segunda-feira, 31 de julho de 2023

Casa Izabel(Brasil 2022)

Como em uma crítica social de Buñuel ou Pasolini, Casa Izabel usa da alegoria para tecer seus comentários acerca de um dos períodos mais obscuros do Brasil: a ditadura militar. O diretor Gil Baroni se inspirou em um livro de fotografias que mostra os frequentadores  de uma casa de homens americanos vestidos de mulher,  entre 1950 e 1960, os quais se reuniam secretamente.

Na década de 1970, há um casarão, onde os que chegam devem vestir-se de mulher e deixar suas armas na porta. Ali o externo é esquecido e os homens se transformam em damas. Regina (Andrei Moscheto) é a novata. Guiada pela criada Leila (Jorge Neto), ela entra nesse mundo, um aparente refúgio e espaço de liberdade para quaisquer fantasias.

Paralelamente, as preocupações da mulher e empregada Dália (Laura Haddad), que cuida do lugar, são bem reais: a convalescença da ‘matriarca’ Izabel (Luís Melo) e o sumiço do filho Daniel, um universitário militante. A contradição e a hipocrisia, parte de que, mesmo montados os homens estão apenas brincando, e seguem exercendo o patriarcado.


Casa Izabel segue uma narrativa ambiciosa, seu próprio título sugere a libertação, mas no entanto o casarão, de arquitetura colonial,  parece remeter ao período escravocrata, enquanto a fotografia, de Renato Ogata, emoldura, com arte, vestidos luxuosos, rostos pintados e um inteligente jogo cênico que ambienta diálogos repletos de simbolismo.


Aos poucos, por meio de uma mistura deliciosa de kitsch e tensão, descobrirmos que a Casa Izabel guarda muitos segredos. O filme não fala apenas do que se vê, mas do que está abaixo da superfície de uma sociedade conservadora e de convenções sociais ultrapassadas.

Potente, a trilha traz além de medalhões da música erudita, como Chopin e Beethoven,  um pouco de anacronismo com músicas de Elza Soares, Tim Maia e Roseane Santos


Mais maduro que o filme de estreia do diretor, Alice Júnior(2019), Baroni e o roteirista Luiz Bertazzo expõem diferentes formas de desejo, de orientação, de sexualidade e de discurso. Os empregados são colocados no posto de protagonistas, enquanto os hipócritas burgueses, refugiados em disfarce, são uma representação de uma sociedade tão contemporânea quanto na década de 70. Nem tudo foi contado sobre a ditadura, e há muitos filmes nacionais sobre o assunto, nunca porém de um prisma tão queer. Uma obra que usa da simbologia dos corpos para tratar temas como política, misoginia e patriarcado.


domingo, 30 de julho de 2023

Stranizza D'Amuri(Itália, 2023)

Stranizza d'amuri, estreia de Giuseppe Fiorelli na direção, é ambientado na Sicília, em 1982. Em uma pequena vila na província de Catânia, dois adolescentes, Nino(Gabriele Pizzuto) e Giorgio(Samuele Segreto) se encontram por acaso em uma tarde de verão. Primeiro eles se tornam amigos e depois se apaixonam. 

O ponto de partida da história entre os dois jovens protagonistas é uma batida de carro. Sua colisão na convergência de duas estradas rurais, gera a luz de um sentimento que não é, antes de tudo e necessariamente, paixão física. Uma luz que não permite ver o estigma de que, com um acidente, algo está prestes a atingi-los.


Os pais, no entanto, não aceitam a relação, pois já não toleravam a homossexualidade de Giorgio, muitas vezes vítima de abusos. A ligação, de fato, não é considerada admissível. Em vão, as duas famílias tentarão manter os meninos afastados. Enquanto isso, toda a Itália está colada à televisão para a Copa do Mundo e espera uma vitória.


Stranizza d'amuri é um longa cheio de sensibilidade, delicado, respeitoso e contido em sua sensualidade. Apesar de baseado em fatos reais,  este não é um filme ou tese investigativa. É a história da intolerante província siciliana do início dos anos 80. Uma pintura apropriada de todo o sul, não só da Sicília, a terra do diretor. Mas também os produtos da terra, o trabalho árduo e honesto todas as manhãs, o cansaço. Tudo é pintado com as cores quentes do sul, realçadas pela fotografia de Ramiro Civita.


A maior parte da obra é dedicada à história da vida da aldeia e ao conhecimento e amor dos dois jovens. Ele consegue ser despreocupado, leve, apesar de tudo. Cada personagem, na verdade, é delineado de forma complexa e caracterizado por nuances opostas, que conseguem fazer, pelo menos em parte, com que a complexidade da história e de um tecido social, cultural e, sobretudo, familiar não seja fácil de digerir. 

