sexta-feira, 11 de julho de 2025

Vera e o Prazer dos Outros (Vera y el placer de los otros, Argentina, 2023)


"Vera e o Prazer dos Outros", de Federico Actis e Romina Tamburello, segue Vera (Luciana Grasso), uma adolescente de 17 anos em pleno despertar sexua, com os hormônios bombando,  aluga um apartamento para que outros jovens façam sexo enquanto ela escuta de fora, explorando seus próprios desejos e curiosidades.

O filme ganhou prêmios no circuito LGBTQIA +, um dos mais importantes foi o Vancouver Queer Film Festival de 2024, onde conquistou o Prêmio do Público para Melhor Longa-Metragem Internacional. Além disso, Luciana Grasso, recebeu o Iris Prize de Melhor Desempenho Feminino no Iris Prize LGBTQ+ Film Festival, em Gales.

Os aspectos queer se manifestam de forma orgânica explícita no desejo voyeur de Vera de observar dois homens tendo relações sexuais. Esse aspecto da narrativa não só desafia convenções heteronormativas, mas também explora a fluidez do desejo de maneira provocativa. O voyeurismo de Vera é apresentado como uma extensão natural de sua curiosidade sexual, permitindo que o filme aborde questões de consentimento e intimidade.

Outro elemento central é a bissexualidade de Vera e suas descobertas poliamorosas. Esses traços de sua identidade emergem como parte integrante de sua jornada de autodescoberta, retratados sem estereótipos. A narrativa sugere que a sexualidade de Vera é um espectro em evolução, e suas experiências poliamorosas enriquecem a trama, oferecendo uma visão multifacetada de como os jovens navegam suas identidades e relacionamentos em um mundo em transformação.

A combinação desses elementos,  o desejo voyeur, a bissexualidade e o poliamor, fortalece a representatividade queer do filme, posicionando-o como uma obra que transcende rótulos. "Vera e o Prazer dos Outros" celebra a diversidade sexual com uma abordagem sensível e destemida, criando um espaço onde os personagens podem explorar seus desejos livremente.

A encenação sensual de Actis e Tamburello, marcada por close-ups e uma trilha sonora sofisticada, destaca com maestria o desejo voyeurístico de Vera e seus sentimentos mais profundos. O feito notável do filme está em nunca cruzar a linha do voyeurismo, um equilíbrio especialmente impressionante considerando a idade da protagonista. 



quinta-feira, 10 de julho de 2025

Cris Miró (Ela) (Cris Miró (Ella), Argentina, 2024)

"Cris Miró (Ella)" é uma série biográfica que explora a vida de Cris Miró, a primeira vedete transgênero argentina a conquistar fama nos anos 90, deixando um legado inabalável na cultura e na comunidade LGBTQI+. Dirigida por Martín Vatenberg em colaboração com Javier Van de Couter, a produção traça a trajetória de Cris desde seus primeiros passos na discoteca Gaslight até seu estrelato nos principais teatros de Buenos Aires, como o Maipo. Mais do que uma narrativa sobre sucesso, a série destaca sua luta para afirmar sua identidade em uma sociedade marcada pelo machismo e seu impacto como pioneira.

A produção, em 8 episódios, reflete o cuidado de honrar a memória de Cris Miró. Martín Vatenberg, que também coescreveu o roteiro com Lucas Bianchini, traz uma perspectiva pessoal ao projeto, inspirado por sua admiração pela vedete desde a infância. O resultado é uma série que evita o sensacionalismo, focando na essência da protagonista e em sua influência cultural.

A escalação do elenco é um dos grandes pontos da série, com Mina Serrano arrasando no papel principal. A atriz espanhola, radicada em Paris e reconhecida na comunidade LGBTQIA+, entrega uma interpretação profunda e emocionante, capturando tanto a força quanto a fragilidade de Cris Miró.

A narrativa vai além da ascensão de Cris ao estrelato, explorando os desafios que enfrentou como mulher transgênero em um contexto social hostil. A série aborda sua relação complexa com a família, especialmente com a mãe, Nilda (Katja Alemann), e o apoio mais empático do pai, Sergio, interpretado por César Bordón, bastante conhecido do público brasileiro, e os obstáculos impostos por uma sociedade que a celebrava no palco, mas a julgava fora dele. Sua visibilidade como vedete abriu portas para a comunidade trans, mas também a expôs a pressões, como a exigência de cirurgias para se adequar a padrões de feminilidade.

