sexta-feira, 1 de agosto de 2025

No Dogs Allowed (Alemanha, 2024)


Esta análise aborda “No Dogs Allowed”, um filme que trata da pedofilia com foco na prevenção e na complexidade psicológica, sem romantizar ou justificar o tema. A análise busca discutir a representação cinematográfica, incentivando reflexões sobre saúde mental e apoio, não endossando o assunto.

Hesitei em publicar este texto, mas se Gregg Araki enfrentou o tema em “Mistérios da Carne” (2004) e Marco Berger flertou com ele em “Ausente” (2011), por que não usar coragem para expor, sem exaltar, uma obra que provoca no contexto do cinema queer? "No Dogs Allowed", estreia do diretor Steve Bache,vai de cabeça no tema espinhoso da pedofilia, abordando-o sob a perspectiva de Gabo (Carlo Krammling), um adolescente de 15 anos que descobre, para seu desespero, ser atraído por crianças mais novas, como Sam (Sammy Schrein), o irmão caçula de seu melhor amigo Sebbo (Sean Douglas). O filme combina elementos de um drama de amadurecimento com um thriller psicológico, desafiando o espectador a confrontar um assunto que raramente é tratado com nuances no cinema.

Gabo é um adolescente comum: vai à escola, joga videogame e lida com os conflitos familiares com sua mãe, Susanne (Katharina Marie Schubert), e sua irmã, Emi (Bineta Hansen). Sua luta interna, porém, o isola. Incapaz de compartilhar seus desejos proibidos com quem o cerca, ele encontra refúgio em fóruns online, onde conhece Dave (Robin Sondermann), um homem carismático, mas manipulador, que também é pedófilo.

O filme acerta ao tratar Gabo como uma figura complexa: vítima de seus próprios impulsos, mas consciente de sua gravidade. A narrativa, inspirada em fatos reais, enfatiza a importância da prevenção e da desestigmatização para evitar que pessoas com inclinações pedófilas se tornem de fato abusadores.

Um dos maiores méritos de ‘No Dogs Allowed’ é sua tentativa de abrir um diálogo sobre um tema tabu, mostrando como a falta de apoio psicológico pode tornar jovens como Gabo vulneráveis a influências perigosas. Mas há um risco, o filme escorrega ao incluir cenas que, embora realistas, podem ser interpretadas de forma voyeurística por pedófilos, como momentos em que crianças são filmadas em contextos aparentemente inocentes, mas potencialmente gatilhos sexualizáveis. Essa contradição sugere uma falta de cuidado.

Além disso, o filme apresenta um dilema binário para Gabo, buscar ajuda e expor sua condição ou reprimir seus desejos, correndo o risco de se tornar um agressor. “No Dogs Allowed" é um filme provocativo que merece crédito por sua ousadia, mas é com certeza indigesto. Ele abre uma janela necessária para um tema difícil, apesar de algumas escolhas limitarem o impacto, Bache entrega um cinema que desafia preconceitos e provoca reflexões desconfortáveis, destacando a necessidade de mais diálogo sobre prevenção e apoio psicológico.

quinta-feira, 31 de julho de 2025

Heroico (México/Suécia, 2023)

 "Heroico", de David Zonana, é um drama mexicano devastador que expõe o sistema militar com uma crítica social afiada. A narrativa segue Luís (Santiago Sandoval), um jovem indígena de 18 anos que ingressa no Colégio Militar Heroico em busca de um plano de saúde para a mãe doente. Premiado com o Fipresci no Festival de Guadalajara 2023, o filme disseca a desumanização dos cadetes, revelando um ambiente de violência física e psicológica que molda soldados sob o pretexto de “fazer homens”. A direção de Zonana, aliada à fotografia crua de Carolina Costa, cria uma atmosfera opressiva, com sequências oníricas que flertam com o terror psicológico, capturando a angústia de Luís em um sistema que o destrói.

A escolha do elenco é uma das grandes forças do filme. O diretor escalou não atores, incluindo militares e ex-militares do próprio Colégio Heroico, conferindo um realismo visceral às cenas. Santiago Sandoval, como Luís, entrega uma atuação contida, mas devastadora, transmitindo o peso de um jovem preso entre a necessidade familiar e a brutalidade institucional.

A representação queer em "Heroico" emerge nas tensões homoeróticas e reprimidas entre Luís e Mario, exploradas por Zonana com planos próximos, cenas de nudez e interações físicas entre soldados que intensificam o subtexto sexual. Nos chuveiros e treinos, corpos expostos e olhares prolongados criam uma atmosfera carregada, onde o desejo é sufocado pelo machismo militar. A relação de poder entre Luís e Mario, marcada por toques ambíguos e uma cena de coação com subtexto erótico, sugere uma sexualidade reprimida que se manifesta em violência.

