terça-feira, 24 de março de 2020

Má Educação(La Mala Educación, Espanha, 2004)


Novamente, como em obras anteriores,  Pedro Almodóvar faz uso de recortes e sobreposição de imagens nos créditos iniciais do filme. Porém, os recursos tecnológicos permitem que a abertura aconteça de forma mais moderna e menos artesanal, com papéis que são rasgados entre um crédito e outro.  Ao som de uma música dramática, o início de Má Educação mostra um quadro negro ao fundo com desenhos obscenos, sobreposto a isso estão imagens típicamente católicas com santos e Jesus Cristo. Junto dessas imagens, símbolos que remetem a homossexualidade, drogas, catolicismo e violência, são inseridas fotos dos atores principais.

Após o crédito de Direção e Roteiro para Pedro Almodóvar, a imagem se transforma em Direção e Roteiro: Enrique Goded. Este é o nome do personagem cineasta do filme. Após uma série de imagens desconcertantes, o diretor apresenta seu herói que no longa exerce suas mesmas funções, ainda que este não seja autobiográfico.

Em seguida a câmera mostra Enrique Goded(Fele Martinez) em seu escritório com uma tesoura na mão lendo notícias de um jornal e fazendo recortes daquelas que poderiam vir a tornar-se um filme. As cores predominantes do escritório são o azul, amarelo e vermelho.

Quando o personagem de Gael García Bernal adentra o escritório, vemos na parede um pôster de La Abuela Fantasma, filme fictício de Enrique Goded. Esse, porém se tratava do argumento do longa posterior de Pedro Almodóvar, Volver. A imagem aparece como uma espécie de easter egg do que está por vir.


Bernal se apresenta como Ignacio, aquele que na infância foi apaixonado e correspondido por Enrique. Ao cineasta ele diz ser ator e apresenta ainda um relato chamado La Visita, baseado na infância dos dois.

Ignacio vai embora e Enrique se põe a ler o roteiro. Somos remetidos então aos anos 70, época em que a história se passa. O cenário mostra o submundo das travestis onde Paquita(Javier Cámara) se apresenta e chama pelo show de Zahara(Gael García Bernal).

A cena em que Bernal aparece dublando Quizás, Quizás, Quizás na voz de Sarita Montiel, remete imediatamente a outra obra de Pedro Almodóvar, De Salto Alto. Se identifica aqui algumas semelhanças com a transformista Letal interpretada por Miguel Bosé, além de ambas as cenas serem ambientadas em bares gays. O figurino de Zahara é de autoria de Jean Paul Gaultier que também trabalhou com Almodóvar no vestuário da personagem Andrea Cortada, de Kika(1993).

Em seguida é apresentado o lado marginal da personagem, que sai do bar com um homem para o motel. Quando este pega no sono ela tenta roubá-lo até que descobre que se trata de Enrique, porém o fictício. Zahara lhe escreve então uma carta onde diz ser Ignácio.

Na cena seguinte vemos Enrique, o verdadeiro diretor envolvido pelo roteiro de La Visita. Volta para a história de Zahara. Ela está na frente da igreja cheirando cocaína com a amiga Paca. As duas entram e vemos pela primeira vez, Padre Manolo, o pedófilo da história. As travestis roubam a sacristia e Zahara o chantageia.

Na cena a seguir, Pedro Almodóvar mostra por meio de metáfora a perda da inocência dessa criança. Ele volta no tempo para mostrar os abusos do padre. Padre Manolo toca violão enquanto o menino Ignacio canta em espanhol a canção Moon River, de Bonequinha de Luxo. O menino resiste aos abusos do padre, corre e cai no chão, sua testa sangra e sua cara se divide em duas partes onde no meio aparece a fisionomia do padre.

Logo depois se insere na história o amor entre os dois meninos: Ignacio e Enrique. Ambos estudam no mesmo colégio e se submetem aos métodos ditatoriais do padre. A cena de amor entre ambos é representada quando vão ao cinema assistir um filme de Sarita Montiel, grande ídolo do cinema espanhol e da juventude de Pedro Almodóvar.

Enrique Goded, o cineasta decide então filmar La Visita. É aí que descobrimos que as imagens antes mostradas, se tratam do filme dentro do filme, que aqueles personagens são referentes ao passado, mas porém estão sendo representados em um filme metalinguístico. O suposto Ignacio passa então a brigar pelo papel principal do filme, o da travesti Zahara.

O cineasta vai até o povoado de Ignacio para descobrir a verdade. Conversando com sua mãe descobre então que ele morreu, que havia se tornado travesti e morrido de overdose. O falso Ignacio se tratava de Juan, seu irmão mais novo, que roubou a história do irmão/irmã e passando-se por ele tentou convencer Enrique a filmar. O diretor porém resolve seguir adiante e enquanto mantém um caso com Juan roda La Visita.


No último dia de rodagem do filme, uma homenagem póstuma ao verdadeiro Ignacio, o verdadeiro Padre Manolo(Luis Homar) aparece no set. Ele vêm para contar sobre como Ignacio morreu, somos apresentados então a verdadeira Zahara, uma autêntico transexual. Seduzido por Juan, Manolo que já não é mais padre decide matar Zahara para que a mesma pare de chantageá-lo.

Má Educação termina com a discussão de Juan e Enrique que o desmascara. Antes da entrada dos créditos finais, um letreiro explica o final de cada um dos personagens. Enrique Goded seguiu fazendo cinema com muita paixão.

Este filme e A Lei do Desejo de 1987 estão intimamente ligados. Ambos tem como protagonista um cineasta que se envolve com um psicopata. Nos dois há a história da transexual que sofreu abusos por parte de um padre, ainda que no primeiro essa trans seja interpretada por uma mulher(Carmen Maura). Existem muitas diferenças mas também muitas semelhanças entre ambos os filmes.

Tal retorno ao passado e o uso de diversos elementos faz com que Má Educação seja para Pedro Almodóvar uma obra auto-referencial. Ele visita o passado dos tempos de Sara Montiel e o colégio de padres, além de ter como protagonista um diretor de cinema homossexual.


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