terça-feira, 23 de dezembro de 2025

Tudo é Justo (All's Fair, EUA, 2025)

“All’s Fair”, criada por Ryan Murphy, apresenta um melodrama jurídico pop como um exercício deliberado de exagero, superficialidade e ironia. A série acompanha um grupo de advogadas especialistas em divórcios milionários que rompem com um escritório dominado por homens para fundar a LVLUP Legal, em Los Angeles, transformando batalhas judiciais em arenas de poder, vingança e moda. Desde o início, fica claro que o interesse central não está na verossimilhança jurídica, mas na encenação de rivalidades femininas, alianças instáveis e na sátira de uma elite que consome o próprio colapso como entretenimento.

No centro desse tabuleiro está Allura Grant, interpretada por Kim Kardashian, uma protagonista moldada pela fusão entre persona pública e ficção. Advogada implacável e estrategista, Allura carrega marcas evidentes do próprio divórcio midiático de Kardashian e de seus estudos em Direito. O power dressing maximalista, construído com peças do closet real da atriz e com figurinos assinados por Paula Bradley, funciona como extensão narrativa da personagem, ocupando o tribunal como quem ocupa uma reality show. Ainda assim, a série não se esforça para aprofundar seus dilemas éticos, preferindo tratá-los como combustível dramático rápido.

O fogo cruzado de “All’s Fair” é a rivalidade entre Allura e Carrington Lane, vivida por Sarah Paulson. Carrington é a encarnação do ridículo consciente, uma vilã que abraça o exagero como método e rouba a cena justamente por não temer o caricato. O momento em que se disfarça de Allura, replicando maquiagem, figurino e postura para infiltrar-se simbolicamente na firma rival, sintetiza o projeto estético da série, identidade como performance, poder como farsa e humilhação como entretenimento. Paulson transforma a personagem em uma força caótica que sustenta o ritmo da temporada, mesmo quando o roteiro escorrega na repetição.

O elenco de apoio amplia esse jogo de contrastes. Glenn Close, como Dina Standish, surge como a matriarca ambígua da LVLUP Legal, uma mentora experiente cuja autoridade nunca é totalmente confiável, oferecendo conselhos tão afiados quanto manipuladores. Naomi Watts, como Liberty Ronson, traz um sarcasmo britânico elegante e uma recusa afetiva ao compromisso que dialoga com o cinismo estrutural do universo jurídico. Já Emerald Greene, (Niecy Nash-Betts), com seus chapéus de Carmen San Diego, apresenta um dos arcos mais promissores da temporada ao abordar abuso e sobrevivência, ainda que seu impacto seja diluído pela pressa narrativa e pelo tom caricato dominante. Teayana Taylor, atriz em ascensão, é completamente subaproveitada.

Visualmente, “All’s Fair” aposta em uma estética pop glamourosa que remete tanto a “Feud” quanto a “The Good Wife”, filtradas pelo gosto camp característico de Murphy. Ombreiras largas, cores codificadas por personagem e cenários que misturam luxo corporativo e teatralidade compõem um mundo onde tudo é performance. Essa estilização constante, embora sedutora, contribui para a sensação de superficialidade que marca a recepção crítica da série, frequentemente apontada como rasa, mas curiosamente eficaz em sua proposta de entretenimento autoconsciente.

Depois desse surto, Ryan Murphy merece uma intervenção. “All’s Fair” parece apenas querer alimentar seu ego e funciona menos como drama jurídico e mais como uma comédia cruel sobre poder, imagem e rivalidade feminina no capitalismo tardio. Ao tentar tocar em temas sérios como abuso, ética profissional e desigualdade de gênero, a série frequentemente os esvazia em favor das frases de efeito e do choque visual. Com uma season finale abrubta, e já renovada para a 2ª, a atração é um produto excessivo que assume o artifício e tenta encontrar forças não na profundidade, mas na coragem de ser escandalosamente superficial. Cliffhanger? Meu c*!

segunda-feira, 22 de dezembro de 2025

TOP 10 SÉRIES GAYS 2025, por @mont6147


A lista a seguir nasce do meu olhar para quem acompanha o blog. Notei um imparável @mont6147 no X, um seguidor assumidamente apaixonado pelas séries que entendem o sexo, o humor e o melodrama (e os finais felizes) como linguagens legítimas da experiência gay. Mais do que um ranking definitivo, esta seleção funciona como um retrato do momento atual das séries gays, em que o desejo não pede desculpas, o prazer não é tratado como culpa e o romance insiste mesmo nos ambientes mais hostis. Entre nudez, humor, melodrama e fantasia, o que surge é uma televisão queer que prefere o risco ao conforto e a entrega à contenção.