A essência crítica do filme reside na denúncia do machismo e da violência sistêmica. O lema “não vão apenas se tornar oficiais, vão se tornar homens” ressoa como um mantra tóxico, associando masculinidade a brutalidade, humilhação e até assassinato. As mulheres cadetes, excluídas das novatadas, são relegadas a um papel secundário, evidenciando um machismo velado.

A saúde mental é outro pilar central da narrativa, com Luís enfrentando um colapso gradual sob o peso da violência e da culpa. As sequências oníricas, com closes claustrofóbicos e iluminação sombria, traduzem sua deterioração psicológica, enquanto a coação de Mario o isola de seus colegas, criando uma tensão ambígua: o “favor” do oficial é tanto proteção quanto armadilha.

"Heroico" é um filme incômodo, que transcende o gênero militar ao confrontar machismo, violência institucional e saúde mental. Sua estreia em Sundance e prêmios em Guadalajara destacam sua potência crítica. O longa é uma colaboração poderosa ao cinema latino-americano, desafiando normas e expondo as cicatrizes de um sistema que molda não apenas soldados, mas identidades.

quarta-feira, 30 de julho de 2025

The Life of Sean DeLear (Áustria, 2024)


"The Life of Sean DeLear", do austríaco Markus Zizenbacher, é um documentário que captura a essência de uma figura singular da cena underground de Los Angeles dos anos 1990 e 2000. Sean DeLear, artista negro e queer, é apresentado através de uma colagem de imagens de arquivo, diários em vídeo gravados pelo próprio e depoimentos de amigos e contemporâneos. O filme não apenas celebra a vida de DeLear, mas também oferece um vislumbre de uma subcultura pulsante que moldou a identidade de uma geração.

A narrativa do longa é estruturada em dois tempos: o passado, reconstruído por meio de imagens caseiras e trechos dos diários de DeLear, e o presente, com entrevistas que refletem sobre seu impacto. A escolha de Zizenbacher de manter uma cronologia com desvios permite que o filme navegue pela vida de DeLear sem se prender a uma linearidade rígida. As imagens de arquivo, muitas capturadas pelo próprio DeLear, funcionam como uma cápsula do tempo, transportando o espectador para as noites frenéticas de Los Angeles, marcadas por música punk, arte transgressora e uma busca incansável por liberdade.

Sean DeLear, conhecido carinhosamente como SeanDe, é retratado como um ícone de estilo e presença magnética, mas o documentário não ignora as sombras de sua trajetória. A relação complexa com a família, marcada pela perda precoce do pai e pela incompreensão da mãe e do irmão, é abordada com sensibilidade, assim como os desafios de ser um artista queer em um contexto onde o HIV era uma ameaça constante. A melancolia que permeia alguns momentos, especialmente nas leituras do diário, contrasta com a energia celebratória do artista, criando um retrato multifacetado.

Apesar de seus méritos, alguns pontos poderiam melhorar. "The Life of Sean DeLear" às vezes se perde em transições abruptas entre entrevistados, diluindo o impacto das imagens de arquivo. Ainda assim, a escolha de ambientar as conversas em espaços cotidianos nos depoimentos, confere ao filme uma sensação de intimidade.

O que diferencia "The Life of Sean DeLear" de outros documentários sobre artistas é seu foco em uma figura de nicho, cuja relevância reside menos em feitos grandiosos e mais em sua presença transformadora. DeLear, com sua banda punk Glue & Drag e sua participação em círculos artísticos, não alcançou a fama mainstream, mas isso é exatamente o que torna sua história tão potente.

Em seus 82 minutos, o filme consegue ser um tributo honesto e um documento histórico. Ele não busca mitificar DeLear, mas sim apresentar um artista que viveu com intensidade, enfrentando traumas, lutas financeiras e a busca por uma família escolhida. Com sua narração serena e tom casual, o filme aborda um mundo específico, mas fala de experiências universais de resistência e celebração.

terça-feira, 29 de julho de 2025

19º For Rainbow: Fortaleza celebra a diversidade com cinema, cultura e resistência

De 22 a 29 de agosto, Fortaleza se transforma em um polo de reflexão e celebração da diversidade sexual e de gênero com a 19ª edição do For Rainbow – Festival de Cinema e Cultura da Diversidade Sexual e de Gênero. Realizado no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura, o evento, um dos mais relevantes no Brasil para a temática LGBTQIAI+, apresenta uma programação robusta com 61 filmes, divididos em mostras competitivas e paralelas, além de shows, oficinas, lançamentos de livros e espetáculos teatrais.