Quando Nino, que trabalha com pirotecnia, mostra a Gianni seu álbum com os desenhos dos vários fogos de artifício, ele explica que cada um tem sua forma e cor e que, assim, cada uma tem seu significado. O presente que Nino dá a Gianni é uma explosão pirotécnica romântica, no céu de um estádio deserto cujo reflexo multicolorido nos rostos jovens ignora qualquer possível epílogo trágico de uma história de amor nascida para não ser.


No plano social, a Sicília de Stranizza d'Amuri é a de mais uma contradição: machista, patriarcal, tradicionalista, mas que dá origem ao primeiro grupo gay na Itália, como aponta o próprio diretor  que opta, com razão, por não incluir no longa o aspecto mais sombrio dos acontecimentos dos quais é tratado mas transmitir, na natureza da mensagem, um eco final.


O FILME É BASEADO EM FATOS REAIS, NO ENTANTO, ESSE ÚLTIMO PARÁGRAFO PODE CONTER SPOILERS:


Stranizza d'amuri adapta livremente a história de Giorgio Agatino Giammona e Antonio Galatola, dois jovens que foram mortos em Giarre, na província de Catânia, em um crime com uma clara matriz homofóbica, do qual, o culpado nunca foi identificado. 



sexta-feira, 28 de julho de 2023

Dias(日子, Taiwan, 2020)

Young Non (Anong Houngheuangsy) vive em uma grande cidade em algum lugar de Taiwan. Ele trabalha como vendedor nas proximidades, bem como massagista que faz visitas domiciliares. Seus dias geralmente seguem o mesmo padrão, que começa com uma oração matinal em um santuário próximo e termina com um jantar em seu pequeno apartamento. Ele geralmente leva muito tempo para se preparar.

Kang (Lee Kang-sheng) vive em uma grande casa no campo há muitos anos. Na verdade, é muito grande para ele, então ele geralmente está muito entediado. Mas agora, como ele está atormentado por dores estranhas em suas costas e pescoço, ele vem para a cidade, onde espera ser curado. Depois de uma visita ao médico e acupuntura, que lhe deu pouco alívio, ele conhece Non, que lhe dá uma massagem de corpo inteiro em seu quarto de hotel. Depois disso, os dois se separaram novamente, mas o encontro deixou uma profunda impressão em ambos.


O diretor malaio Tsai Ming-liang que havia declarado sua aposentadoria da indústria cinematográfica porque queria se dedicar a outros temas e expressões artísticas,  voltou aos longas-metragens, neste caso misturando os temas e formas dos curtas-metragens com os de sua carreira até hoje. Em um filme sem diálogos.


Os personagens que se encontram podem parecer diferentes em suas origens, mas basicamente lutam pelas mesmas coisas e, portanto, quase inevitavelmente se atraem. A cidade encontra-os em todas as suas facetas – o convívio, o barulho e as suas luzes.


Na segunda metade, no entanto, há uma reviravolta, que também é formalmente enfatizada no resto do filme, porque o encontro íntimo dos dois homens é de um certo calor e proximidade que tem um efeito quase terapêutico em ambos, antes de 


Magnífica fotografia e edição de Chang Jong-yuan, que satisfazem os olhos tanto com imagens estáticas clássicas, quanto quando se trata de filmar Kang com dor na multidão, em primeiro plano e em velocidades supersônicas. O filme, é a demonstração plástica de como não há nada de rígido ou ideológico no cinema de Tsai Ming-liang. 


Este é um filme de longas tomadas observacionais, meditativas e sentimentos ocultos de solidão mapeados no rosto mudo de um ator. Cada quadro subsequente está ficando mais longo, e as cenas variam de estaticamente realmente impressionantes a bastante banais.


Surpreendente, também é o discurso silencioso que consegue transmitir emoções sem uma palavra falada. Como uma caixa de música nas mãos de um jovem tentando superar a agitação da cidade e sua solidão.



quinta-feira, 27 de julho de 2023

Arianna(Itália, 2015)


Arianna(Ondina Quadri) tem dezenove anos, mas ainda não teve a primeira menstruação. No início do verão, seus pais decidiram recuperar a posse da casa de fazenda no Lago Bolsena, onde a personagem cresceu até os três anos de idade sem, desde então, ter retornado. 

