sexta-feira, 31 de outubro de 2025

Satranic Panic (Austrália, 2023)

“Satranic Panic” abre com o assassinato brutal de Max, irmão encontrado de Aria (Cassie Hamilton) e parceiro de Jay (Zarif). A partir daí, Aria e Jay embarcam numa road-movie demoníaca pela Austrália rural, munidos de facão enferrujado, gírias drag e poderes recém-despertos para caçar um culto sombrio. Mackay mistura o horror de culto com a vibração queer da família escolhida e do ritual de rejeição.

A estética do filme transborda cor, giallo e camp: luzes rosa-azuladas banham o elenco antes da matança, trajes de pele humana se desfazem em demônios sarnentos, e as mortes vêm com CGIs viscerais e estilizados. A apropriação do horror de baixo orçamento torna-se festa visual,  o caos serve de tecido para a identidade trans que transborda fora da norma.

Na trama, a figura de Aria como drag performer e Jay como parceiro artístico/de transição cria um duplo eixo de dor e aliança. O gênero deixa de ser apenas “o que você tem” e vira “o que você faz, o que você enfrenta”. Quando Aria, Jay e Max enfrentam o culto, o que está em jogo não é só a vingança,  é a afirmação de que corpos desviantes não sin­tam mais a necessidade de se esconder.

O terror aqui brinca com a sátira do pânico satânico dos anos 80, mas adapta o pânico à realidade queer: o susto já vem de quem diz “isso é errado”, de quem recusa corpos que fogem. Mackay ri das teorias conspiratórias que caçam “demônios” onde existe apenas diferença, e transforma qualquer aprisionamento de identidade num demônio literal a ser destruído.


A trama é delirante, às vezes desconexa, mas sempre viva. Aria e Jay são heroínas improváveis de um mundo sem ordem moral, onde vingança e glamour se misturam em doses iguais. Há sátira, terror e musical, e, acima de tudo, há liberdade. MacKay não busca coerência narrativa, e sim intensidade emocional. Em sua câmera, gênero é sempre verbo, nunca substantivo.


Com apenas 20 anos, e vários longas no currículo ("T-Blocker", "So Vam", "Carnage for Christmas"), Alice Maio Mackay confirma-se como voz de um novo cinema queer e trans: anárquico, ruidoso e desobediente. “Satranic Panic” celebra o excesso como revolta e o riso como sobrevivência. É uma carta de amor aos monstros, aos corpos que sangram em technicolor, às drags que enfrentam o apocalipse com delineador intacto. A diretora entrega uma festa assassina e queer onde o ritual é redimir-se, e a estrada é a pista de dança onde a vingança encontra o orgulho.


Delírio (Chile/Costa Rica, 2024)

 

Em “Delírio”, a diretora costarriquenha Alexandra Latishev Salazar transforma o lar em uma armadilha de medo e silêncio. A trama segue  Masha (Helena Calderón), uma menina de 11 anos que se muda com a mãe, Elisa (Liliana Biamonte), para a casa da avó Dinia (Ana Ulloa), cuja mente se perde na demência. Desde o início, a atmosfera é opressiva: portas rangem, sombras se arrastam, e o ar parece pesado demais para uma infância. Elisa tenta proteger a filha de uma presença invisível que ameaça a família, mas o isolamento e a paranoia rapidamente substituem o cuidado.

O filme constrói o terror não a partir de monstros externos, mas do trauma que assombra gerações. Latishev Salazar explora a violência de gênero como uma força espectral que atravessa o tempo e contamina os corpos das mulheres. O pai ausente, cuja morte é duvidosa, paira como fantasma simbólico de um passado de agressão. A casa, úmida e decadente, torna-se extensão da mente de Elisa, onde o medo e a proteção se confundem. 


A estética reforça essa clausura. A câmera observa de perto, quase sufocando as personagens em planos fechados, com luzes frias que acentuam o desamparo. O som, discreto e incômodo, amplifica cada respiração, cada batida de porta. O terror psicológico de “Delírio” é construído com uma precisão minimalista que lembra outras direções femininas que compreendem o horror não como espetáculo, mas como sintoma.


Sob a superfície do terror doméstico, “Delírio” insinua um olhar queer em sua abordagem das relações femininas. Elisa e Masha compartilham um vínculo que ultrapassa o padrão materno convencional, marcado por uma intensidade emocional que beira o desejo de fusão. A ausência de figuras masculinas centrais e a presença de uma linhagem feminina isolada criam um espaço de intimidade não normativo, onde o afeto entre mulheres é simultaneamente terno e sufocante. Esse subtexto queer não se expressa pela identidade sexual das personagens, mas pela maneira como o filme desmantela as hierarquias tradicionais de poder e cuidado, propondo uma outra forma de coexistência frágil, sensorial e dissidente.