A Mostra Competitiva Internacional de Longas-Metragens, reúne sete produções de alto impacto, com destaque para cinco filmes brasileiros que exploram diversas facetas da experiência queer. "Apenas Coisas Boas" (GO), de Daniel Nolasco, mergulha em narrativas gays com uma abordagem ficcional, enquanto "Nem Toda História de Amor Acaba em Morte" (PR), de Bruno Costa, e "Salomé" (PE), de André Antônio, trazem perspectivas amplas, respectivamente. O documentário "As Primeiras" (SP), de Adriana Yañez, e o híbrido "Explode São Paulo, Gil" (SP), de Maria Clara Escobar, que abre a competição, completam a seleção nacional. A mostra ainda conta com o colombiano "Brigitte's Planet B", de Santiago Posada, e o holandês "Me chame de Agnes", de Daniel Donato, ambos documentários que enriquecem o diálogo global sobre identidades trans e lésbicas.
.

A Mostra Competitiva Internacional de Curtas-Metragens complementa a programação com 22 títulos, dos quais 14 são brasileiros, destacando a diversidade regional com produções de Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, Ceará, Pará e Rio Grande do Sul. Filmes como "Carne Fresca" (RJ), de Giovani Barros, e "Noroeste - Quem Nasce Tempestade, Não Tem Medo de Vento Forte" (SP), de Cibele Appes, abordam temáticas gays e trans, enquanto "Como Nasce Um Rio" (BA), de Luma Flôres, e "Rose e Maria" (CE), de Magi do Carmo, exploram narrativas lésbicas. A seleção internacional inclui obras de Argentina, Filipinas, França, Itália, Myanmar, Polônia, Turquia e uma coprodução hispano-alemã. A curadoria, conduzida por Galba Gogóia, Layla Braz e Sunny Maia, selecionou 29 concorrentes entre 1.508 inscritos de 90 países, evidenciando o alcance e a relevância do festival.

Além das mostras competitivas, o For Rainbow oferece quatro mostras paralelas que ampliam o espectro temático. A Mostra Cearense exibe 13 filmes locais, incluindo ficções como "Estrangeiro", de Edigar Martins, animações como "Arcad'água", de Paulo Carter, documentários como "Olho Vivo", de Jéssica Teixeira e João Fontenele, experimentais como "Ninguém na Família Nunca Morreu de Amor", de Mayra Sena Fernandes, um clipe ("Só de Calcinha - Luiza Nobel", de Amorfas) e um filme de dança ("Rainha do Milho", de Eduardo Bruno).  As duas últimas mostras desta edição do For Rainbow são a Mostra de Filmes Convidados, apresentando em primeira mão os filmes Carlinha e André, de Ricky Mastro e Secundária, de Amanda Pontes e Michelline Helena. Já a Mostra Duplo Orgulho, agrega filmes produzidos por e sobre pessoas LGBTI+ de comunidades tradicionais e/ou protagonistas de manifestações de cultura popular.

Com um júri formado por Alice Chiappetta, Elaine do Carmo, Luis Alejandro Yero, Roberta Marques e Verónica Valenttino, o For Rainbow consolida-se como um espaço de resistência e visibilidade. Exibindo todos os 61 filmes no Cinema do Dragão e oferecendo eventos culturais gratuitos na Arena do Dragão, o festival convida Fortaleza a se engajar em narrativas que desafiam normas, celebram identidades e promovem transformação. Em um mundo onde a luta por direitos LGBTQIA+ permanece urgente, o For Rainbow reafirma o poder do cinema e da arte como ferramentas de diálogo, inclusão e mudança social.

The Little Pageant That Could! (EUA, 2024)

O documentário "The Little Pageant That Could", de John Carlos Frey, resgata a trajetória do "Best in Drag Show", um evento que nasceu em 1990 como uma paródia improvisada do Miss América em um pequeno apartamento em West Hollywood. O que começou como uma brincadeira entre amigas tornou-se o mais antigo evento beneficente drag de Los Angeles, arrecadando milhões para a luta contra a AIDS.

Com produção executiva de Fenton Bailey e Randy Barbato, do World of Wonder, o filme celebra essa história improvável com um olhar atento e afetuoso.O conteúdo do documentário é rico em material inédito, abrangendo os 33 anos do concurso.