Recebi um convite mais que especial para escrever um "Top 10 séries gays do ano de 2025". Muitos que estão lendo isso devem estar se perguntando o porquê de eu ter sido escolhido. Para quem não me conhece, sou o montygomery (@mont6147) e me dedico a fazer GIFs de séries e filmes LGBTs. Então, sem mais delongas, aqui está a lista:

10 - HOUSE OF GUINNESS (Netflix) Quem não ama uma série de ÉPOCA, não é mesmo? E esse smash hit global não decepciona no quesito entretenimento. De casamentos arranjados a personagens gays gemendo alto enquanto recebem uma "boca amiga", essa série não decepcionou em mostrar que, não importa a época, personagens gays sempre estiveram aqui.

9 - BOOTS (Netflix) ATENÇÃO, CADETES: ESSA AQUI VAI PARA QUEM TEM FETICHE EM HOMENS FARDADOS! Essa série lançada pela Netflix mostrou as dificuldades de um jovem gay em sua passagem pelo exército. Particularmente, o que mais me chamou a atenção (fora os homens nus) foi o casal Sullivan e Wilkinson — desde o ato de se ajoelharem para beijar um ao outro até a declaração de amor fantasiosa. Torço firmemente por uma segunda temporada para ver esses dois amantes juntos e felizes.

8 - BRILLIANT MINDS (2ª Temporada - NBC) HÁ ALGUM AMANTE DE OLD MEN YAOI POR AÍ? Esse hit indie, sem intenção de charts, promete muito e cumpre seu papel ao nos apresentar Wolf, um homem gay na casa dos 40 que trabalha em um hospital e se apaixona por seu chefe. De beijos em elevadores a flertes com armas, essa série não só serve um slow burn delicioso, como também um enemies to lovers que faz você querer se internar nesse hospital para ver esses dois pombinhos apaixonados de perto.

7 - PRIME TARGET (Apple TV+) SÓ ODEIA ESSA QUEM NÃO ENTENDE MATEMÁTICA BÁSICA. Essa comédia romântica nos mostra Edward, um homem viciado em matemática que desvenda o segredo dos números primos. O que chama a atenção aqui é o fato de que a série foge do genérico "homem hétero salvador" e coloca um homem gay autista como protagonista. Edward, mesmo com sua timidez, consegue até um namorado: o magnífico Adam. Definitivamente uma das melhores séries do ano. Quem me conhece sabe: sou EDAM WARRIOR (Edward + Adam forever)!

6 - CASSANDRA (Netflix) DOMO ARIGATO, MR. ROBOTO. Minissérie com final aberto, esse lacre nos apresenta uma família que, após uma tragédia, se muda para uma casa tecnológica comandada por uma robô, a enigmática Cassandra (Alexa fracassada!). Na família há um adolescente chamado Finn, que se apaixona por seu colega de classe no primeiro dia de aula e tenta a todo custo fazer o relacionamento dar certo. Cassandra nos mostra que odeia todos, mas quando o assunto é gays, ela se torna uma verdadeira mãe.

5 - JUICE (2ª Temporada - BBC) POSSO INVADIR SUA CASA NO MEIO DA NOITE E FALAR QUE É UM HELL OF A VIEW? Essa comédia deliciosa da BBC nos apresenta o fantasioso Jamma, que tenta navegar a vida adulta com seu namorado Guy. Cenas envolvendo fantoches, montes de travesseiros, ratos falantes e um nude extremamente delicioso de Guy. O relacionamento dos dois sofreu altos e baixos, mas eles provaram que o amor (ou o hell of a view) pode, sim, vencer tudo.

4 - THE RIGHTEOUS GEMSTONES (HBO) NÓS, CRENTES! Essa sátira focada em uma família dona de várias igrejas nos mostra que performance e glamour nunca saíram do gosto popular. Homens nus andando de jatos, padres usando mochilas voadoras enquanto louvam ao Senhor e um casal gay magnífico e apaixonante. Essa série foi embora cedo demais e não sei o que farei sem o meu casal do ano: Kelvin e Keefe.

3 - OLYMPO (Netflix) ANABOLIZANTES? ADORO, USO SEMPRE. Que tal uma série sobre um centro esportivo onde atletas de alto rendimento são magicamente transformados em máquinas olímpicas prontas para qualquer coisa? No meio dessa "Drogasil", temos Roque e Sebas, jogadores de rugby que se apaixonam perdidamente e enfrentam tudo e todos para ficarem juntos. Definitivamente merecem o Top 3, não só pela química absurda, mas pelas cenas sexuais que fizeram os gays gozarem... digo, gritarem! (BOTA UMA FOTO AQUI, ADM! O POVO QUER VER!)

2 - BELLEFLEUR (Crave) RELACIONAMENTO ABERTO? NÃO. TRAIÇÃO? ÓBVIO QUE SIM! Bellefleur é uma comédia romântica que apresenta Max e Samir, dois empresários que, após jogarem tênis, compartilham um beijo acalorado. Sem muitas dúvidas, os dois começam um caso extraconjugal (puritanas, sem latir aqui!). Isso vai desde declarações de amor no meio da noite até homens chorando em festas dizendo que sentem falta do namorado. Para mim, eles são o casal do milênio e Bellefleur o hit do ano.