Durante sua estadia na casa, memórias antigas começam a ressurgir, tanto que Arianna decide ficar mesmo quando seus pais retornam à cidade. O retorno ao lar da infância os traz de volta à superfície como fragmentos de memória guardados dentro de si. 


O tema do filme, pessoas intersexo, é tratado com cuidado, em muitos momentos rementendo à XXY(2007), de Lucía Puenzo. Com seus olhos azuis, Arianna consegue encontrar respostas sobre seu passado, o que a tornará consciente de seu futuro e, finalmente, unir aquelas três existências que viveu durante seus vinte anos, antes sem sentido. 


O primeiro trabalho de Carlo Lavagna parte de uma necessidade pessoal declarada de explorar o tema, de entender por que, às vezes, é difícil, se não impossível, sentir-se inteiramente homem ou inteiramente mulher. Para isso, o autor escolhe um caso extremo relativamente raro.


O que aconteceu com Arianna não é uma revelação chocante para o espectador, que entende desde o início, mas é para a protagonista, que após a descoberta, renasce e finalmente sabe com o que tem que lidar.


O filme ganha força visual pelas variadas e belas paisagens ao redor do Lago Bolsena, com bosques, pedreiras, água e elementos naturais e atmosféricos que remetem à origem mitológica do personagem Hermafrodite, em que o filme se baseia, e os atores coadjuvantes são muito bem escalados.


Pajaricos(Espanha, 1997)

O mestre espanhol Carlos Saura realiza uma recriação muito cuidadosa de sua infância, com um sabor nostálgico e uma linda estética. O mistério e as descobertas da adolescência são o fio condutor de uma história íntima e melancólica.

O protagonista, Manu(Alejandro Martínez), é um garoto que começa a entrar na adolescência. Ele viajará para Múrcia para passar algum tempo com sua família paterna. 


Lá, em meio a novos lugares dominados pelo mar, pelo campo, pela luz do Mediterrâneo e pela natureza exuberante e calorosa de sua família, ele descobrirá seu primeiro amor enquanto terá uma ideia dos primeiros segredos da vida adulta.


Cheio do encanto das memórias de infância, estão a amizade afetiva e amorosa de Manu com sua prima Fuensanta(Dafne Fernandez), e também a relação que estabelecerá com seus tios, homossexuais, mais fortemente com Juan(Manuel Bandera).


Com uma das famílias vive também o avô (Francisco Rabal), que na sua interpretação senil e engraçada suaviza um pouco o desafio das turbulências da puberdade.


A casa, o terraço com os seus lençóis brancos secando ao vento, o estúdio de moda do tio, são coprotagonistas, e dão o tom ao filme, encharcado de memórias e nostalgia.


Pajarico é dirigido com uma mão profissional segura, de um diretor com décadas de carreira. Portanto não faltam delicadeza, detalhes, sutileza e e ótima direção de atores. Há cenas magníficas e uma certa magia à beira-mar.



quarta-feira, 26 de julho de 2023

Estrela Cadente(Stella Cadente, Espanha, 2014)

Estrela Cadente, do catalão Luis Minãrro é sobre o curto reinado do rei Amadeo I, no início da década de 1870, um episódio pouco conhecido da história espanhola, que funciona como uma metáfora para a Espanha contemporânea e seu estado de crise separatista.

Amadeo (Àlex Brendemühl) filho do rei Vittorio Emanuelle II da Itália, foi um monarca eleito escolhido pelo parlamento espanhol entre uma série de candidatos dinásticos após a deposição de Isabel II. O reinado de Amadeo foi cercado de intrigas e instabilidade, e ele abdicaria depois de apenas alguns anos frustrado com o que via como um país ingovernável.

Se a separação da Espanha da Catalunha não faz com que o filme soe como uma dissecação seca da política europeia em um cenário de época, o sarcasmo e a teatralidade de Miñarro dão um filtro surreal.  


As aventuras sexuais dos dois criados de Amadeo (Lorenzo Balducci e Àlex Batllori), são encharcadas de homoerotismo e fantasia. Excêntricas, as cenas se desenrolam em um ritmo imponente e com um toque de nudez explícita.


Estrela Cadente evita os desvios maiores de seu pano de fundo histórico. Na maior parte das vezes, é um caso descontraído, com interlúdios musicais anacrônicos, desejo homoerótico e minúcias incongruentes de uma classe social rococó que não sabe o que fazer consigo mesma.

Por trás de toda a estética e roteiro exagerados há um fascinante estudo de personagem, principalmente ao ver a ambição de Amadeo se transformar em desinteresse que prejudica seu relacionamento com sua esposa. 