Cenas de arquivo são entremeadas por participações de celebridades como Chris Pratt, Jennifer Coolidge, Martin Sheen e Vanessa Williams, que atuaram como apresentadores ou jurados. Esses nomes reforçam o apelo cultural do evento, que, muito antes de "RuPaul’s Drag Race", já era uma referência em Los Angeles, misturando glamour e propósito social.

O "Best in Drag Show" vai além do entretenimento: é um marco de resistência. Surgido no auge da crise da AIDS, o espetáculo usou o humor e a arte drag para unir a comunidade LGBTQ+ em solidariedade. O filme de Frey captura essa essência, mostrando como o camp e a compaixão se entrelaçam para criar um impacto cultural que ressoa até hoje.

Para a comunidade queer, o documentário é um tributo à força do ativismo artístico. Ele destaca o papel da cultura drag, frequentemente estigmatizada, como ferramenta de inclusão e luta, oferecendo uma narrativa que conecta passado e presente. É uma celebração da resiliência e da criatividade que definem o espírito do evento.

A direção de John Carlos Frey equilibra bem humor e emoção, mas o filme tem seus pontos fracos. Algumas sequências se estendem além do necessário, diluindo o ritmo. Ainda assim, a sinceridade da obra compensa esses momentos, entregando um retrato envolvente de um show que transformou vidas com brilho e coragem. "The Little Pageant That Could" é uma homenagem necessária a um evento único e relevante. Com seu olhar bem-humorado e profundamente humano, o documentário não só registra a história do "Best in Drag Show", mas reforça a importância da comunidade em tempos de crise.

segunda-feira, 28 de julho de 2025

De Klas van 2000 (Bélgica, 2025)


 "De Klas van 2000" é uma minissérie belga que traça temas como identidade, aceitação e mudança social por meio de uma história íntima de coming-out. A trama se desdobra em dois períodos: 2000 e 2025. Em 2025, Seb, um pai, revela à filha Emma que é gay, desencadeando flashbacks de sua adolescência em 2000, quando enfrentava os conflitos de sua sexualidade em um ambiente pouco acolhedor. Semi-autobiográfica, inspirada nas vivências do criador Geerard Van de Walle, a série traz  um olhar sensível sobre as experiências de indivíduos LGBTQ+ em diferentes épocas.

A força da série está em sua habilidade de retratar a jornada de Seb. O tom semi-autobiográfico traz uma sinceridade que ressoa, especialmente nas cenas que exploram os dilemas internos do protagonista em um contexto de preconceito e repressão. A narrativa não hesita em mostrar as dores do passado, como o isolamento e o medo de ser descoberto, mas também aponta para um futuro de maior compreensão, criando um equilíbrio entre luta e esperança.

O elenco é um dos pilares da minissérie, com destaque para Felix Braeckman, que interpreta Seb na juventude, e Wouter Hendrickx, como o Seb adulto. Ambos entregam atuações que capturam as emoções complexas do personagem em diferentes fases da vida, desde a fragilidade adolescente até a serenidade da maturidade. A relação entre Seb e Dennis, seu primeiro amor, ganha vida graças à química convincente entre os atores.

A minissérie usa sua estrutura de duas linhas temporais para contrastar as atitudes sociais em relação à homossexualidade entre 2000 e 2025. Em 2000, vemos o bullying e a homofobia sutil que Seb enfrenta na escola, refletindo uma era de intolerância. Já em 2025, o reencontro com Dennis, agora casado com um homem, sugere avanços significativos na aceitação. Esse diálogo entre passado e futuro é bem executado, oferecendo uma crítica sutil à sociedade enquanto celebra o progresso, sem cair em lições moralistas.

Com apenas seis episódios de cerca de 10 minutos cada, a série pode parecer breve demais, deixando alguns personagens e temas subdesenvolvidos. Há também uma tendência ao melodrama em certas cenas introspectivas, o que pode soar exagerado para quem prefere uma abordagem mais contida.

"De Klas van 2000" é uma obra sensível e pertinente que combina emoção, boas atuações e um olhar atento às questões sociais. Seus pontos altos incluem a originalidade da narrativa, o talento do elenco e a reflexão sobre a evolução da aceitação LGBTQ+, em um país que está investindo com sucesso em tramas queer, a Bélgica.


domingo, 27 de julho de 2025

Mr. Burton (Reino Unido/Canadá/EUA/Irlanda, 2025)

“Mr. Burton”, de Marc Evans, é uma cinebiografia que retrata os anos de formação do lendário ator Richard Burton ( Harry Lawtey), com foco em sua relação com seu mentor, Philip Burton (Toby Jones). Ambientado na década de 1940 em Port Talbot, País de Gales, o filme segue o jovem Richard Jenkins (futuro Burton), enquanto descobre sua paixão pela atuação sob a tutela de um professor que se torna seu guardião legal. A narrativa entrelaça temas de ambição, identidade e as pressões sociais da época, oferecendo um olhar sobre a construção de um futuro astro em meio aos desafios de uma comunidade conservadora e operária.