1 - HEATED RIVALRY (Crave) "WE DIDN'T EVEN KISS. I NEED YOU. I WANT YOU." Essa série estupenda nos apresenta Ilya e Shane, dois jogadores de hóquei de times rivais que, após um encontro "tenso" no banheiro, decidem jogar tudo para o ar e partir para o jogo. No episódio 3, a série também nos mostra Kip e Scott, um bartender e um jogador de hóquei que compartilham um pequeno romance. Butt plugs, meia de bananas e homens chorando implorando por amor: essa masterpiece mereceu o número #1 não só pelas cenas sexuais deliciosas, mas por mostrar que não dá para impedir o tesão dos gays. HIT!

MENÇÕES HONROSAS: XO Kitty, Adults, Overcompensating, Happiness e Etoile.


Nota do Editor: Abrir espaço para o olhar do seguidor é entender que a experiência queer na TV é múltipla. Enquanto minha curadoria muitas vezes busca o rigor técnico e o peso histórico, o @mont6147 nos lembra que o prazer, o "ship" e o impacto visual são motores essenciais do nosso consumo. Uma lista viva, pulsante e, acima de tudo, DIVA! E calma, o TOP 10 SÉRIES do CINEMATOGRAFIA QUEER sai em 29/12!

O Leve Bailar das Borboletas (Brasil, 2025)

“O Leve Bailar das Borboletas”, curta-metragem dirigido por Leandro Fasoli e roteirizado em parceria com Guilherme Aniceto, aposta no sensorial e no fantástico como vias legítimas para elaborar o luto amoroso. Primeiro trabalho de Fasoli, o filme já nasce atravessado por um reconhecimento expressivo no circuito de festivais, acumulando prêmios que atestam a força de sua proposta estética e emocional. A história segue Frederico (Adolfo Moura) após a morte do companheiro, Antonio, situando sua experiência em um espaço doméstico que deixa de ser abrigo para se tornar arquivo afetivo. A casa, saturada de vestígios do amor vivido, configura o território inicial de uma dor que não encontra tradução imediata em palavras, apenas em matéria, textura e corpo.

A descoberta da coleção de borboletas de Antonio, especialmente o espaço reservado para uma rara borboleta azul ainda ausente, funciona como disparador narrativo e simbólico. Esse vazio não remete apenas à perda concreta, mas a um desejo de continuidade que se desloca do outro para o próprio sujeito enlutado. A borboleta azul concentra a ideia de um afeto que se recusa a se cristalizar, permanecendo em trânsito. O curta compreende o luto queer não como ruptura definitiva, mas como processo contínuo de reinscrição do amor no mundo, mesmo na ausência.

É nesse ponto que o filme radicaliza sua aposta ao introduzir a metamorfose corporal de Frederico. O corpo que floresce não opera como ornamento visual, mas como tradução física de uma experiência emocional que transborda os limites do realismo. Fasoli investe em um fantástico corporal alegórico, onde dor e beleza coexistem sem hierarquia, transformando o luto em matéria viva. A floração não apaga a ausência, mas a incorpora, sugerindo que amar após a perda implica reorganizar a própria carne em diálogo permanente com a memória.

A dimensão queer do curta se afirma justamente na recusa a normalizar o luto ou enquadrá-lo em trajetórias previsíveis de superação. A relação entre Frederico e Antonio é apresentada como um grande amor. Ao eleger a fantasia e o sensorial como linguagem, o filme se alinha a uma escolha que é também política, ao legitimar a dor homossexual como experiência central, complexa e digna de elaboração poética.

“O Leve Bailar das Borboletas” constrói sua força a partir de estados afetivos e de uma relação íntima entre corpo e natureza. A direção de fotografia de Geraldo Sampaio é decisiva nesse percurso, criando imagens que privilegiam texturas, luz e proximidade, reforçando a dimensão tátil do filme. A canção “Viento de Otoño”, composta e interpretada por Adolfo Moura, amplia essa camada emocional, dialogando diretamente com o roteiro e funcionando como extensão do estado interno do protagonista.

O reconhecimento acumulado em festivais, incluindo prêmios de júri e de voto popular, não surge como validação externa casual, mas como resposta a um filme que articula com precisão forma, afeto e imaginação. A borboleta azul e a metamorfose corporal não oferecem fechamento, e sim continuidade. “O leve bailar das borboletas” surge assim, como uma obra socialmente relevante ao afirmar que o luto pode gerar novas formas de existência, onde a memória não paralisa, mas impulsiona o corpo a seguir em constante transformação.


domingo, 21 de dezembro de 2025

❤️ FAVORITOS DO PÚBLICO: O Top 10 que Definiu 2025


A curadoria da retrospeQUEERtiva 2025 parte sempre de um olhar crítico sobre o que há de mais pulsante no cinema queer contemporâneo, mas é no engajamento do público que se revela um termômetro decisivo. Os textos mais lidos do ano no CINEMATOGRAFIA QUEER indicam um interesse consistente por narrativas que tensionam o drama íntimo, o desejo deslocado, o terror transgressor e os afetos em estado de instabilidade.