“Delírio” é também uma reflexão sobre o que o medo faz ao corpo. Elisa, ao tentar proteger a filha, repete os gestos de quem um dia a feriu. Masha, por sua vez, aprende a sobreviver em um espaço onde o amor é tão perigoso quanto o ódio. Latishev Salazar constrói essa herança emocional como um feitiço que se transmite de mãe para filha, de mulher para mulher, até o esgotamento. O horror aqui é a permanência, a impossibilidade de se libertar completamente das marcas do passado.

Bloody Axe Wound (EUA, 2024)


 “Bloody Axe Wound”, de Matthew John Lawrence, revisita o gênero slasher com um olhar queer e uma lâmina afiada. A protagonista Abbie Bladecut (Sari Arambulo) é apresentada como a primeira assassina feminina de uma linhagem marcada pela violência. Em vez de fugir do monstro, ela o encarna e é nesse gesto que o filme encontra sua força simbólica. A herança familiar da brutalidade se transforma em campo de disputa entre tradição e identidade, entre o sangue que corre nas veias e o desejo de pertencer a outro mundo.

A narrativa acompanha Abbie em conflito com o legado do pai, Roger Bladecut (Billy Burke), uma figura mítica da família e do crime. Ao ingressar em uma nova escola, ela se aproxima de Sam Crane (Molly Brown), uma jovem musicista que rompe as normas de comportamento e desperta nela sentimentos de descoberta e rebeldia. O vínculo entre as duas funciona como eixo emocional do filme, uma linha de fuga no meio da carnificina. É por meio desse afeto que a protagonista questiona o que significa ser mulher, queer e herdeira de uma tradição de violência.


A direção de Lawrence combina horror e humor ácido em doses generosas.  A violência é gráfica e exagerada, mas sempre tingida de ironia. Essa construção visual aproxima o longa do horror cult, com ecos de John Waters e de filmes B, sem perder a alma adolescente que remete aos anos 80. O resultado é um espetáculo grotesco e divertido, onde cada jato de sangue serve também como comentário social.


Entre os temas que atravessam “Bloody Axe Wound” estão o patriarcado, o legado familiar e o conflito de gênero. A tradição violenta dos Bladecut é apresentada como um ritual masculino que exclui, marginaliza e dita papéis. Quando Abbie reivindica seu lugar nesse sistema, o filme transforma o slasher em alegoria queer sobre o direito de existir,  mesmo dentro da monstruosidade. A metáfora é simples e eficaz: herdar o horror pode ser também reinventá-lo.


Ainda que nem todos os elementos encontrem equilíbrio, especialmente o desenvolvimento do romance entre Abbie e Sam, que poderia ganhar mais densidade, o filme acerta ao inserir a experiência queer sem didatismo. A representatividade está entranhada na própria estrutura da narrativa: uma jovem que luta para definir quem é, entre a herança e o desejo. Lawrence parece mais interessado em provocar do que em explicar, e isso dá à obra um tom de anarquia que combina com seu sangue artificial e suas risadas sinceras.


“Bloody Axe Wound” é uma carta de amor distorcida ao horror e à diferença. Sua protagonista encarna a desordem como libertação e faz da violência um espelho invertido da identidade queer. O filme entende que o gênero slasher sempre foi, em sua essência, sobre corpos desviantes, aqueles que ousam existir fora da norma.


quinta-feira, 30 de outubro de 2025

Hedda (EUA, 2025)

Em “Hedda”, a cineasta Nia DaCosta revisita a peça clássica “Hedda Gabler" (1890), de Henrik Ibsen, e transfere sua ação para a Inglaterra dos anos 1950, imersa em elegância de época e tensões modernas como numa obra de Todd Haynes. A atuação de Tessa Thompson como Hedda, mulher sofisticada, manipuladora e sufocada pelos códigos sociais,  é o epicentro de uma narrativa que mistura choque e chama, tradição e rebelião. Entrar no mundo desta Hedda é penetrar num baile em lava: tudo brilha, tudo arde, e toda etiqueta esconde uma ruptura iminente.

O filme aposta forte na textura: a fotografia de Sean Bobbitt constrói um salão luxuoso e voraz onde Hedda parece mais presa do que cômoda. Os vestidos impecáveis, o mobiliário opulento, a luz que afasta o natural e abraça o artifício, tudo contribui para o suspense contido, como se o glamour fosse uma armadilha. Em muitos momentos, Hedda não fala; seu olhar basta para significar tanto desejo quanto malícia.