O diretor de fotografia, Jimmy Grimferrer, filma Estrela Cadente com um calor geral graças a um esquema de cores de vermelhos e marrons saturados, enquanto os jardins externos têm uma beleza ensolarada peculiar. 


O longa captura uma atmosfera de agitação política entre as maravilhas, tudo dentro das paredes do palácio através de efeitos sonoros de bombas e ministros sussurrando sugerindo uma ameaça real à vida de Amadeo. Estrela Cadente é uma experiência consistentemente envolvente cheia de vibração, surrealismo deslumbrante e uma sexualidade crua. Luis Miñarro criou um exercício cinematográfico excepcional e análogo, digno de toda a atenção.



terça-feira, 25 de julho de 2023

Beats(Reino Unido, 2019)

Em 1994, o governo britânico promulgou uma lei totalmente insana declarando ilegais todos os "eventos musicais caracterizados pela transmissão de batidas repetidas". Os protagonistas de Beats, parecem não se importar com isso, enquanto se preparam para a festa de suas vidas.

Johnno(Cristian Ortega) é um garoto  bom e inteligente, mas sua mãe infelizmente entra em um relacionamento com um policial mal-humorado do bairro, algo que não beneficia exatamente o ambiente na família.


Seu amigo, Spanner(Lorn Macdonald), por outro lado, tem preocupações completamente diferentes: El está na base do sistema de classes britânico, tentando desesperadamente se manter ao lado de seu irmão extremamente violento, Fido(Neil Leiper), o terror da vizinhança.


Johnno e Spanner encontram sua única saída na música: não a música de guitarra das gerações anteriores a eles, mas as emocionantes batidas eletrônicas, que se tornava cada vez mais popular espalhadas por DJs underground e estações de rádio pirata.


A trilha sonora é nada menos que adequada (Ultrasonic, Leftfield, Lee 'Scratch' Perry, Joey Beltram, Prodigy, Plastikman), e a cena alucinógena que retrata uma viagem eufórica às drogas foi criada por Weirdcore, o artista por trás de alguns vídeos lendários do Aphex Twin.


Parente espiritual de Trainspotting(1996), o filme, de Brian Welsh, é praticamente todo rodado em preto e branco e combina uma história de amadurecimento com um retrato social, pintando um quadro completamente irresistível, sobre a subcultura das raves, e, de como era ser jovem na Escócia dos anos noventa.



segunda-feira, 24 de julho de 2023

Lupe - A Cidade dos Sonhos(EUA, 2019)

Dirigido por  André Phillips e Charles Vuolo, Lupe conta a história de um imigrante cubano, Rafael ( Rafael Albarran), que viaja para Nova York em busca de sua irmã mais velha, que não vê há mais de 10 anos. A irmã, Isabel (iLucerys Medina), depois de ter fugido de Cuba em busca de uma vida melhor, caiu em uma vida de prostituição e Rafael passa as noites procurando bordéis e ruas na esperança de levá-la de volta com ele para a ilha.

No decorrer de sua busca, ele encontra outra alma perdida, Elsa ( Christine Rosario Lawrence), uma amiga de Isabel. Ela também está no negócio de vender seu corpo para homens e não vê melhor opção para ela ganhar dinheiro para sobreviver. Ela implora pela ajuda de Rafael e juntos eles acabam ficando em seu apartamento, onde ela descobre seu segredo bem guardado.


Rafael, ao que tudo indica, parece determinado a encontrar a irmã. Em Nova York, ele treina o também boxeador de Muay Thai, Arun (Kadeem Henry), e Rafael usa essa habilidade mortal para vencer informações dos que encontra. Ele é um jovem forte e letal, mas luta em particular com sua própria identidade de gênero. Rafael suprime sua identidade transgênero para todos, exceto para uma amiga de confiança, Lana, interpretada por Celia Harrison, ela mesma uma mulher trans.


Esses quatro relacionamentos entre Rafael e Isabel, Elsa, Lana e Arun se combinam para revelar uma vulnerabilidade e sensibilidade que desmente a imagem dura que Rafael projeta através de suas habilidades no boxe. O ator porto-riquenho Rafael Albarran dá uma performance incrível em sua interpretação de Rafael o boxeador furioso, Rafael o irmão perdido, Rafael o transgênero reprimido e Rafael o amigo de confiança.


O filme é fiel ao assunto porque os diretores Andre e Charles buscaram o conselho de Kerry Michelle O'Brien, uma defensora ativa da comunidade LGBTQIA+, creditada como produtora executiva do filme. Além disso, Celia Harrison, que interpretou Lana, é uma artista transgênero que aconselhou os cineastas, resultando no filme ser sensível aos temas de identidade de gênero.