Um elemento sutil, porém relevante, de “Mr. Burton” é a exploração de temas queer através da figura de Philip Burton. O filme insinua que Philip pode ser um homem gay reprimido, lidando com as normas rígidas da sociedade galesa dos anos 1940. Isso é sugerido por meio de atuações contidas e diálogos cuidadosamente elaborados, como os comentários homofóbicos da comunidade e a reserva emocional do próprio Philip. Uma cena em seu quarto, onde ele e Richard compartilham um momento de tensão ambígua, sugere sentimentos não expressos, embora o filme deixe claro que não há abuso.

O longa se destaca no desenvolvimento de seus personagens centrais, especialmente nas atuações de Toby Jones como Philip Burton e Harry Lawtey como o jovem Richard. Jones transmite com sutileza a dedicação e o tumulto interno de Philip, enquanto Lawtey retrata de forma convincente a evolução de Richard, de filho de minerador a aspirante a ator. A relação entre os dois é o núcleo emocional da obra, marcada por afeto e pelo peso das expectativas sociais.

Ambientado no País de Gales pós-Segunda Guerra Mundial, “Mr. Burton” retrata com eficácia as dificuldades econômicas e os valores conservadores da época. O filme contrasta as ruas cobertas de pó de carvão de Port Talbot com o mundo aspiracional do teatro, destacando a tensão entre os sonhos de Richard e sua origem humilde. Esse contexto é essencial para compreender os desafios dos personagens, como a resistência inicial do pai de Richard à sua carreira artística e a desconfiança da comunidade em relação à proximidade entre Philip e Richard. A homofobia latente da sociedade, sutilmente inserida nos diálogos e interações, reforça os obstáculos enfrentados por ambos, embora o filme por vezes apenas toque nesses temas sem os explorar plenamente.


A direção de Marc Evans é cuidadosa, com atenção especial à atmosfera e aos detalhes. A cinematografia de Hubert Taczanowski impressiona, utilizando as paisagens ásperas e melancólicas do País de Gales para refletir os conflitos internos dos personagens.

“Mr. Burton” é um filme reflexivo e tocante que explora o poder transformador da tutoria e as barreiras sociais de sua época. Sua abordagem sutil aos temas queer adiciona uma camada de complexidade, embora excessivamente contida. O longa presta homenagem ao impacto duradouro da orientação e às lutas silenciosas daqueles que desafiam normas sociais em busca de suas paixões.

sexta-feira, 25 de julho de 2025

AQUECIMENTO QUEER LION

Enquanto o Line Up oficial do Queer Lion 2025 não é divulgado, celebramos 10 vencedores da honraria máxima LGBTQIA+ no Festival de Veneza, que esse ano acontece de 27/08 a 09/09 na cidade italiana. Confira alguns dos filmes premiados, destacando a diversidade e potência do cinema queer.

2009 – Direito de Amar (Tom Ford, EUA)

Na Los Angeles dos anos 60, George, um professor universitário gay, enfrenta o luto pela perda de seu parceiro. Em um dia marcante, ele busca sentido na vida, em uma narrativa visualmente deslumbrante sobre amor, dor e dignidade.


2010 – En el futuro (Mauro Andrizzi, Argentina)

Este experimental argentino mistura documentário e ficção para explorar a sexualidade em episódios curtos. Com narrativas espontâneas, o filme celebra o amor, independentemente de ser hétero ou gay, em uma abordagem inovadora.


2013 – Philomena (Stephen Frears, Reino Unido)

Philomena, uma idosa irlandesa, busca o filho que lhe foi tirado na juventude. Acompanhada por um jornalista, ela enfrenta preconceitos, incluindo homofobia, em uma jornada comovente e bem-humorada sobre família e aceitação.


2014 – Les Nuits d'été (Mario Fanfani, França)

Na França dos anos 50, um advogado vive uma dupla vida como Mylene, uma mulher trans. O filme explora tensões entre tradição e transgressão, abordando com elegância as consequências de uma identidade secreta.


2016 – Corações de Pedra (Guðmundur Arnar Guðmundsson, Islândia)

Em um vilarejo islandês, dois adolescentes descobrem o amor e a sexualidade em meio à natureza e à repressão social. Um drama sensível sobre amizade, desejo e as dores do crescimento em um mundo conservador.