Organizada a partir do ranking de acessos do blog em 2025, esta lista reúne filmes e séries que catalisaram debates, compartilhamentos e leituras atentas. Do thriller policial ao drama familiar, passando por erotismo, cinema de gênero e experiências formais, estes são os 10 títulos que definiram a conversa com nossos leitores ao longo do ano.

A CONTAGEM REGRESSIVA DOS MAIS ACESSADOS:

10 - "Straight" (México, 2023), de Marcelo Tobar

09- "Langue Étrangère" (França, Alemanha, Bélgica, 2024), de Claire Burger

08 - "Emmanuelle" (França, EUA, 2024), de Audrey Diwan

07 - "Ponyboi" (EUA, 2024), de Esteban Arango

06 - "Vitória" (Brasil, 2025), de Andrucha Waddington

05 - "À Paisana" ("Plainclothes", EUA, 2025), de Carmen Emmi

04 - "Enzo" (França, Bélgica, 2025), de Robin Campillo

03 - "Sauna" (Dinamarca, 2025), de Mathias Broe

02 - "Mamántula" (Alemanha, Espanha, 2023), de Ion de Sosa

01 - "Twinless" (EUA, 2025), de James Sweeney

sexta-feira, 19 de dezembro de 2025

PREVIEW 2026: O RETRATO DE DORIAN GRAY, POR MATHEUS MARCHETTI

 

O reconhecimento crítico recente a “Labirinto dos Garotos Perdidos”, incluindo elogios da Rolling Stone, marcou um ponto de inflexão na trajetória de Matheus Marchetti. Um filme assumidamente menor em escala orçamentária e ambição industrial acabou se tornando o trabalho mais visível de sua carreira até aqui, ampliando público e consolidando uma estética autoral que transita entre o teatro filmado, o horror simbólico e o desejo queer como matéria dramática. A entrada quase integral de sua filmografia no catálogo da FILMICCA reforça esse movimento, oferecendo ao cinema de Marchetti uma circulação inédita no Brasil e reposicionando sua obra dentro de um ecossistema curatorial atento ao risco formal: “Meus filmes sempre circularam de uma forma mais underground, muitas vezes fechados na região Sudeste, e sinto que estou conseguindo atingir um público muito maior com eles”, comenta.

A expectativa é que esse novo alcance funcione também como terreno fértil para a recepção de “O Retrato de Dorian Gray”, previsto para o segundo semestre de 2026. Se “Labirinto dos Garotos Perdidos” dialogava com o universo do Grindr e com referências como “Depois de Horas”, de Scorsese, o aprendizado estético que desemboca em “Dorian Gray” vem, curiosamente, do teatro. Marchetti aponta a gravação de seu espetáculo “O Bosque dos Sonâmbulos” como experiência-chave. “Aquilo que era para ser um mero registro ganhou vida própria. A câmera revelou ângulos, texturas e detalhes invisíveis ao olhar do espectador ao vivo”, explica.

Essa descoberta orienta a concepção de “O Retrato de Dorian Gray”, pensado como uma peça filmada que se transforma em outra obra. A referência a Guy Maddin e ao “Drácula” encenado como balé no palco, assim como ao “Edward II”, de Derek Jarman, ajuda a situar o projeto. Ensaiado e gravado como teatro, o filme articula o espaço cênico quase vazio com intervenções externas, gravadas no litoral paulista e nas áreas nobres do Theatro Municipal. “Quando Dorian e Henry vão ao teatro assistir uma ópera, a ópera acontece no mundo real, enquanto a realidade deles se passa dentro do proscênio”, descreve o diretor, definindo o projeto como o mais formalmente experimental de sua carreira, ainda que narrativamente mais convencional.

Matheus Marchetti em ação, em "O Retrato de Dorian Gray"

Diferentemente de suas releituras livres de “Drácula” e Poe, Marchetti opta aqui por uma fidelidade quase radical ao texto de Oscar Wilde. A motivação é direta. “Tudo o que eu precisava já estava lá, era só colocar na tela”, afirma. O diretor chama atenção para algo recorrente nas adaptações anteriores, a timidez diante do homoerotismo explícito do romance. “Não chega nem a ser subtexto, é puramente texto. Não consigo imaginar ler esse livro e interpretá-lo de qualquer outra forma”, observa.

Embora ambientado na época vitoriana, “O Retrato de Dorian Gray” dialoga diretamente com inquietações contemporâneas. Marchetti rejeita uma atualização literal para o presente, apostando em anacronismos visuais e formais. O que interessa não é o culto digital à imagem, mas um medo mais profundo. “É o medo de envelhecer e morrer sem poder viver autenticamente, algo muito presente fora do sistema cisheteronormativo”, explica.

Essa angústia atravessa Dorian, Basil e Henry de maneiras distintas. A arte como substituto do toque, a juventude eterna como prisão e o desejo como força que isola são tensões centrais do filme. Visualmente, essa frustração se traduz em imagens deliberadamente imperfeitas. Filmado em digital, mas distante da alta definição cristalina, o longa aposta em ruído, fumaça e foco instável. “Assim como a busca de Dorian por perfeição é frustrada, a imagem nunca está completamente ‘limpa’”, comenta o diretor.