A verdade é um pilar da série, sustentada pela performance protagônica e pela inclusão de imagens de arquivo, como entrevistas reais com figuras como Mirtha Legrand e Suzana Gimenez, que expõem os preconceitos dos anos 90.  Embora a série por vezes se concentre demais em recriar momentos públicos de Cris, ela ganha força ao explorar sua intimidade, como sua relação com o namorado Federico (Vico D’Alessandro) e seu mentor Marito (Marcos Montes). Esse equilíbrio entre glamour e gragilidade torna a produção envolvente e significativa.


"Cris Miró (Ella)" é um tributo poderoso a uma figura mítica que desafiou normas e pavimentou caminhos para a visibilidade trans na Argentina. Com uma produção cuidadosa, a obra se destaca para compreender a história recente do país e os avanços na representatividade, olhando para o passado para projetar um futuro glorioso.

FIRQ+ 2025: Uma Celebração do Cinema Queer em Pelotas!

Entre 23 e 25 de julho, o Festival Internacional de Cinema Ruídos Queer+ (FIRQ+) ilumina as telas da Universidade Federal de Pelotas com uma programação que pulsa cinema, resistência e diversidade. Em 2025, o festival reafirma sua missão de amplificar narrativas audiovisuais que desafiam normas, cruzam fronteiras e celebram identidades plurais, com uma curadoria afetuosa, insurgente e transformadora.

Realizado pela Coletiva Transperformática Ruidosa Alma, com apoio do Projeto de Extensão Universitária Transpoéticas, da Associação Transbordamos e do Cine UFPEL, o FIRQ+ é um espaço de luta cultural. A programação inclui oficinas, exibições inéditas, sessões temáticas como “Encantarias Encarnadas” e “Tramas Parentais”, mediações críticas e uma premiação de R$18.800 distribuídos entre 11 categorias.

Com 28 filmes na competição, avaliados por um júri de cineastas e especialistas, o festival destaca a excelência cinematográfica e a representatividade LGBTQIAP+.


Mãe, de João Monteiro

Confira os destaques da programação:


1º DIA – QUARTA-FEIRA (23.07)

  • 14h-18h: Oficina de Produção Audiovisual

  • 19h: Abertura com fala de curadores e apoiadores + Lançamento do eBook

2º DIA – QUINTA-FEIRA (24.07)

  • 16h-17h30: Sessão Encantarias Encarnadas
    “Redenção” (Toni Dri) | “Lamento da Força Travesti” (Renna Costa) | “Ebó de Xuxu” (Myra Gomes) | e mais!

  • 19h-20h30: Sessão Inéditos-Viáveis
    “Se Eu Tô Aqui É por Mistério” (Clari Ribeiro) | “Neon” (Daniel Luciancencov Petrillo) | e outros.

  • 20h30-22h: Sessão Corpo-Fronteira: Saúde e Luta
    “A Cura dos Corpos” (Diego Trevisan) | “Poder Falar – Uma Autoficção” (Evandro Manchine) | “Travando Lutas” (Beni Campos).

3º DIA – SEXTA-FEIRA (25.07)

  • 14h-15h30: Sessão Fogueira em Alto Mar
    “Desesquecer” (Mayara Ferrão) | “Kokum’s Love” (Bianca Rêgo) | “Mururé” (Gabriela Luz) | e mais.

  • 16h-17h30: Sessão Atos para (Re)Existir
    “Todo Lo Que Se Transforma” (Fran Caffarel) | “Chimera” (Gael Jara, Martín André) | “God’s Daughter Dances” (Sungbin Byun).

  • 19h-20h40: Sessão Tramas Parentais
    “Mãe” (João Monteiro) | “Reflorescer Maternidade Lésbica” (Isabella Graça) | “Soy Una Niña” (Richard Zubelzu).

  • 20h45: Divulgação dos premiados

O FIRQ+ 2025 é uma explosão de arte, ancestralidade e resistência, convidando todes a mergulhar em histórias que emocionam e transformam. Saiba mais no site oficial do FIRQ+ e no Instagram @ruidosqueer.


