CINEMATOGRAFIA QUEER: É impossível não traçar um paralelo entre Paris is Burning e Salão de Baile. Houve algum tipo de inspiração no icônico documentário de 1990?
Vitã: Paris is Burning é uma ref incontornável pra qualquer pessoa que faça parte da comunidade ballroom. É um documento precioso que mostra os bailes nos anos 80 e possui depoimentos de icons da nossa cultura. Eu já perdi as contas de quantas vezes assisti! Mas é também um filme que foi muito criticado e discutido, nós tomamos vários cuidado éticos pra não repetir os erros desse projeto, até porque ele foi feito por pessoas que não faziam parte da cena ballroom, e o nosso filme foi feito junto com a cena. Durante o processo de produção, nos afastamos dessa referência, só que na fase de edição nós voltamos ao Paris is Burning e estudamos bastante pra chegar num formato de longa-metragem.
CQ : A cultura ballroom é relativamente nova no Brasil, como filmar isso, sem que soe como apropriação de uma arte já amplamente divulgada na cena nova iorquina?
Juru: A cena ballroom está presente hoje em países do mundo todo. França, Dinamarca, China, México, Chile, Moçambique. Existe um movimento muito forte de conexão com as pessoas pioneiras tanto de Nova York quanto de Paris, que é um dos lugares mais bem estabelecidos enquanto cultura ballroom fora do EUA. Elas já vieram inúmeras vezes ao Brasil, assim como pessoas daqui já se deslocaram até essas cenas para aprender e trocar com aquelas que pavimentaram e construíram os fundamentos dessa cultura. Lembro de uma oficina com Lasseindra Ninja, aqui no Rio, em que ela disse que devíamos construir a ballroom do nosso jeito, de uma forma que fizesse sentido pra gente, pras nossas questões e nossos corpos. Isso é muito bonito. Akira Avalanx, pioneira da cena ballroom de Campinas, também fala muito disso: temos que entender e respeitar essa cultura que vem de fora, mas é preciso também aprender a como torná-la nossa. Acho que a ballroom brasileira está nesse caminho.
CQ: As sequências de pistas e os depoimentos dos integrantes das Casas, contrastam principalmente em sua estrutura. A intenção é mostrar duas realidades?
Vitã: Como diz a Legendary Imperatriz Lua Brainer, a ballroom é um mundo paralelo. Ela tem um funcionamento próprio, mas no filme a gente transita entre a realidade e o realness, entendendo que são dimensões que coexistem. Quem é da ballroom, carrega essa cultura no seu dia a dia, 24 horas, a semana toda, e a ball é uma potencialização disso.
Juru: Os bailes são o momento do brilho, do glamour. E também o momento em que algumas rivalidades vêm à tona. Mas é no dia a dia que se constroem os laços, em que se constroem as performances, em que se rala para treinar para as categorias… e é no dia a dia que a vida das pessoas vai se transformando. Na época em que eu competia em Runway, lembro de passar a semana inteira que antecedia as balls em êxtase, treinando, preparando meu figurino. Então o baile é um momento de explosão, de muito brilho, mas só acontece porque tem muita construção que leva até esse lugar. E as entrevistas e as cenas do cotidiano tentam mostrar isso. As entrevistas são um espaço também para as pessoas, elaborarem suas experiências, e nisso achamos um outro tipo de brilho, um lugar menos glamouroso, mas igualmente potente: as formas de dar sentido à vida através da ballroom. Isso é muito poderoso e nos encantou tanto quanto as performances nos bailes.
CQ: O filme tem uma identidade muito brasileira, com as categorias adaptadas, pitadas de funk e pajubá. Como foi salientar esses aspectos?