 Lupe tem aquela sensação linda, íntima, indie, com muito trabalho de câmera portátil e closes, combinado com quadros intimistas e diálogos muitas vezes improvisados. A magia está nos detalhes e nos pequenos momentos. 

quinta-feira, 20 de julho de 2023

Barbie(EUA/Reino Unido, 2023)

A boneca Barbie povoa o imaginário da infância de muitas pessoas queer. O antigo slogan ‘Tudo o que você quer ser’ nos dizia algo, enquanto tínhamos que brincar escondidos com nossas irmãs, primas ou amigas. Greta Gerwig, tomou o desafiou e fez um filme, um tanto inusitado, sobre o icônico brinquedo, e realizou uma espécie de sonho. É uma reparação histórica com quem tinha que brincar escondido.

O início é fascinante, com a citação explícita de 2001: Uma Odisseia no Espaço(1968), clássico de Stanley Kubrick com narração de Helen Mirren, para não só revelar a marca estética do filme, mas também o seu registo narrativo: uma obra pop e cheia de referências, que quer fazer uma reflexão lúdica sobre um produto da cultura de massas e da sua história. 


Barbie, Margot Robbie, nascida para o papel, vive uma vida feliz com Ken (Ryan Gosling) em Barbie Land, uma utopia comandada por mulheres. Um dia, ela descobre que não tem mais a aparência perfeita que sempre teve e começa a questionar sua própria mortalidade. Com a ajuda de Barbie Estranha (Kate McKinnon), ela e Ken se aventuram a sair da Barbie Land para o mundo real, em Los Angeles.

O roteiro escrito com, o marido de Greta, Noah Baumbach, transborda sagacidade, humor ácido, ironia e, surpreendentemente, cordialidade, ternura, nostalgia e sabedoria. A trama não se trata apenas da busca da Barbie para encontrar seu mundo; é fundamentalmente sobre sua busca para encontrar seu verdadeiro eu e aprender o significado de ser um  humano. 


Quando Barbie e Ken viajam para Los Angeles juntos, eles descobrem que o mundo real é governado pelo patriarcado e, enquanto Barbie parte para descobrir como é ser uma mulher real, de carne e sangue, ele começa sua própria aventura de autodescoberta, que acabará levando a uma batalha altamente divertida dos sexos, quando eles retornam à Barbie Land.


E é em Los Angeles, que Barbie se depara com a Mattel, o filme faz piadas às custas da empresa, que podem parecer subversivas no início, mas à medida que avança parece mais uma crítica controlada. Will Ferrel interpreta o CEO. E o filme brilha ao conseguir fazer sarcasmo social, ao mesmo tempo em que é uma deslumbrante jogada de marketing. Este certamente não é um ataque ao capitalismo.


O longa é, sem dúvida, contado a partir de uma perspectiva feminista, há uma grande variedade de Barbies em exibição, e politicamente Gerwig deixa claro que o mundo seria um lugar melhor se as mulheres governassem ou pelo menos compartilhassem o poder com os homens. 


Cada Barbie tem sua própria função: Issa Rae interpreta a Barbie Presidente, Emma Mackey é a Barbie Física, Dua Lipa é Barbie Sereia, Sharon Rooney é Barbie Advogada, Alexandra Shipp é uma autora célebre, a atriz trans Hari Nef é uma médica, Ritu Arya é uma jornalista e Emerald Fennell é a quase esquecida Midge. Há um bando de Kens, e um Allan (Michael Cera), na Barbie Land também. No mundo real, America Ferrera é o destaque como Gloria, uma funcionária da Mattel.


Ryan Gosling é o Ken principal e o único que oferece camadas e complexidade.  Desde o início fica claro que os Kens são apenas acessórios. O Ken de Gosling simplesmente fica na praia o dia todo tentando impressionar a Barbie de Robbie, mas há mais além da superfície.

Life in Plastic is Fantastic! O design de produção extravagante é brilhante e nos mais variados tons de rosa e os inúmeros cenários são manuseados com muita destreza pelo diretor de fotografia, o mexicano Rodrigo Prieto, de colaborações com Alejandro Gonzáles Iñarritu, e pela própria Gerwig.


Barbie também faz o melhor de sua música pop; canções de Lizzo, Billie Eilish, Karol G, Nicki Minaj, Charlie XCX, HAIM, Sam Smith, Ava Max e Dua Lipa absolutamente funcionam aqui enquanto brincam com a estética onírica de como deve ser ser uma boneca Barbie perfeita. 