Memórias de um Espião (Another Country, Reino Unido, 1984)

 "Memórias de um Espião", adaptação da peça de Julian Mitchell, é um filme que explora a vida de Guy Bennett (Rupert Everett), inspirado no espião Guy Burgess, na Inglaterra dos anos 1930. Dirigido por Marek Kanievska, o filme mantém o espírito teatral. A história mostra a pressão de uma escola inglesa de elite, onde privilégio e regras rígidas moldam os personagens, e a traição e a chantagem aparecem como peças-chave na criação de um espião. É uma trama que não envelhece, falando de lealdade, identidade e poder de um jeito que ainda faz sentido hoje.

A representatividade é um dos pontos mais fortes do filme, tratada com cuidado para a época. A homossexualidade de Guy Bennett não é só um detalhe, mas o que o coloca em conflito com o sistema. O suicídio de Martineau, um aluno pego em um relacionamento com outro garoto, deixa claro o peso da repressão na escola e na sociedade. O filme não tenta romantizar a experiência queer, mas mostra como ela revela a hipocrisia de um sistema que exige que todos sigam a mesma linha. A relação entre Bennett e Harcourt (Cary Elwes) é delicada e cheia de emoção, trazendo à tona a solidão e a fragilidade de viver sob homofobia, um tema que ainda ecoa.

O filme se destaca pelo charme visual, pelo roteiro quase perfeito de Mitchell e pelas atuações incríveis. Rupert Everett em seu primeiro papel no cinema, é carismático, sensível e rebelde. Colin Firth, como Tommy Judd, traz uma energia intensa como o amigo idealista e comunista, e a química entre os dois, que já haviam feito a peça juntos, é um dos pontos altos.

O que faz "Memórias de um Espião" especial é como ele mistura temas pesados, sexualidade, política, privilégio e traição, sem perder o lado humano dos personagens. O romance entre Bennett e Harcourt, mesmo sendo ficcional, dá um toque emocional forte.
"Memórias de um Espião" vai além do seu tempo, falando de coisas que ainda importam, como identidade, resistência e sacrifício. As atuações  junto com o texto afiado de Mitchell, transformam o filme em algo maior que uma simples adaptação. Ele critica a homofobia e a desigualdade de classe de um jeito que ainda faz pensar, tornando-se um marco do cinema britânico que continua relevante para falar sobre poder e privilégio.

quarta-feira, 9 de julho de 2025

Los Domingos Mueren Más Personas (Argentina/Itália/Suíça, 2024)

 

"Los Domingos Mueren Más Personas", dirigido, escrito e estrelado por Iair Said, é uma tragicomédia argentina que combina humor e melancolia de maneira sutil. A história acompanha David (Iair Said), um homem judeu, gay, na casa dos 30 anos, que retorna de Roma a Buenos Aires após a morte de seu tio. No entanto, o verdadeiro peso da trama está na revelação de que o pai de David está em coma há um ano, e sua mãe, Dora (Rita Cortese), planeja desligar o respirador. Enquanto lida com o fim de um relacionamento amoroso, David parece mais afetado pela perda romântica do que pelos eventos familiares.

A homossexualidade de David, um cara acima do peso, é um aspecto importante, mas não o centro da narrativa, sendo tratada com naturalidade. Ele tenta se reconectar com outros homens após o término, frequentando encontros casuais. No entanto, esses momentos são retratados de forma mais melancólica do que celebratória, refletindo a vulnerabilidade de um homem em crise. 


A família de David traz um contraste vibrante à sua apatia. Dora entrega uma atuação intensa, quase teatral, enquanto a irmã Elisa (Juliana Gattas) e a prima Silvia (Antonia Zegers) complementam o elenco com energia e emoção. Essas mulheres lidam com o luto de maneira expressiva, enquanto David permanece reservado, quase alheio às tragédias ao seu redor.

O filme opta por um tom contido, alinhado à personalidade introspectiva de David. Não há grandes explosões emocionais ou diálogos memoráveis; a morte e o luto são tratados com uma certa leveza, quase cotidiana. Essa abordagem reflete a forma como as pessoas enfrentam tragédias na vida real, mas carece de um momento de catarse.


Visualmente, "Los Domingos Mueren Más Personas" adota um estilo naturalista, com uma fotografia que não busca embelezar a realidade. A escolha combina com a figura de David, um homem comum, fora dos padrões estéticos idealizados do cinema. Ainda assim, a simplicidade da estética destaca a humanidade dos personagens, especialmente as fraquezas de David, que sustenta a empatia do espectador.