2018 – José (Cheng Li, Guatemala, EUA)

Na Guatemala, José, um jovem gay de 19 anos, vive um romance secreto com um trabalhador da construção. Preso entre a pobreza e a repressão, ele busca liberdade e amor em uma narrativa crua e comovente sobre desejo e esperança.

2019 – El príncipe (Sebastián Muñoz, Chile)

Na Chile dos anos 70, Jaime, um jovem preso por um crime passional, descobre amor e violência em uma prisão masculina. O filme mergulha nas dinâmicas de poder e desejo, oferecendo um retrato cru e intenso da queeridade.


2020 – The World to Come (Mona Fastvold, EUA)

No século XIX, duas mulheres casadas em uma zona rural dos EUA desenvolvem uma conexão profunda. O romance, marcado por isolamento e paixão, desafia as normas de sua época em uma narrativa delicada e emocional.


2023 – Housekeeping for Begginers (Goran Stolevski, Macedônia do Norte, Polônia, Croácia, Sérvia, Kosovo)

Uma família improvisada, liderada por um homem gay, acolhe duas meninas em Skopje. O filme combina humor e drama para explorar laços familiares, aceitação e as lutas de uma comunidade marginalizada.


2024 – Alma do Deserto (Mónica Taboada-Tapia, Colômbia, Brasil)

Único representante brasileiro da lista narra a luta de Georgina, uma mulher trans Wayúu, que enfrenta preconceitos em sua comunidade indígena. O filme celebra sua resistência e esperança, destacando a interseccionalidade entre identidade de gênero e cultura ancestral.


Esses filmes, premiados pelo Queer Lion, reforçam a importância de narrativas LGBTQIA+ que desafiam, emocionam e transformam. Fique de olho no Festival de Veneza 2025, e no CINEMATOGRAFIA QUEER, para mais histórias que celebram a diversidade!


Assexybilidade (Brasil, 2023)

 
"Assexybilidade", documentário de Daniel Gonçalves, abre com uma sequência hipnotizante, onde silhuetas dançam e se dissolvem, dando espaço a uma narrativa profundamente humana. Com uma abordagem poética e visualmente rica, o filme mergulha na sexualidade e nas experiências de pessoas com deficiência (PCD), desafiando preconceitos e celebrando a diversidade. A força da obra está em sua capacidade de tecer uma colcha de retalhos narrativa, composta por vozes potentes que compartilham histórias de rejeição, aceitação e desejo, afirmando que o prazer é um direito universal.

Através de entrevistas com figuras como Giovanni Venturini, Lele Martins e Luciana Viegas, "Assexybilidade" constrói uma polifonia que ressoa. Cada depoimento é um convite à reflexão sobre como a sociedade capacitista frequentemente nega a agenda sexual de pessoas com deficiência. O filme expõe, com sensibilidade e humor, os desafios práticos do cotidiano, como a dificuldade de abrir um preservativo ou a necessidade de assistência para momentos íntimos, sem perder de vista a humanidade e a dignidade dos envolvidos. Gonçalves, ele próprio uma pessoa com deficiência, dirige com um olhar íntimo que equilibra leveza e profundidade.

Um dos pontos altos do documentário é sua abordagem destemida da interseccionalidade entre deficiência e sexualidade, incluindo questões de gênero e orientação sexual. O filme destaca a conexão histórica entre as comunidades PCD e LGBTQIA+, ambas marcadas por lutas contra a marginalização. Contudo, o tom nunca é vitimista; pelo contrário, é uma celebração da potência e da criatividade na busca por prazer e autoafirmação.

"Assexybilidade" também desafia noções preconcebidas de beleza e normalidade. Uma participante deficiente visual redefine a estética ao descrever a beleza em termos de som, toque e cheiro, enquanto outro colaborador reflete sobre o fetiche em torno da deficiência, navegando entre o desconforto e a aceitação. Essas narrativas revelam como pessoas com corpos não normativos muitas vezes desenvolvem uma compreensão mais profunda da complexidade humana, desmontando tabus e questionando padrões heteronormativos. A dança, seja nua em um palco ou seminua em praça pública, emerge como um símbolo poderoso de redefinição da beleza e da liberdade.

