quarta-feira, 5 de novembro de 2025

The Ice Tower (La Tour de Glace, França/Alemanha/Itália, 2025)


A diretora Lucile Hadžihalilović tece em “The Ice Tower” uma fábula gelada onde o outsider não espera o abraço da norma, ele exige sua própria câmara de ecos e gelo. Ambientado nos anos 70, numa montanha isolada em que uma órfã, Jeanne (Clara Pacini), foge de um lar de acolhimento e invade o set de um filme inspirado em A Rainha da Neve, esse longa-metragem é sobre a atração pelo outro que jamais se dobra.

Jeanne vê em Cristina (Marion Cotillard), a estrela que interpreta a Rainha de Neve, não apenas uma musa, mas um abismo de desejo e espelho possível. Cristina não está para ser salva nem revolucionada, está para ser vista  e para saciar, talvez matar, o que Jeanne procura: vida que nunca lhe foi dada. Essa dinâmica feminina é intensa, marcada por fascínio e devoração, onde o beijo entre as duas adquire contornos vampíricos, predatórios e profundamente queer.

A fluidez de gênero e identidade corre em veias visadas pelo filme: Hadžihalilović combinou os dois personagens da história de Andersen num só,  Jeanne transita entre menino e menina, sombra e corpo. Essa construção borra as fronteiras, e o que parecia refúgio infantil torna-se campo de experimentação queer: corpos híbridos, desejos que não se encaixam, modos de ser que escapam a categorias.

A cinematografia de “The Ice Tower” eleva o estético ao nível do símbolo: o branco névoa, o gelo que trinca, os corredores de set que parecem galerias de espectros, espelhos que não mostram, revelam. A água congelada, o estúdio artificial, o cenário de conto de fadas virado delicado pesadelo, tudo isso serve à política do olhar queer, ao potencial revolucionário do que não cabe.

E se as falhas existem,  ritmo lento, narrativa que se dissolve em símbolos, elas não apagam o gesto: Hadžihalilović não busca apenas contar, busca desestabilizar. Cada aproximação entre Jeanne e Cristina é risco, cada enquadramento, um convite à identificação e à estranheza. O filme não oferece conforto, oferece reconhecimento.

A metalinguagem em “The Ice Tower” é uma teia onde cinema e vida se confundem, e onde o filme-dentro-do-filme se torna uma parte fraturada da identidade em formação. Gaspar Noé aparece como o cineasta de peruca. O set do filme dentro do filme, “A Rainha da Neve”, e o mundo das personagens externas são, de fato, uma continuidade emocional, o que se passa “na realidade” se reflete numa camada ficcional e vice-versa.

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