunidense William Friedkin, oferecendo, em vez disso, um retrato cru e profundo das forças psicológicas e sociais que coagem homens gays a existirem em um limbo, entre a fachada e o anseio pela autenticidade de sua sexualidade. Peck e o roteirista Paul Hallam optam por um realismo quase documental, que insere o espectador em uma narrativa sem artifícios ou glamourização, um cenário em que o peso do armário é traduzido em olhares furtivos, diálogos hesitantes e uma busca por conexão que, paradoxalmente, permanece restrita ao anonimato. Peck não procura provocar nem dramatizar; ele permite que Jim transite por seus dias e noites com uma normalidade entorpecida, expondo o espectador a uma intimidade que, de maneira irônica, reflete a completa impossibilidade de ser genuinamente íntimo. A atmosfera quase insular do filme faz com que Londres pareça uma bolha de tensão latente e resignação, cada espaço que Jim ocupa parece marcá-lo com o peso de uma vida reprimida, uma existência construída na aceitação passiva da marginalização. Dessa maneira, o filme desafia o espectador a perceber, sentir o desconforto e, até talvez, refletir sobre as rachaduras que o preconceito social e o silêncio de suas vítimas causam no processo da experiência humana. 


Além de sua contribuição narrativa e estética, o som exerce uma função essencial na construção das cenas noturnas nos bares e discotecas queer que Jim frequenta. Os sons diegéticos, como as jukeboxes, as conversas abafadas e o som das pistas de dança, são elementos que não apenas situam o espectador no ambiente londrino da época, mas também criam uma experiência sensorial imersiva, permitindo uma conexão direta com a vida noturna e social do protagonista. Esses sons, provenientes diretamente do espaço diegético (ou seja, dentro do universo da narrativa), desempenham um papel vital em revelar a complexidade da identidade de Jim e as dinâmicas sociais de sua vivência.


A sobrecarga de sons - desde o som do público conversando até os ritmos pulsantes da música eletrônica e disco - sugere a efemeridade das conexões e encontros nas cenas sociais. Aqui, o som funciona como um símbolo do dinamismo externo desses ambientes, ao mesmo tempo em que ressalta a solidão interna de Jim, que permanece afastado e distante, mesmo cercado por outras pessoas. Ainda mais, os sons presentes na trilha sonora de Nighthawks ecoam a estética das bandas indie britânicas do final dos anos 1970, refletindo um momento de grande experimentação musical. O movimento indie, com suas influências do pós-punk e do new wave, estava começando a ganhar força, com o uso de sintetizadores e outras texturas eletrônicas que simbolizavam uma ruptura com os padrões musicais tradicionais. Essa estética experimental ressoava com o espírito de transformação cultural da época e com a tensão entre liberdade e repressão nas questões de sexualidade e identidade. Ao incorporar esses sons, o filme não só insere seu protagonista dentro de um momento cultural específico, mas também dialoga com as mudanças sociais e políticas que estavam sendo vividas naquele período. Assim, Nighthawks se torna um exemplo de como o som no cinema não é apenas um recurso de ambientação, mas um elemento fundamental na construção da narrativa, ajudando a expressar a complexidade da identidade, da solidão e da busca por pertencimento. 


Para aqueles interessados em entender como o cinema reflete e questiona o contexto histórico e social, Nighthawks se apresenta como uma obra essencial do cinema queer. A produção não apenas explora as contradições de sua época, mas também incita uma análise profunda sobre os desafios contemporâneos ligados à liberdade sexual, à discriminação contra minorias e à luta por respeito e inclusão das diversas identidades na sociedade. Com uma narrativa marcada, muitas vezes, pelo silêncio e repleta de subtextos, a obra transcende seu tempo, funcionando como um espelho e, simultaneamente, um catalisador para discussões a respeito de gênero e de sexualidade. 


Desse modo, ao desbravar o território entre o acolhimento e a marginalização, o filme convida o público a reavaliar suas próprias percepções e a refletir sobre o caminho ainda a ser percorrido na luta por um futuro mais inclusivo e compreensivo. Para os amantes do cinema e os estudiosos da cultura queer, Nighthawks é uma peça essencial, capaz de abrir novas portas para discussões que permanecem tão relevantes hoje quanto há 40 anos.




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