Apesar da aura gótica, Marchetti enfatiza o humor como elemento estruturante da obra, recuperando o Wilde satírico. “Muitos vão se surpreender com o quão engraçado esse texto consegue ser”, antecipa. O filme não se organiza como musical tradicional, mas incorpora números musicais, incluindo um dream ballet de quase dez minutos, reafirmando a relação do diretor com o erudito.

O horror surge como presença estilizada, em diálogo com o Expressionismo Alemão e com o cinema de Michael Powell e Emeric Pressburger. Trata-se menos de choque e mais de atmosfera, em sintonia com um cinema queer que trabalha o excesso como forma e o artifício como linguagem. Com Rodrigo Cavalini, Johnny Hooker, Tony Germano, Nuno Lima, Gabriel Muglia, Tuna Dwek, Yelon Daniel, Andy Cruz, Pedro Ferreira, Gabriel Cersosimo, Rafa Neves, Caio Mutai, Julio Mourão no elenco, “O Retrato de Dorian Gray” aponta para um cinema que não busca acomodação, mas reinvenção formal, fidelidade radical ao desejo e disposição para enfrentar seus próprios fantasmas estéticos e históricos.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

PREVIEW 2026: O QUE VEM POR AÍ


 
O que o cinema e a TV queer já anunciam para o próximo ano

O ano de 2026 se desenha como um período de expansão estética e consolidação política do cinema queer, cruzando autoralidade, cultura pop, horror, memória histórica e melodrama. Mais do que diversidade temática, o que emerge é um conjunto de obras que recusam o didatismo e apostam em linguagens híbridas, corpos em fricção e narrativas que tensionam desejo, poder e representação.

Os filmes mais aguardados de 2026: desejo, corpo e subjetividade

Pedro Almodóvar retorna ao centro da conversa com “Amarga Navidad”, reafirmando seu interesse pelos afetos feridos, pela memória e pela maturidade emocional queer. Entre os títulos mais aguardados do ano, “Pillion”, de Harry Lighton, concentra expectativas por sua abordagem frontal de um romance BDSM. Já “The Chronology of Water”, dirigido por Kristen Stewart, promete uma adaptação sensorial e visceral das memórias de Lidia Yuknavitch. “Burning Rainbow Farm”, de Justin Kurzel, já é um dos projetos mais politicamente carregados do ano. “Heartstopper Forever” encerra em formato de filme a saga de Nick e Charlie, criada por Alice Oseman e consagrada como fenômeno global na Netflix.

Subversão à Brasileira
No Brasil, 2026 reafirma a força de um cinema queer atento a corpos, territórios e gêneros em fricção. “Ato Noturno”, de Marcio Reolon e Filipe Matzembacher, e “Ruas da Glória”, de Felipe Sholl, chegam aos cinemas após sólida trajetória em festivais, ampliando debates sobre desejo, moralidade e vida urbana. Matheus Marchetti prepara uma versão autoral de “O Retrato de Dorian Gray”, enquanto “Privadas de Suas Vidas”, de Gustavo Vinagre em parceria com Gurcius Gewdner, aposta no terror queer como espaço de excesso e contaminação estética, com Maria Gladys, Rodrigo o Apresentador e Marco Pigossi no elenco. "Alice Júnior - Férias de Verão”, de Gil Baroni, sinaliza a continuidade de um cinema juvenil afirmativo, enquanto “Trago Seu Amor”, de Claudia Castro, e “O Velho Fusca”, de Emiliano Ruschel, ampliam o espectro afetivo e geracional dessas narrativas. No campo documental, Henrique Arruda prepara um retrato da drag pernambucana Ruby Nox, conectando cena local, performance e o impacto cultural do “Drag Race Brasil”.


Mother Mary, de David Lowery

Música, autoimagem e pop como linguagem

“The Moment”, dirigido por Aidan Zamiri, ocupa posição estratégica nesse panorama. Mais do que um falso documentário, o filme funciona como retrato da era “brat” de Charli XCX, articulando música, performance, bastidores e autorrepresentação. Já “Mother Mary”, de David Lowery, com Anne Hathaway, Michaela Coel e Hunter Schafer, aponta para um cinema de afetos intensos, onde música, moda e identidade se entrelaçam. “Cry to Heaven”, dirigido por Tom Ford, promete transformar a prosa sensual de Anne Rice em espetáculo operístico, explorando gênero, performance e desejo em um contexto histórico raramente abordado pelo cinema mainstream. RuPaul chega com "Stop!That!Train!", filme da franquia Drag Race dirigido por Adam Shankman, com ex participantes do programa, que promete uma homenagem a clássicos como "Aeroporto".