Com Barbie, Gerwig fez um deleite visual e espiritual que usa sua estética de algodão doce e bola de sabão para contar algumas verdades duras que são inerentemente conhecidas, mas raramente discutidas. Assim como o aspecto mais leve da comédia, Barbie está interessada em investigar temas mais profundos. É uma celebração sincera das forças e tribulações da feminilidade, em todas as suas muitas formas. É mais que um filme, é um acontecimento!



Loucas em Apuros(Joy Ride, Reino Unido/EUA, 2023)

Loucas em Apuros tem muita originalidade por si só, incluindo uma história contada a partir de uma perspectiva feminina asiático-americana. Dirigido por Adele Lim, o filme é sobre amizade verdadeira, honestidade e estar confortável com a própria identidade. 

É a primeira viagem de trem da advogada Audrey(Ashley Park), na China. Com as amigas a tiracolo, ela procura assentos. Haveria muitas oportunidades, mas Audrey  não quer se sentar em um compartimento entre grupos turísticos chineses e famílias. Ela é uma americana nascida na China. Ao contrário de sua melhor amiga Lolo (Sherry Cola), cujos pais emigraram da China, ela foi adotada.

Lolo é uma artista cuja especialidade é fazer arte erótica kitsch. Por exemplo, uma de suas exposições é uma recriação plástica do playground de sua infância, mas com coisas como um escorregador em formato fálico.  É mencionado várias vezes, que Lolo é um "espírito livre" sexualmente fluido que se entrega às drogas e acredita em ter um estilo de vida sexual irrestrito.


Lolo espera até que ela e Audrey estejam no aeroporto para dizer a ela que outra pessoa está indo nesta viagem: a prima socialmente desajeitada e excêntrica de Lolo, Deadeye ( Sabrina Wu), que é andrógina, infantil e obcecada por música K-pop. (Na vida real, Wu é não-binárie e usa pronomes neutros).


Ao contrário de sua amiga de faculdade Kat (Stephanie Hsu, de Tudo em Todo Logar ao Mesmo Tempo), que exportou sua carreira cinematográfica para sua terra natal chinesa, ou Deadeye, que cresceu completamente como nerd, Audrey nunca desenvolveu uma autoconfiança em sua identidade. Ela esconde seu desconforto com suas origens por trás de seus sucessos profissionais no que é provavelmente o escritório de advocacia mais branco dos Estados Unidos. 


A viagem à China, que deveria ser apenas uma viagem de negócios à Pequim, é bastante modesta, pelo menos no que diz respeito aos negócios e à aproximação cultural associada. A causa é fácil de identificar, mas difícil de corrigir. Porque Audrey se recusa firmemente a se envolver no que não é fácil de descartar: suas origens. 


Se a carreira que tem um controle firme sobre a vida de Audrey,então ela tem que fazer contato com sua própria mãe, voluntariamente. No entanto, o plano de encarar esse contato como um investimento empresarial sem uma contribuição emocional só leva cada vez mais a uma crise de identidade.


Com excessos de drogas, piadas de xixi, sexo grupal, um momento absurdo no trem, mas também um encontro sinceramente melodramático com seu próprio passado, Loucas em Apuros explode sucessivamente tudo o que resta de assimilação feito pelas protagonistas. 


O humor do filme não é construído apenas em torno do choque cultural. O conceito de identidade com que a realizadora Adele Lim e as roteiristas Cherry Chevapravatdumrong, Teresa Hsiao e o fantástico conjunto de atrizes fazem, sem qualquer restrição, é necessariamente contraditório. 


Partes nacionais, culturais, sexuais e coletivas dessa identidade entram em conflito umas com as outras em praticamente todos os estados imagináveis de sobriedade, intoxicação e excitação. O resultado é hilário e, quanto mais Audrey se aproxima de sua mãe biológica, correspondentemente emocional; mas sempre: completamente fora de controle.



quarta-feira, 19 de julho de 2023

Egoist(Japão, 2023)

O roteirista e diretor Daishi Matsunaga traz cenas de sexo e vibrações rom-com adoráveis em abundância. Baseado em um romance semi-autobiográfico, de Makoto Takayama, Egoist parece um filme profundamente pessoal que canaliza emoções reais em uma conexão íntima entre dois homens.

Kosuke (Ryohei Suzuki), um editor de revista, está desesperado por uma relação. Seus amigos de academia recomendam um novo personal trainer, com certeza ressaltam que Ryuta (Hio Miyazawa) também é gay.