O filme é, acima de tudo, um convite à empatia e à desconstrução de preconceitos, uma obra que desmorona o mito do corpo perfeito e afirma a multiplicidade do desejo humano. Daniel Gonçalves entrega um documentário que é um manifesto político, mas também uma celebração da vida, lembrando que o sexo, o amor e a beleza são experiências profundamente pessoais.

quarta-feira, 23 de julho de 2025

O Deserto de Akin (Brasil, 2024)


 “O Deserto de Akin”, do capixaba Bernard Lessa, é um drama queer que explora os dilemas de identidade e pertencimento em um Brasil marcado pela ascensão da extrema direita. A história segue Akin (Reynier Morales), um médico cubano que presta serviços a uma comunidade indígena no Espírito Santo pelo programa Mais Médicos, iniciativa criada no governo Dilma Rousseff e interrompida pelo inelegível. Em 2018, com o fim da cooperação entre Brasil e Cuba, Akin se vê em uma encruzilhada: retornar a Cuba ou permanecer em um país onde sua identidade, cubano, negro e queer, é alvo de ataques sistemáticos. O filme, inspirado em fatos reais, usa essa premissa para refletir sobre imigração e resistência.

Reynier Morales é um destaque como Akin, trazendo uma atuação que combina dúvida e determinação. Sua performance, premiada no Festival do Rio 2024 como Melhor Ator, é o ponto alto do filme, transmitindo as emoções de um homem dividido entre dois mundos. Bernard Lessa dirige com sensibilidade, criando uma narrativa que entrelaça o drama pessoal de Akin com o contexto político de um Brasil polarizado. A escolha de locações no Espírito Santo, como comunidades indígenas e paisagens naturais, reforça a sensação de isolamento e conexão que permeia a história.


O filme homenageia os médicos estrangeiros do programa Mais Médicos, destacando sua importância para comunidades vulneráveis. A interrupção do programa por Bolsonaro, motivada por disputas ideológicas, é o catalisador da trama, expondo as consequências humanas de decisões políticas. Akin, como cubano, negro e queer, personifica os grupos minorizados que se tornaram alvos da extrema direita durante esse período. A obra reflete sobre como o racismo, a xenofobia e a homofobia se intensificaram no Brasil de 2018, oferecendo um retrato crítico e humano desse momento histórico.


A trama também explora os laços que Akin constrói no Brasil, especialmente com Érica (Ana Flavia Cavalcanti) e Sérgio (Guga Patriota), brasileiros que o acolhem em sua jornada. Esses personagens trazem momentos de leveza e afeto, contrastando com a tensão do contexto político. Embora o filme sugira um triângulo afetivo, essa dinâmica não é plenamente desenvolvida, o que pode deixar o público querendo mais profundidade.

A estética de “O Deserto de Akin" é enriquecida pela fotografia de Heloísa Machado, que captura a beleza e a aridez das paisagens do Espírito Santo, simbolizando o isolamento de Akin. A trilha sonora, com canções interpretadas por Reynier Morales, adiciona uma camada emocional à narrativa, conectando as culturas cubana e brasileira.

“O Deserto de Akin” é uma obra sensível e politicamente relevante, que transforma a história de um médico cubano em uma poderosa reflexão sobre imigração, identidade e resistência. O filme se destaca por sua abordagem humana e por jogar luz sobre o impacto do desmonte do Mais Médicos.



terça-feira, 22 de julho de 2025

Azul de Niño (Espanha, 2025)

 

"Azul de Niño", o longa-metragem de estreia de Raul Guardans, é uma comédia sombria, tecendo uma narrativa que mistura amor, traição e revelações inesperadas. A trama segue Natalia (Eva de Luis), uma mulher que, após anos desejando um filho, descobre que seu marido Ernesto (Tony Corvillo) mantém um caso. Armando-se de coragem, vinho e cigarros, ela convida a suposta amante para um confronto, apenas para ser surpreendida por Daniel (Raul Guardans), um jovem trabalhador do sexo que abala suas convicções. Quando Ernesto sofre um derrame e acaba na UTI, esposa e amante convergem ao seu leito, desvendando uma teia de segredos e emoções reprimidas. É uma premissa instigante, carregada de potencial dramático e humorístico, que promete explorar as complexidades da identidade e do desejo.

A influência de mestres como Pedro Almodóvar e François Ozon é evidente em "Azul de Niño". Guardans bebe da fonte do melodrama vibrante e colorido de Almodóvar, com personagens intensos e situações que beiram o absurdo, enquanto ecoa a tensão psicológica e a subversão da normalidade doméstica típicas de Ozon. A convergência de Natalia, Ernesto e Daniel em um quarto de hospital é um cenário digno dessas inspirações, repleto de possibilidades para explorar conflitos emocionais e ironias mordazes.