O longa é uma obra que valoriza a sutileza, capturando a complexidade das emoções humanas sem recorrer a grandes gestos dramáticos. O título, que faz referência à tradição judaica de realizar enterros no domingo quando a morte ocorre no Shabat, é um detalhe simbólico que enriquece a narrativa. A história de David, com sua fragilidade e busca por conexão, cria uma empatia genuína, mesmo que às vezes seja atrapalhada pelo ego do diretor.

Los domingos mueren más personas, comedia para atragantarse

terça-feira, 8 de julho de 2025

Las Noches de Tefia (Espanha, 2023)

"Las Noches de Tefía", série espanhola da Atresplayer, é uma criação de Miguel del Arco que combina drama, comédia e elementos musicais para iluminar um capítulo sombrio da história da Espanha: a Colonia Agrícola Penitenciaria de Tefía, em Fuerteventura, que entre 1954 e 1966 funcionou como campo de concentração franquista para "reeducação" de homossexuais, dissidentes políticos e outros marginalizados. A produção, composta por seis episódios, destaca-se por sua abordagem sensível e inovadora, trazendo à tona a repressão sofrida pela comunidade LGBTQIA+ durante o regime de Franco.

A narrativa segue Airam Betancor, interpretado por Marcos Ruiz (jovem) e por Jorge Perugorría, do eterno "Morango e Chocolate" (1993), (na versão madura), que, em 2004, reflete sobre sua experiência no campo na década de 1960. Baseada no romance “Viaje al centro de la infamia”, de Miguel Ángel Sosa Machín, a série retrata os abusos físicos e psicológicos impostos aos internos sob a justificativa de correção moral. Contudo, a trama também celebra a resiliência dos presos, que criam um espaço imaginário, o music hall Tindaya, onde se expressam livremente, evocando suas identidades e sonhos, muitas vezes por meio de performances drag que desafiam a opressão.

Um dos maiores méritos da série é sua habilidade de mesclar gêneros narrativos através de sua estética, preto e branco para o campo de concentração, colorido vibrante para as cenas de 'fuga'. A combinação de drama histórico, comédia e números musicais resulta em uma experiência que equilibra a dureza dos temas com momentos de leveza e esperança. Essa abordagem permite que a série trate de questões como repressão, trauma e resistência de forma acessível, humanizando os personagens e criando uma conexão emocional com o público. A direção de Miguel del Arco e Rómulo Aguillaume, aliada a uma fotografia que utiliza luz e cor de maneira expressiva, reforça o contraste entre o ambiente opressivo do campo e a liberdade sonhada no Tindaya.

O elenco entrega atuações marcantes, com destaque para Marcos Ruiz, que dá vida a Airam e seu alter ego drag, La Bambi, com vulnerabilidade e força, e Patrick Criado, como La Vespa, cuja energia carismática carrega camadas de dor. Atores como Miquel Fernández (Charli), Israel Elejalde (Don Anselmo) e José Luis García Pérez (El Andaluz) complementam o grupo com interpretações que evidenciam a camaradagem e as tensões entre os internos.

A relevância de "Las Noches de Tefía" reside na contribuição para a memória histórica e a visibilidade da comunidade LGBTQIA+, na Espanha. Ao abordar a perseguição sofrida por homossexuais durante o franquismo, a série resgata histórias silenciadas e reforça a importância de reconhecer as injustiças do passado para construir um futuro mais inclusivo.

Premiada com um GLAAD, entre outros, a atração é uma obra essencial que alia compromisso histórico, sensibilidade artística e audácia narrativa. Sua capacidade de transformar uma história de dor em uma celebração da resistência e da identidade a torna uma inclusão poderosa ao catálogo de narrativas queer, ainda que não esteja oficialmente disponível no Brasil.


Hotel Milano (Itália, 2022)

“Hotel Milano”, quinto longa-metragem de Pasquale Marrazzo, é um drama que mergulha nas complexidades do amor em um mundo marcado pela intolerância. A história segue Riccardo (Michele Costabile) e Luca (Jacopo Costantini), um casal gay que enfrenta violência homofóbica constante de um grupo de agressores (Leandro Conte, Francesco Iovine, Luca Machitella, Vadim Ritter). O filme aborda a luta pela autoexpressão e a liberdade de amar, temas de grande relevância em um contexto global de divisões sociais.