Horror, fantasia e culto como territórios queer

O gênero segue como espaço privilegiado para narrativas LGBTQIA+. “Forbidden Fruits”, produzido por Diablo Cody, mistura culto, feitiçaria e ambiente corporativo, enquanto “Camp Miasma”, de Jane Schoenbrun, desponta como um dos títulos mais promissores do ano. Descrito como um híbrido entre slasher clássico e sensibilidade autoral, o filme reafirma o horror como linguagem queer de memória, obsessão e desejo, com Gillian Anderson e Hannah Einbinder no elenco.

Televisão: eventos, despedidas e legado

Na TV, 2026 será marcado por grandes eventos e encerramentos. “The Beauty”, de Ryan Murphy, aposta no horror social como comentário sobre beleza e sexualidade, enquanto “Interview With the Vampire”, agora focada em “The Vampire Lestat”, aprofunda sua mitologia queer sensual. Matt Bomer volta a trabalhar com a equipe de "Companheiros de Viagem" na nova série "Foster Dade", com piloto dirigido por Daniel Minahan. As temporadas finais de “Euphoria” e “Yellowjackets” sinalizam o fechamento de ciclos fundamentais da representação queer contemporânea. O Canal Brasil também prepara novidades, como a série sáfica Amora, estrelada por Bruna Linzmeyer e dirigida por Juliana Rojas, além de Coligay, sobre a torcida organizada do time de futebol gaúcho Grêmio, protagonizada por Irandhir Santos. Ryan Murphy volta em temporadas de Monster, narrando a vida de Lizzie Borden e American Horror Story, com o retorno de Jessica Lange e participação de Ariana Grande. Além disso, novas temporadas de “All’s Fair” e do sucesso “Heated Rivalry” já foram encomendadas.

Amora, de Juliana Rojas
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Um ano de risco, excesso e afirmação. E isso é só o começo, já que grande parte do que está por vir começamos a conhecer durante os grandes eventos e Festivais.

10DANCE (Japão, 2025)

“10DANCE”, de Keishi Otomo, parte de um território aparentemente clássico, o drama esportivo centrado na superação, para alcançar um lugar mais delicado. Adaptando o mangá yaoi de Inouesatoh, o filme encontra na dança de salão competitiva um espaço privilegiado para investigar desejo, disciplina e orgulho masculino, sem recorrer a espetacularização da dor ou a conflitos excessivamente traumáticos. O resultado é uma narrativa que aposta na contenção, mas jamais na frieza.

A premissa é tão simples quanto elegante. Dois campeões com talentos opostos e o mesmo nome, Shinya Suzuki (Ryoma Takeuchi), rei da dança latina, e Shinya Sugiki (Keita Machida), mestre das danças standard, unem forças para competir na prova das “Dez Danças”. O embate inicial entre swagger e rigidez, impulso e controle, constrói uma tensão que se manifesta tanto no corpo quanto no olhar. A rivalidade não é apenas técnica, mas simbólica, colocando em choque modos distintos de existir dentro de um universo regido por regras rígidas de performance e excelência.

Otomo compreende que o verdadeiro conflito de “10DANCE” não está no campeonato em si, mas no processo de contaminação entre esses corpos. Ao trocar ensinamentos, os protagonistas também trocam gestos, posturas e, sobretudo, afetos. O filme observa com precisão como a proximidade exigida pelas danças latinas, marcadas pelo contato e pela sensualidade, desestabiliza a formalidade das danças standard, tradicionalmente associadas a uma masculinidade mais contida e normativa. Essa fricção se torna o motor dramático do romance.

A encenação das coreografias é um dos grandes trunfos do longa. Cada uma das dez danças, ChaChaCha, Samba, Paso Doble, Rumba, Jive, Valsa Lenta, Tango, Valsa Vienense, Slow Foxtrot e Quickstep, é filmada de modo a evidenciar não apenas a técnica, mas a transformação emocional dos personagens. A dança deixa de ser exibição para se tornar uma linguagem íntima, um espaço onde o desejo pode existir sem a necessidade de nomeação explícita.

A fotografia sofisticada reforça o caráter glamoroso e opulento das competições, mas evita o excesso ornamental. O brilho do salão convive com momentos de treino exaustivo, suor e frustração, criando um equilíbrio entre fantasia e rigor físico. Nesse sentido, “10DANCE” entende o esporte como um ritual de exposição, no qual o corpo é simultaneamente instrumento de trabalho e superfície de afeto. A dimensão queer do filme se constrói na química entre Takeuchi e Machida. Trata-se de um romance cauteloso, quase casto, que provoca paixão sem recorrer à exploração sensacionalista. Essa escolha narrativa pode soar contida para parte do público, mas revela coerência com a proposta do filme, que prefere a sugestão à afirmação explícita, o acúmulo de tensão ao alívio imediato.

“10DANCE” é como uma fábula sobre transformação, onde vencer a competição importa menos do que atravessar as próprias defesas emocionais. Ao colocar dois homens em rota de colisão afetiva, o filme encontra beleza na disciplina e liberdade na repetição exaustiva do gesto. Um romance que dança no limite entre controle e entrega, e que entende o desejo como movimento contínuo, jamais como ponto de chegada.