As atuações são, sem dúvida, o maior trunfo de "Azul de Niño". Eva de Luis brilha como Natalia, entregando uma performance multifacetada que transita entre a espirituosidade afiada e a vulnerabilidade crua. Ela encarna uma mulher cuja fachada de confiança rui diante das revelações, capturando o público com sua intensidade. Raul Guardans, além de dirigir, assume o papel de Daniel com notável sutileza, transmitindo a solidão de um jovem que acreditava ter encontrado amor em um relacionamento condenado pela duplicidade.

No entanto, "Azul de Niño" enfrenta dificuldades em sua execução temática. A narrativa acena para questões significativas, como as pressões sociais que moldam identidades falsas e o custo emocional da repressão, mas essas ideias raramente são aprofundadas. O humor sombrio, embora eficaz em momentos isolados, frequentemente entra em choque com a gravidade das situações, criando transições abruptas que confundem mais do que encantam.

A direção de Guardans revela tanto promessa quanto inexperiência. Visualmente, o filme tem seus méritos: o hospital, com sua atmosfera estéril e claustrofóbica, funciona como um palco perfeito para o embate emocional dos personagens. Ainda assim, o ritmo deixa a desejar, especialmente no segundo ato, onde a história perde fôlego ao girar em torno de sentimentos não resolvidos. Para um diretor estreante, Guardans demonstra habilidade em extrair atuações marcantes e criar cenas visualmente interessantes, mas o controle narrativo ainda carece de polidez.

"Azul de Niño" é um debut intrigante que não atinge todas as notas certas, mas deixa uma impressão positiva. Seus pontos fortes, as atuações excepcionais e a premissa ousada compensam em parte as falhas de tom e ritmo, oferecendo um vislumbre do talento de Raul Guardans como cineasta. 

segunda-feira, 21 de julho de 2025

Um Lobo Entre os Cisnes (Brasil, 2024)

 

“Um Lobo Entre os Cisnes”, de Marcos Schechtman e Helena Varvaki, é uma cinebiografia que retrata a inspiradora trajetória de Thiago Soares, um jovem do subúrbio carioca que, vindo do hip-hop, alcança o estrelato como o primeiro bailarino do Royal Ballet de Londres. Estrelado por Matheus Abreu e Darío Grandinetti, o filme foca na relação entre Thiago e seu mentor, o cubano Dino Carrera, explorando temas como superação, disciplina e o poder transformador da arte.

Rodado em locações deslumbrantes como a Ópera Garnier, em Paris, e o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, o longa impressiona visualmente, com uma direção de arte premiada por Dina Salem Levy no 34º Cine Ceará. As atuações de Abreu e Grandinetti, também laureadas no festival, são o cerne da narrativa, capturando a evolução de uma relação inicialmente marcada por tensões para uma amizade profunda.


A trama segue uma estrutura convencional de mentor-discípulo, comum em filmes sobre artistas. A relação entre Thiago e Dino começa com a rigidez do mestre e a resistência do aluno, mas progride para uma conexão de confiança e afeto, bem executada pelos atores. A presença de Guillermo Arriaga como produtor criativo, conhecido por roteiros complexos e não-lineares como “Babel” e “21 Gramas”, não reflete na narrativa, que opta por uma linearidade tradicional. O roteiro de Camila Agustini é eficaz em contar a ascensão de Thiago, mas não escapa de momentos formulaicos que limitam sua originalidade.

Apesar de seus méritos, o filme tropeça ao insistir de forma redundante na heterossexualidade do protagonista, até mesmo no título. Três cenas de sexo, que pouco contribuem para a história, parecem existir apenas para reforçar a virilidade de Thiago, como se fosse necessário contrapor sua masculinidade ao universo do balé, frequentemente associado à feminilidade.

A dança é, sem dúvida, o grande destaque do filme, com sequências que exibem a beleza e a exigência do balé clássico. A transição de Thiago, do hip-hop nas ruas de Vila Isabel aos palcos internacionais, é emocionante e reforça a mensagem sobre o papel da arte como ferramenta de mudança social.

“Um Lobo Entre os Cisnes” é um filme com atuações marcantes e uma história inspiradora sobre a arte como caminho para a superação. A estética impressionante e as sequências de dança compensam, em parte, suas falhas. A representatividade queer é sutil, mas está lá no personagem de Grandinetti e no universo do ballet clássico. Apesar disso, o longa se destaca como um tributo emocionante à jornada de um bailarino brasileiro que, contra todas as adversidades, alcançou o reconhecimento mundial, tornando-se um símbolo de força e talento.