A narrativa ganha força ao retratar o amor intenso entre Riccardo e Luca, especialmente em flashbacks que mostram os primeiros momentos de seu relacionamento. Essas cenas, bem construídas, oferecem uma janela para a conexão especial entre os dois, humanizando-os e dando ao público um motivo para se importar. No entanto, o filme sofre com uma estrutura fraturada, com cortes abruptos que interrompem o fluxo emocional.

Um dos pontos altos do filme é a personagem Rachele (Luisa Vernelli), irmã de Luca, que se destaca como a figura mais bem desenvolvida. Vernelli entrega uma atuação excepcional, capturando o conflito interno de uma mulher dividida entre a lealdade aos pais religiosos (Lucia Vasini, Antonio Rosti) e seu senso de justiça. É nas interações de Rachele com os outros personagens que o filme encontra sua seriedade e profundidade emocional.


Por outro lado, o roteiro apresenta falhas bem significativas. A conexão de Riccardo com seus agressores, revelada de forma desajeitada e excessivamente óbvia, confunde mais do que esclarece. Da mesma forma, a relação entre Riccardo e sua mãe, uma viciada que o abandonou na infância, é tratada de maneira superficial. Suas conversas telefônicas, destinadas a explorar a dor de um vínculo fraturado, carecem de impacto emocional, deixando esse arco narrativo subdesenvolvido.

Apesar de suas falhas,”Hotel Milano” é elevado por um elenco competente e acerta ao abordar a violência e o preconceito enfrentados pela comunidade LGBTQ+, mas tropeça na execução. Seus melhores momentos vêm em doses pequenas, como os flashbacks do casal e a complexidade de Rachele, mas a narrativa se arrasta em busca de maior profundidade. 


domingo, 6 de julho de 2025

Asog (Canadá/EUA, Filipinas, 2023)

"Asog", de Sean Devlin, é uma obra singular que combina realismo mágico, comédia irreverente e uma profunda reflexão sobre traumas coletivos e individuais nas Filipinas pós-Super Tufão Yolanda (Haiyan). Ambientado em um cenário de devastação climática e social, o filme acompanha Jaya, uma apresentadora de TV trans que, após perder o emprego, retorna ao papel de Sr. Andrade, um professor não-binário. A escolha de escalar sobreviventes reais do tufão confere uma verdade visceral, sem nunca parecer exploratória, tornando a dor e a esperança palpáveis.

A trama segue Jaya em uma jornada rumo ao concurso Ms. Gay Sicogon, uma espécie de road movie que troca carros por pedicabs e balsas, refletindo as limitações financeiras dos personagens. Ao longo do caminho, Jaya encontra comunidades devastadas pelo Yolanda, revelando não apenas a destruição física, mas também a corrupção e o oportunismo que seguiram. No entanto, o filme equilibra essa gravidade com momentos de leveza, como perucas cômicas, stand-up e uma perseguição de pedicab hilariamente lenta. Essa dualidade entre tragédia e humor é o cerne da narrativa, capturando a essência da vida em meio à adversidade.

A estética de "Asog" é um dos seus pontos altos, com uma narrativa visual que mescla fantasias, animações e flashbacks, criando uma saturação de cores que contrasta com a melancolia da história. A fotografia de Anna MacDonald é exuberante, com exteriores vibrantes que ecoam o luto e a beleza das Filipinas. O título "Asog", que remete às figuras não-binárias pré-coloniais das Filipinas, conecta Jaya a uma linhagem de curandeiros espirituais, simbolizando sua transição de tentar curar traumas individuais em sala de aula para enfrentar os desafios sistêmicos de uma geração marcada pela perda.

A narrativa entrelaça a jornada de Jaya com a de Arnel, um jovem órfão lidando com o luto pela mãe. A relação entre eles é a essência do filme, especialmente em momentos como a aula de história improvisada de Jaya ou a lição de drag que arranca um raro sorriso de Arnel. A personalidade de Jaya brilha, seja na intimidade com seu parceiro Cyrus, seja em sua luta por respeito na escola.

O filme não deixa de abordar questões estruturais como o colonialismo e as mudanças climáticas, mas evita ser didático ao centrar a história na humanidade de seus personagens. A trilha sonora vibrante e o conto de fadas narrado por Arnel, envolvendo mosquitos, sapos e um Rei Caranguejo, tecem realismo fantástico à narrativa.