Abre Alas (Brasil, 2025)

A estreia em longa-metragem de Ursula Rösele, “ABRE ALAS”, aposta em um gesto radicalmente simples e politicamente potente: reunir sete mulheres entre 53 e 85 anos em um mesmo espaço e permitir que suas histórias sejam ditas, encenadas e partilhadas. O filme não se organiza a partir de uma progressão narrativa clássica, mas como um dispositivo de escuta e presença, no qual memória, performance e corpo se articulam como matéria cinematográfica. O que emerge não é um inventário de traumas, mas um campo de elaboração, em que falar torna-se ação e a experiência vivida ganha forma estética.

Rösele constrói um documentário que opera no limite entre o real e o simbólico, recusando tanto o didatismo quanto a exploração sensacionalista das dores narradas. As protagonistas não são tratadas como personagens exemplares ou casos a serem explicados, mas como sujeitos que performam a própria existência, reencenando lembranças, afetos e rupturas. A câmera sustenta esse pacto ético com enquadramentos que respeitam o tempo da fala e do corpo, criando uma relação de proximidade que não invade, mas acompanha.


As histórias atravessam violências domésticas, abandono, exclusão social, luto, transfobia e precariedade econômica, porém o filme evita fixar essas mulheres exclusivamente na posição de vítimas. Walkíria, mulher trans com mais de 60 anos, apresenta uma compreensão expandida de família e pertencimento, enquanto Dora afirma sua identidade feminina para além da dor e da vergonha impostas. Silvana, Sheila, Regina, Lorena e Heloísa compartilham trajetórias marcadas por perdas e reinvenções, revelando como o amadurecimento pode abrir espaço para desejo, prazer e autonomia, mesmo após décadas de silenciamento social.


A dimensão coletiva é um dos eixos mais relevantes de “ABRE ALAS”. Ao reunir essas mulheres em um mesmo espaço, o filme produz um campo de ressonância entre experiências distintas, criando alianças afetivas e políticas que ultrapassam recortes geracionais, identitários ou de classe. A presença de mulheres trans ao lado de mulheres cis, sem hierarquização ou exotização, amplia o alcance do filme dentro de um cinema brasileiro ainda carente de representações maduras, complexas e interseccionais da velhice e da feminilidade.


Formalmente, o trabalho dialoga com a tradição da performance documental associada a Eduardo Coutinho, mas encontra uma assinatura própria ao transformar o set em espaço de criação compartilhada. A fotografia de Jenny Cardoso e a montagem de Beatriz Pomar sustentam um equilíbrio delicado entre intimidade e construção estética, evitando a ilusão de espontaneidade absoluta e assumindo o cinema como encontro mediado, consciente de sua forma.


Premiado no Femina 2025, “ABRE ALAS” afirma Ursula Rösele como uma diretora interessada menos em respostas do que em processos. O filme entende o cinema como prática de cuidado, elaboração e reinvenção, propondo um olhar que reconhece as marcas do passado sem aprisionar suas personagens nelas. Ao colocar mulheres maduras no centro da cena, com desejo, contradição e potência criativa, a obra amplia o repertório do documentário brasileiro contemporâneo e reivindica, com delicadeza e rigor, o direito de existir em plenitude.



quarta-feira, 17 de dezembro de 2025

TOP 10 DOCUMENTÁRIOS LGBTQIA+ 2025

Este ano, o CINEMATOGRAFIA QUEER elege os 10 documentários LGBTQIA+ favoritos de 2025. São obras que não apenas brilharam em festivais como o Candango e o SXSW, mas que traçam um mapa da memória e do manifesto, resgatando histórias que vão do legado de Cazuza à resistência das performers trans de Recife. Essa seleção celebra a urgência da não-ficção e a riqueza temática com assuntos como afeto trans e narrativas que, por muito tempo, foram marginalizadas ou apagadas pelos livros de história.

Revisita a vida e o assassinato não resolvido de Venus Xtravaganza, figura central de “Paris Is Burning”, deslocando o olhar do ícone para a pessoa. O documentário investiga com sensibilidade o legado de Venus a partir da complexidade de suas duas famílias, a biológica e a ballroom.

Ao revisitar a trajetória de Sally Ride, a primeira mulher americana no espaço, o filme revela sua identidade queer mantida em sigilo durante a vida. O documentário adiciona novas camadas emocionais e políticas à figura histórica, transformando Ride em símbolo tardio de representatividade e inspiração.

Documentário híbrido que mapeia a presença queer no cinema iugoslavo e sérvio ao longo do século XX, Ambicioso em sua arqueologia cultural, o filme revela momentos surpreendentes, como beijos homossexuais de 1911, reposicionando o Leste Europeu na história do cinema queer.

Focado no período entre 1987 e 1989, o documentário acompanha a explosão criativa de Cazuza enquanto o artista lidava com o diagnóstico de AIDS. Entre discos, turnês e o icônico show “O Tempo Não Para”, o filme constrói um retrato íntimo da resiliência e da urgência criativa.

