segunda-feira, 23 de março de 2020

Madame Satã(Brasil, 2002)


"Eu sou Janaci, a famosa entidade da floresta, filha de Tapunã e de Bernardete." Foi com esse monólogo marcante e tantos outros momentos brilhantes que Lázaro Ramos se lançou ao estrelato. Sua atuação visceral em Madame Satã permanece como um dos pontos mais altos de sua carreira, revelando um talento raro e avassalador.


A história de João Francisco dos Santos, que já havia inspirado o alegórico Rainha Diaba em 1974, com Milton Gonçalves, ganha nova vida em 2002 pelas mãos do então estreante Karim Aïnouz. Diferente da abordagem anterior, Aïnouz entrega um filme mais realista, cru e fiel à essência do personagem. Logo na primeira cena, somos impactados por um Lázaro Ramos desfigurado, enquanto uma voz em off enumera suas acusações — entre as mais graves, ser preto, pobre e pederasta —, estabelecendo o tom de uma narrativa que não teme expor as feridas de uma sociedade excludente.


Ambientado no Rio de Janeiro dos anos 1930, o filme mergulha no cenário marginal das noites da Lapa, bairro que João Francisco habita com uma intensidade movida por sua dualidade emocional: um misto de paixão arrebatadora e agressividade explosiva, que o coloca em constante conflito com aqueles ao seu redor. É nesse universo que surge a luxuosa participação de Renata Sorrah, interpretando uma cantora que evoca com perfeição o glamour e a melancolia da época.


A trilha sonora, aliás, é um elemento essencial na construção da narrativa. Sambas da época e clássicos da fossa intercalam-se às cenas, enquanto a fotografia assinada por Walter Carvalho transforma os shows de Madame Satã em momentos imersivos e quase hipnóticos, capturando o espectador com uma estética embriagante.


Os amigos inseparáveis de João — Laurita, uma prostituta, e Tabu, um homossexual afeminado — são peças-chave para revelar seu lado mais humano e vulnerável. É ao lado deles, e em meio à paixão avassaladora por Renatinho, que os diálogos mais poderosos do filme se desenrolam, carregados de emoção e verdade.


Apesar de retratar uma existência à margem e um período de extrema repressão para homossexuais, Madame Satã transcende a dureza de seu tema. O filme é, acima de tudo, belo — na crueza de suas cenas de sexo, na delicadeza da direção de fotografia e na condução primorosa de Aïnouz. Uma obra que já se consolidou como um clássico do novo cinema nacional.


Esse filme, que exalta os antigos carnavais com uma força tão viva, me transportou para um Brasil que pulsa em cores, sons e dores. Ver João Francisco dançar, lutar e amar na tela é como testemunhar um pedaço da nossa história ganhando vida. Eu me emociono ao pensar que essa obra-prima do cinema brasileiro não apenas celebra a resistência de um homem, mas também a alma de um povo que, mesmo nas sombras, nunca deixou de brilhar. Que privilégio é ter um filme assim para chamar de nosso!




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