"Asog" triunfa por sua originalidade e por sua recusa em se encaixar em moldes previsíveis. É uma celebração da resistência e da dignidade, mostrando como Jaya e Arnel, ao lado de uma comunidade acolhedora, encontram formas de seguir em frente. O filme é uma joia filipina que transcende estereótipos de gênero e narrativas convencionais sobre desastres, oferecendo uma visão única de um paraíso perdido e recuperado, onde a cura começa com a coragem de ser quem se é.



sexta-feira, 4 de julho de 2025

Os Demônios do Amanhecer (Los Demonios del Amanecer, México, 2024)

 "Os Demônios do Amanhecer", de Julián Hernandez, não é uma história de amor convencional. Ambientado na colorida e caótica Cidade do México, o filme acompanha Orlando (Luis Vegas) e Marco (Axel Shuarma), dois jovens cuja relação apaixonada se desenrola em meio à vida agitada da metrópole. Desafiando os clichês românticos tradicionais, a obra foca na experiência intensa e muitas vezes avassaladora de se apaixonar profundamente, sem recorrer às narrativas habituais de preconceito social ou lutas relacionadas ao armário.

A narrativa é uma mistura envolvente de realismo urbano e fantasia, retratando o caminho esperançoso, mas tortuoso, do amor juvenil. Um dos momentos mais marcantes é a cena surreal e melodramática em que uma drag queen performa uma versão em espanhol de "Como Nossos Pais", canção de Belchior eternizada na voz de Elis Regina. Esse interlúdio ousado encapsula a exploração do filme sobre a natureza caprichosa e dramática do amor, adicionando uma camada de excentricidade e emoção à trama.

A dança é um elemento central na obra, tanto como profissão de Orlando quanto como ferramenta narrativa visual. A câmera, do cinematografista Alejandro Cantú, se detém nos movimentos e corpos dos personagens, apreciando a fisicalidade e a sensualidade de sua conexão. Essa abordagem transmite emoções de forma eficaz, sem a necessidade de diálogos extensos, e reforça a importância do corpo e do movimento na expressão do desejo e da intimidade.


O relacionamento entre Orlando e Marco é retratado com honestidade, capturando a volatilidade e a excitação típicas do amor jovem. Suas interações refletem os desafios de manter uma relação enquanto lidam com o crescimento pessoal e as restrições familiares. O filme enfatiza a energia frenética da paixão, em vez da profundidade do amor maduro, oferecendo um olhar realista sobre as complexidades dos relacionamentos juvenis.

"Os Demônios do Amanhecer" apresenta uma perspectiva renovada sobre o romance gay, transcendendo clichês para explorar as complexidades universais do amor. Através de sua narrativa única, que inclui a memoráveis cenas de sexo, o filme destaca tanto a beleza quanto a tolice do amor, afirmando que os relacionamentos entre pessoas do mesmo sexo são tão multifacetados e desafiadores quanto quaisquer outros. Hernández, assim, consolida sua posição como um cineasta que retrata com sensibilidade e ousadia as nuances da comunidade LGBTQI+ mexicana.

quinta-feira, 3 de julho de 2025

Lessons of Tolerance (Uroky tolerantnosti, Ucrânia, 2024)

 "Lessons of Tolerance", de Arkadiy Nepytaliuk, adapta a peça de Igor Bilytsin, estreada em Kiev em 2018. Longe de comentar diretamente a guerra na Ucrânia, o filme traz uma comédia sobre Nadia (Olena Uzlyuk), que, por necessidade financeira, inscreve sua família num projeto da UE. Eles abrigam Vasyl (Akmal Hurezov), homossexual, por um mês, recebendo indenização para reduzir preconceitos locais contra minorias.

A narrativa ganha força com os conflitos entre Vasyl e a família – o pai Zenyk (Oleksandr Yarema), os filhos Denys (Oleksandr Piskunov) e Diana (Karolina Mruha). Mal-entendidos e choques culturais surgem, mas cada um aprende à sua maneira. Apesar de padrões previsíveis, como o arco de aceitação, o humor e a química do elenco mantém o ritmo, garantindo reflexões e risos.

Ambientado num pequeno apartamento, a restrição espacial, imposta pela guerra na Ucrânia, vira vantagem. A equipe usa ângulos criativos e movimentos de câmera para dinamizar o espaço confinado, transformando a limitação em uma vitrine para os diálogos afiados.