Quase imediatamente, a química entre Kosuke e Ryuta é tangível. O flerte mútuo sobre suas aparências começa seu emaranhado docemente, embora um pouco óbvio. Não demora muito para os dois se abrirem pessoalmente um com o outro. Ryuta, um estudante que abandonou o ensino médio, se prostitui para sustentar sua mãe.


Até este ponto, o filme é explicitamente erótico, mas ele sofre um recomeço após o rompimento fora do comum. Através da direção comovente e íntima de Matsunaga, a performance comprometida de Suzuki, a agonia de Kosuke é crua e imediata.

Então Kosuke tem uma ideia: Ryuta mal está conseguindo sobreviver porque ele está apoiando sua mãe solteira doente (Sawako Agawa), e lhe oferece uma mesada que lhe permite sair de sua rotina. Depois de muita hesitação, Ryuta aceita, enquanto assume dois trabalhos. Kosuke também se torna uma presença familiar e bem-vinda no apartamento que Ryuta compartilha com sua mãe, uma senhora parecida com um pássaro com um jeito gentil, e olhos espertos. 


Algo acontece, que acaba com esse idílio e testa ainda mais o personagem de Kosuke. É aqui que o significado do título fica mais claro: Kosuke, ficamos sabendo, cresceu em uma comunidade rural conservadora e perdeu sua mãe compreensiva aos 14 anos. Mais tarde, ele fugiu para Tóquio e desenvolveu uma dura concha externa, mas a solidão de sua infância nunca o deixou. Ao adquirir uma família substituta em Ryuta e sua mãe, ele pode aliviar sua própria dor.

segunda-feira, 17 de julho de 2023

Chrissy Judy(EUA, 2022)

Chrissy (Wyatt Fenner) e Judy (Todd Flaherty) são bons amigos e se apresentam juntos em um show de drag em Nova York. Quando Chrissy se muda para a Filadélfia para começar uma nova vida com seu namorado, Shawn (Kiyon Spencer), Judy não consegue lidar com a separação.

O roteiro do diretor, e estrela, Todd Flaherty explora o fim do ciclo de uma amizade com sagacidade, honestidade e senso de humor. Mais importante, porém, Flaherty vê e trata seus protagonistas como seres humanos complexos.

Judy se mostra emocionalmente carente, o que o torna tóxico, mas, como todo mundo, ele merece ser feliz. Ele está triste, frustrado, irritado e confuso sem Chrissy em sua vida. É um grande negócio para ele e ele não pode seguir em frente, não importa o quanto ele tente.

Ele é um barman de meio período, vive em um apartamento desajeitado com duas mulheres com quem tem pouco em comum, e nunca teve um relacionamento amoroso sério. Ele, portanto, não entende as decisões de Chrissy e brinca tentando convencê-lo a mudar de ideia.



Toda a sua vida girou em torno de Chrissy e agora ele quer provar que pode fazer isso por conta própria, o que pode exigir reavaliar o que isso significa. Um show solo de drag de estreia cai por terra. Os esforços para reafirmar sua desejabilidade sexual levam ao caos social e à decepção privada. Chrissy tenta oferecer apoio de longe, mas toda vez que ele faz isso aumenta as esperanças sufocantes de Judy de que um dia ele "volte para casa".


Chrissy, por outro lado, parece mais maduro emocionalmente e, de fato, seguiu em frente. Chrissy Judy é difícil de categorizar em apenas um gênero em particular porque caminha uma linha tênue entre comédia e drama sem se levar a sério o tempo todo.

Filmado em preto e branco, Chrissy Judy parece hipnotizante com alguns planos e cenários impressionantes que adicionam um pouco de arte e poesia visual, enquanto disfarçam, mas não desmerecem, seu baixo orçamento. É tudo uma espécie de Frances Ha, em drag.


O filme dá um mergulho no que as amizades fazem por nós, em particular aquelas que envolvem nossas famílias queer escolhidas. Por mais que tentemos seguir em frente, é muito mais fácil quando há suporte e apoio sincero de amigos.


Embora esteja enraizado nas especificidades da cena queer de Nova York, há elementos universais que atraem um público muito mais amplo, e é acessível o suficiente para fazer essa conexão. Uma obra, com uma história contemporânea, não muito inovadora, uma estética vintage, que o fazem brilhar.



sábado, 15 de julho de 2023

Pornomelancolía(Argentina/Brasil/França/México, 2022)


O diretor argentino Manuel Abramovich filma as entranhas de um sex influencer que virou ator pornô e aguça, as leis do desejo 3.0 e a onipresença de um vazio existencial que se impõe em frente às telas hiperconectadas.