Traçando um panorama que vai dos jornais mimeografados dos anos 60 à imprensa digital contemporânea, o documentário afirma a comunicação queer como ferramenta política central. 

A partir dos arquivos fotográficos e diários de Libuše Jarcovjáková, cineasta e fotógrafa conhecida como a “Nan Goldin da Tchecoslováquia”, o documentário expõe sexo, marginalidade e dissidência sob o regime comunista.

O filme acompanha trajetórias paralelas de April Ashley e Amanda Lear, duas mulheres trans que partiram do mesmo cabaré parisiense nos anos 60 e seguiram caminhos radicalmente distintos.

Cinco décadas após o lançamento de “The Rocky Horror Picture Show”, o documentário retorna às origens afetivas e culturais do maior fenômeno cult do cinema. Mais do que um resgate histórico, o filme mostra como Rocky Horror segue operando como catalisador de identidades, libertações e comunidades queer através das gerações.

Acompanhando a gestação de Apolo, filho de um casal trans, o documentário confronta barreiras institucionais, burocracias médicas e a transfobia estrutural. Com abordagem íntima e direta, o filme reivindica a legitimidade de paternidades trans e corpos grávidos dissidentes, articulando afeto e urgência política de forma pioneira no cinema brasileiro.

Documentário híbrido que acompanha seis performers trans veteranas de Recife, todas acima dos 50 anos, reconstruindo décadas de arte, sobrevivência e invenção de si. Com estética neon/VHS e trilha de brega nordestino, o filme transforma dor e estigma em memória viva, celebrando quem fez da noite um território de resistência e manifesto.

terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Call me Agnes (Países Baixos, 2025)

“Call Me Agnes”, estreia em longas do brasileiro radicado na Holanda Daniel Donato, aposta em uma forma híbrida para narrar a vida de Agnes (Agnes Geneva), uma mulher trans indonésia que construiu sua rotina na Holanda entre o trabalho em um pequeno restaurante, a convivência com amigos queer migrantes e a dança como espaço de respiração coletiva. Inspirado livremente na trajetória real de sua protagonista, o filme borra deliberadamente as fronteiras entre ficção e documentário, instaurando desde os primeiros minutos um jogo de intimidade e encenação que marca toda a experiência.

A chegada inesperada de Indra (Gianluca Koeswanto), jovem que cresceu na família de Agnes e a procura pelo irmão mais velho Hans, funciona como eixo dramático do filme. O conflito se estabelece não pela transição em si, que jamais é verbalizada, mas pelo peso afetivo de um passado que insiste em reaparecer. Essa escolha narrativa desloca o foco do discurso explicativo sobre identidade trans para um território mais sutil, onde o afeto, a memória e o pertencimento familiar produzem tensões silenciosas, ainda que nem sempre plenamente exploradas.

Um dos gestos mais potentes de “Call Me Agnes” está justamente na recusa em tematizar a transgeneridade como problema central. Agnes é apresentada como alguém em paz consigo mesma, cercada por uma comunidade queer migrante que compartilha rotinas, confidências e desejos. O filme sugere, de maneira delicada, que mesmo após uma transição bem resolvida, conflitos continuam a emergir, não como negação da identidade, mas como fricções emocionais entre passado e presente, intimidade e expectativa alheia.

A abordagem híbrida escolhida por Donato confere autenticidade a muitas sequências, especialmente aquelas que flertam com o registro documental, como os encontros esportivos e as cenas de dança. Agnes Geneva, interpretando a si mesma e colaborando no roteiro, sustenta o filme com uma presença magnética e generosa. No entanto, a indecisão formal do projeto cobra seu preço, já que interrupções frequentes da narrativa, seja por interlúdios musicais ou falas diretas à câmera, fragmentam o fluxo dramático e diluem a força do conflito central.

A direção revela o olhar atento de um cineasta formado na fotografia. Mesmo sob a direção de fotografia de Lamis Al Mohamad, Donato imprime um cuidado evidente com enquadramentos e texturas, criando imagens de forte apelo sensorial. Ainda assim, a tentativa de articular drama familiar, comédia leve e musical onírico resulta em uma mistura desigual. As passagens humorísticas e musicais, em vez de aprofundar a experiência emocional, frequentemente desaceleram o ritmo e tornam a dramaturgia hesitante, como se o próprio filme evitasse confrontar suas questões mais delicadas.

Apesar de suas fragilidades, “Call Me Agnes” permanece relevante pelo espaço que abre a uma subjetividade raramente vista no cinema, a de uma mulher trans migrante cuja história não se define pela explicação didática de sua identidade. O filme falha em organizar plenamente suas ideias, mas acerta ao oferecer um retrato afetivo, íntimo e imperfeito, que recusa classificações fáceis. Como obra inaugural, revela um cineasta em busca de forma e uma protagonista cuja presença sustenta, mesmo nas lacunas, a potência de uma narrativa queer que insiste em existir fora dos modelos convencionais.