O filme aborda inibições sexuais de forma universal. Sem sinais da guerra, e com dinâmicas de inclusão, oferece alívio cômico ao público ucraniano em tempos sombrios, uma conquista notável. Essa ausência de contexto bélico também abre portas no exterior, onde o humor transcende fronteiras.

A direção de Nepytaliuk equilibra o tom leve com a crítica social, usando o apartamento como palco de tensões, transformações e igualdade. As atuações, especialmente de Hurezov e Uzlyuk, carregam a narrativa com energia, enquanto a edição ágil reforça o ritmo cômico. É uma lição que diverte e provoca, mesmo com sua simplicidade estrutural.

"Lessons of Tolerance" usa o riso para desafiar preconceitos. Ambientado num espaço restrito, mas rico em camadas, o filme resgata a comédia como ferramenta de resistência. É um exemplo de como o cinema ucraniano segue vivo, merecendo atenção global por sua mensagem potente.

quarta-feira, 2 de julho de 2025

Valentino (Reino Unido, 1977)

 
"Valentino", de Ken Russell, mergulha na vida de Rudolph Valentino, ator de cinema mudo, desde seus dias como lavador de pratos e gigolô em Nova York até o auge da fama, entrelaçando relações com mulheres e rumores de homossexualidade. Baseado em "Valentino, an Intimate Exposé of the Sheik", o filme traz Rudolf Nureyev, Leslie Caron, Michelle Phillips e Carol Kane, narrado em flashbacks pós-morte em 1926.

A escolha de Nureyev, bailarino abertamente gay, amplifica a representatividade queer, ecoando as especulações sobre Valentino. A dança com Vaslav Nijinsky, com movimentos sinuosos e olhares carregados, e o flashback de tango sugerem desejos proibidos. A luta de boxe, resposta a um artigo que ataca sua masculinidade, exibe tensão sexual disfarçada, num jogo de corpos que desafia normas da época com extravagância e homoerotismo.

A direção de Russell explode em estética flamboyant, com cenários exagerados e cores saturadas que transformam cada quadro num espetáculo. A sequência inicial com Nijinsky, filmada como um ritual sensual, e a luta de boxe, com luzes dramáticas e sombras dançantes, criam um turbilhão visual. Gravado na Espanha por economia, o filme mistura opulência e caos.

O contexto de 1977 adiciona camadas. A produção reflete a repressão da era com um contraponto de luxo visual, usando figurinos rococó e cenários teatrais para amplificar a narrativa de um ícone sob pressão social. A narrativa, contada em flashbacks, usa a morte de Valentino como palco para uma celebração queer, com cada cena carregada de simbolismo. A narrativa ganha vida com recriações das obras icônicas de Valentino, como "O Sheik", "Os Quatro Cavaleiros do Apocalipse" e "Filho do Sheik". O trecho de "Os Quatro Cavaleiros" destaca Nureyev dançando tango com maestria, um deleite visual, enquanto uma cena infame mostra Valentino preso por bigamia, atacado por um preso (Dudley Sutton) que o provoca por falta de virilidade, e forçado por um guarda cruel (Bill McKinney) a se humilhar, misturando absurdo e tensão erótica. O método de Russell exagera os fatos biográficos com coreografias de massa e reminiscências selvagens de Art Déco, criando um frenesi visual. Performances como a de Leslie Caron como Alla Nazimova, com gestos exagerados, elevam o tom pop-erótico, transformando o retrato de Valentino num espetáculo de funeral de luxo.

terça-feira, 1 de julho de 2025

Súper Sara (Espanha, 2025)


"Súper Sara", criada e dirigida por Valeria Vegas, conhecida como autora da biografia de “La Veneno”, é uma docusérie em três episódios que mergulha na vida de Sara Montiel, uma das figuras mais emblemáticas da cultura POP e do cinema espanhol e um símbolo de resistência e liberdade. Utilizando materiais inéditos, como fitas domésticas, e entrevistas com pessoas próximas, como seu filho Zeus Montiel, Alaska, Loles León e Bibiana Fernández, a série constrói um retrato multifacetado de Montiel. Mais do que uma atriz que conquistou Hollywood, ela é apresentada como uma pioneira feminista e um ícone queer, desafiando as normas sociais em pleno franquismo.