Juru: Acreditamos que a ballroom fluminense, apesar de recente, já tem sua própria cara. São corpos diferentes, influências diferentes, mas que se conectam com a ballroom por esse aspecto afrodiaspórico. Hellfeti e Legendary Lua Brainer falam bastante disso no filme: a ballroom americana é uma cultura do povo preto LGBT dos EUA, mas essa cultura se conecta também com o funk, com a música preta brasileira de forma geral. A cena daqui tem construído essas pontes. No filme trazemos uma categoria especificamente carioca, o Batekoo, que é uma mistura de funk com twerk e todas as tecnologias de balançar a raba brasileiras. Mas existem outras categorias brasileiras: Brazilian Runway, um jeito específico de modalidade de desfile, Samba No Pé, Capoeira-Vogue, Vogue Funk, entre muitas outras categorias que estão em processo de criação. A ballroom é um lugar em que as coisas estão vibrando e em constante transformação, como diz Upcoming Legend Patfudyda Mamba Negra, no nosso filme.
CQ: Como avaliam a importância das Casas de Acolhimento para pessoas LGBTQIA+ em estado de vulnerabilidade e como isso pode transformar vidas?
Vitã: As casas são famílias alternativas, que vão se construindo por afinidades e afetos. Cada casa tem o seu jeitinho de ser, que tem muito a ver com as lideranças, que podem ser mãe, pai, princesa, príncipe, imperatriz, etc. Fazer parte de uma casa traz uma sensação de pertencimento, você cria laços profundos com aquelas pessoas, que podem ajudar quem estiver passando por uma situação complicada. E é muito comum pessoas LGBTQIAPN+ passarem por atravessamentos com suas famílias biológicas, então a família ballroom funciona como uma rede de apoio poderosa. Mas não podemos romantizar: tem amor, tem afeto, mas tem treta também e é isso.
CQ: Salão de Baile exalta ícones da cultura negra e ballroom como Crystal LaBeija, qual é a importância de apresentar para as novas gerações, pessoas que abriram o caminho, com muita luta, lá atrás?
Vitã: A gente tem poucos registros do início da cultura ballroom, a maior parte do que sabemos sobre o passado foi transmitido de geração em geração pela oralidade. Mas nós temos a consciência da importância de celebrar nossas ancestrais, inclusive nossas transcestrais. É graças a elas que nós estamos aqui hoje. Então no filme a gente fez questão de mencionar a Crystal LaBeija, por ser considerada uma das fundadoras da cultura. Mas em todo baile, logo no início, a gente celebra as vidas das pessoas que são referências e que estão presentes, como pioneires e legends.
CQ: O filme finalmente está chegando aos cinemas em 5 de dezembro. Como é conseguir levar o projeto para o circuito comercial, um espaço ainda limitado para vivências LGBTQIA+?
Vitã: A gente tá muito feliz com esse lançamento comercial, é tipo um sonho que nem sabíamos que era possível de ser sonhado. E agora se tornou real, graças ao trabalho de uma equipe maravilhosa que abraçou o projeto e tá fazendo acontecer. Sabemos que é um desafio levar o público pra sala de cinema, principalmente depois da pandemia, mas o que posso garantir é que no caso de Salão de Baile, vale MUITO a pena ver no cinema, com uma boa projeção, um bom sistema de som. A gente trabalhou bastante nessa parte técnica pra garantir uma experiência de imersão pra quem for assistir. Desde que o filme começou a passar nos festivais, tivemos retornos super positivos do público, de diferentes partes do mundo. As sessões têm sido calorosas, as pessoas interagem com o filme, choram, riem, é muito emocionante.
Juru: Diria que é difícil circular não só com um filme LGBT, mas enquanto filme brasileiro mesmo. É uma conquista enorme chegar aos cinemas. Estamos com previsão de entrar em cartaz em muitas cidades, mas pedimos que as pessoas dos lugares onde ainda não foram anunciadas sessões, que peçam aos seus cinemas locais para programarem. Isso ajuda bastante a gente. E peçam não só sessões do nosso filme, mas de cinema brasileiro LGBT de forma geral. Os distribuidores ainda têm resistência a ambos os recortes, filmes nacionais e filmes LGBTs. Tem muito espaço ainda pra reconquistar, mas as brasileiras, brasileiros e brasileires merecem se ver na tela, é um direito nosso.
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