Lalo trabalha numa fábrica, em Oaxaca, e também é um sex influencer, divulgando seus vídeos eróticos em redes sociais especializadas, como a popular Only Fans. Após um casting, ele é contratado como ator pornô para interpretar Emiliano Zapata em um filme X que, à sua maneira, busca revisitar a história da revolução mexicana por uma de suas figuras mais emblemáticas.

O smartphone é essencial para a história, é a principal ferramenta de trabalho de Lalo, quase seu modo de viver. É um olho. Através de imagens de câmera, mensagens de texto, tuítes e posts, somos apresentados ao cotidiano do protagonista. O conteúdo foi produzido pelo próprio Lalo Santos.


Em paralelo, o filme testemunha o mundo pornô gay onde as configurações a uma masculinidade viril, sonhos de glória efêmera e exploração de corpos continuam a imperar, e onde os novos formatos digitais, por trás de uma aparente liberdade de produção, exigem um imediatismo permanente, uma atividade cada vez mais exigente.

Brincando habilmente com as aparências de um espelho metacinematográfico, Pornomelancolía prega o falso para revelar o vazio obscurecido pelo avatar digital. Uma jornada cativante onde a sexualidade desenfreada de Lalo dificilmente esconde uma solidão melancólica específica da era online.

O longa é uma obra híbrida e assume plenamente seu status meta. Pornozapata, foi de fato filmado e Pornomelancolía usou as filmagens do filme pornô para encenar o personagem Lalo, fortemente inspirado no verdadeiro Lalo Santos.

Essa exposição onipresente e sem filtros nas redes sociais remete a essa ideia de criar um personagem. Ao brincar constantemente com essa fronteira, o longa flerta com a vertigem da perda de rumo e aponta para o vazio abismal em que Lalo evolui. 


Pornomelancolía é um retrato convincente, e explícito, da solidão nos tempos das redes sociais onde não há lugar para a privacidade. É uma coprodução da Argentina, Brasil e França ambientada no México contemporâneo.

quinta-feira, 13 de julho de 2023

Biosphere(EUA, 2022)

Dois amigos, Billy (Mark Duplass) e Ray (Sterling K. Brown), se abrigam em uma cúpula enquanto o resto da civilização morre de toxinas perigosas. Eles agora são os últimos humanos restantes na Terra.

Biosphere, a nova produção dos irmãos Duplass, dirigida por Mel Eslyn, é ambientado em um único local. Ray, um cientista inteligente e otimista, construiu esta cúpula do tamanho de um apartamento onde reside com seu amigo de infância, Billy. 


Aparentemente, Billy, o ex-presidente dos Estados Unidos antes que a catástrofe se instalasse, foi encarregado de projetá-lo. Agora, os dois amigos têm vivido juntos nesse ambiente seguro que é auxiliado pelo planejamento bem estruturado de Ray.


Eles acordam todos os dias com a sequência de mudança do ligar e desligar automatizado do sistema de iluminação. Eles correm pela circunferência da cúpula e falam sobre seus gostos e desgostos compartilhados. A primeira vez que os vemos, eles estão tendo uma breve discussão sobre Super Mario e Luigi.


Ao contrário de Ray, Billy não é tão inteligente e silenciosamente impulsivo sobre cada pequena falha que vê em seu paraíso perfeitamente planejado. Quando um de seus peixes, que deveria ser uma chave para o sistema de filtragem de água que Ray colocou em prática morre, o equilíbrio dentro da cúpula é ameaçado.

Revelar muito sobre Biosphere é estragar a experiência, no entanto, é seguro dizer que esta comédia de amigos usa suas fendas para tratar de gênero, identidade e sexualidade. Ao colocar dois caras como único ponto focal aqui, a diretora Mel Eslyn está tentando desconstruir a masculinidade para aqueles que ainda residem no passado.


Biosphere é um filme cheio de ideias, mas como é principalmente movido a diálogos, o único outro conflito é uma luz verde que aparece em algum lugar fora da cúpula. O longa adiciona um toque distópico a uma busca de sobrevivência de amigos. 


Usando um sabor queer e único de humor para atrair o público, uma trama atraente e original persiste e flui perfeitamente. Há também uma grande dissonância entre o comportamento despretensioso de Billy e sua antiga presidência. Isso adiciona uma carga de responsabilidades passadas e presentes nos personagens que ressurge e acelera ainda mais o conflito.