A narrativa de "Súper Sara" é estruturada de forma coesa, com cada episódio explorando diferentes fases da vida de Montiel: sua ascensão ao estrelato, os altos e baixos de sua carreira e os desafios de seus últimos anos. Os materiais inéditos oferecem uma visão íntima e pessoal, enquanto as entrevistas trazem uma perspectiva rica e intergeracional. A série mantém o interesse ao equilibrar momentos de glamour com reflexões sobre as dificuldades enfrentadas por Montiel, especialmente em um contexto repressivo,

A direção de Valeria Vegas é um dos grandes pontos fortes da série. Vegas traz uma abordagem sensível e respeitosa, capturando a essência de Montiel com admiração genuína. A produção é tecnicamente sólida, com uma cinematografia que reflete tanto o brilho da carreira de Montiel quanto a melancolia de seus momentos mais difíceis. Os entrevistados são colocados em um cenário cheio de animal print, batons, tons pasteis e elementos que lembram a musa de “La Violetera”.

Os temas centrais de "Súper Sara" giram em torno da liberdade, da resistência e da representatividade. Montiel é retratada como uma mulher à frente de seu tempo, desafiando normas de gênero e sexualidade em uma era de repressão, o que a consagrou como ícone LGBTQIA+. A série destaca sua luta contra o machismo e o preconceito, com depoimentos de personalidades LGBTQ+, como drag queens, Sharonne, Supremme DeLuxe e Samantha Ballantines, amigos e jornalistas, que reforçam seu impacto.

"Súper Sara" é um tributo poderoso a uma figura pioneira. Seu potencial de apresentar Montiel a uma nova geração é significativo, reforçando sua relevância em discussões sobre feminismo e diversidade. No entanto, para quem não conhece o contexto cultural espanhol ou a história da atriz, a série pode parecer menos acessível, já que assume certo conhecimento prévio.

"Súper Sara" honra o legado de Sara Montiel com um olhar respeitoso e multifacetado. Os pontos fortes incluem a direção sensível de Valeria Vegas, o uso criativo de materiais inéditos e a abordagem cuidadosa da representatividade queer e feminista. A série é uma contribuição valiosa para a história do cinema espanhol, e além, passando pela TV, mundo da fofoca e música, celebrando uma mulher que viveu com coragem e deixou uma marca indelével na cultura e na luta por liberdade.

Renata Carvalho Recebe o 1º Prêmio Orgulho QQQ

A terceira edição da Mostra Quem Quer Queer? (QQQ) chega ao clímax no dia 7 de julho, no Estação Net Botafogo, com a entrega do 1º Prêmio Orgulho QQQ a Renata Carvalho, artista multifacetada homenageada deste ano. Atriz, diretora, dramaturga e transpóloga (antropóloga transgênero), a graduanda em Ciências Sociais é fundadora do MONART, do Manifesto Representatividade Trans e do Coletivo T, marcando sua luta por visibilidade queer.

No audiovisual, Renata arrasa com direções e atuações em filmes impactantes. Em “Salomé” (André Antônio, 2024), pelo qual faturou Melhor Atriz Coadjuvante no 57º Festival de Brasília, tem pré-estreia após a cerimônia, às 20h30. No mesmo dia, às 17h20, rola “Vento Seco” (Daniel Nolasco, 2023), onde faz a policial Paula, e às 19h30, “Corpo: Sua Autobiografia” (com Cibele Appes, 2020), narrando transcestralidade e transfobia em sua voz.

Outros destaques de sua carreira incluem a atuação como Carmen em “Pico da Neblina” (HBO Max), e nos docs “Quem Tem Medo?” (sobre censura) e “Corpolítica” (debates LGBT). Como Rose em “Os Primeiros Soldados”, sobre HIV/AIDS nos anos 80, levou o Prêmio Especial do Júri no 52º International Film Festival of India e no 23º Festival do Rio, além de Melhor Atriz Coadjuvante no 28º Prêmio Guarani, sendo a primeira trans nesta categoria. A Billboard a listou entre 30 trans notáveis acima dos 30.

O Prêmio Orgulho QQQ, criado pela Naked Neuras, será anual, homenageando artistas queer no cinema brasileiro. A cerimônia, com as drags do Cine Drag @dudakoo e @dragchanel, celebra o mês do Orgulho LGBTQIAPN+. A curadoria da Mostra QQQ, desde 27 de junho nos cinemas Estação, é do Grupo Estação, Wescla Vasconcelos e Cine Drag.