A narrativa segue uma noite de excessos, traições e armadilhas sociais. Hedda está casada com George Tesman (Tom Bateman) por conveniência e outrora amou Eileen Lovborg (Nina Hoss), aqui reconfigurada como mulher, académica e rival. Quando Eileen reaparece com Thea Clifton (Imogen Poots), a tensão se torna explícita: quem tem direito ao desejo? Quem decide pelo radical? Quem paga o preço da liberdade? A ambientação dos anos 50, marcada por expectativas rígidas de classe, gênero e sexualidade, exacerba o conflito de Hedda entre a imagem que vive e a potência que reprime. E a trilha sonora com versões de Yma Sumac a Bjork? Anacronismo puro!

A escolha de transpor o personagem original Lovborg para Eileen, e de construir entre Hedda e Eileen (com Thea como terceira vértice) uma triangulação afetiva e competitiva, altera profundamente o jogo narrativo. Agora, o passado de Hedda não é apenas arqueologia emocional: é a presença viva de uma forma de amar recusada, silenciada, reformulada. A queerness não se limita ao erotismo latente: está na disputa por autonomia, no duplo padrão de gênero, no usufruto do desejo feminino em meio às cinzas da repressão. 


“Hedda" se impõe na filmografia da talentosa Nia daCosta. Ele revisita um clássico, injeta nele corpo, raça, gênero e desejo, e pergunta quem merece existir fora dos roteiros impostos. Hedda não quer apenas escapar da gaiola de ouro, ela quer incendiar a gaiola, e levar junto quem estiver disposto a olhar de rosto descoberto.

A Morte Lhe Cai Bem (Death Becomes Her, EUA, 1992)

Uma poção mágica, duas rivais e um pacto com a morte. “A Morte Lhe Cai Bem” é um delírio cintilante dos anos 90 que mistura humor ácido, horror e tinta spray, tudo temperado com o brilho decadente de Hollywood. Meryl Streep é Madeline Ashton, atriz em queda livre que não aceita o tempo nem o espelho, e Goldie Hawn é Helen Sharp, sua ex-amiga convertida em musa do rancor. As duas bebem o elixir da juventude eterna da misteriosa Lisle, interpretada por Isabella Rossellini em versão deusa gótica com joias demais e roupa de menos. ¡SIEMPRE VIVA! O que era para ser um milagre vira farsa: cabeças giram, corpos desabam, e o glamour se desmancha diante da câmera.

Robert Zemeckis dirige como quem dá uma gargalhada na cara da vaidade. Seus efeitos especiais, revolucionários na época, revelam a grotesca anatomia do desejo de ser perfeito. Cada ruga esticada, cada músculo torcido é uma dança macabra com o próprio ego. “A Morte Lhe Cai Bem” ri da obsessão pela juventude, mas faz isso com o charme de um desfile de mortos-vivos cheios de glitter.


Madeline e Helen são caricaturas divinas da cultura da aparência: uma encarna o narcisismo, a outra o ressentimento com batom vermelho. No meio do caos, Bruce Willis surge como Ernest, o cirurgião plástico que tenta restaurar o que já virou piada. Ele é o homem comum perdido entre duas deusas apodrecidas, o último suspiro de racionalidade em um mundo embalado por spray fixador.


O roteiro de Martin Donovan e David Koepp não tem piedade. A poção de Lisle, vendida como milagre instantâneo, é só mais uma mercadoria envenenada. No fim, as mulheres se tornam zumbis luxuosas, eternamente belas e eternamente quebradas. É uma sátira feroz à indústria que transforma o corpo em produto e o medo da velhice em lucro. Helen, com o buraco literal no peito, é o retrato mais sincero dessa ilusão vendida em frascos dourados.


Trinta anos depois, o filme ecoa em “A Substância”, de Coralie Fargeat. Lá, Demi Moore enfrenta sua própria juventude clonada em uma versão visceral do mesmo pesadelo. Se Zemeckis faz o corpo colapsar com humor, Fargeat o estraçalha com fúria. Um brinca com a carcaça do glamour, o outro arranca o couro da beleza. Ambos apontam para o mesmo abismo: a promessa de perfeição é o horror mais lucrativo da cultura ocidental.


O trio Streep, Hawn e Rossellini brilha como uma constelação de divas decadentes. Streep é puro narcisismo performático, cada movimento uma ópera sobre o medo de desaparecer. Hawn é cômica e trágica, corpo e alma consumidos pela inveja. Rossellini paira como uma entidade que mistura deusa, demônio e dominatrix. E Bruce Willis, deslocado e patético, é o fio humano dessa comédia necropolítica.


A trilha de Alan Silvestri embala tudo com um toque de grandiosidade kitsch, e a direção de arte grita excesso. É o cinema dos anos 90 em sua forma mais deliciosamente artificial: mansões douradas, luz difusa, corpos de cera. “A Morte Lhe Cai Bem” é camp no sentido mais puro, extravagante, autoconsciente e gloriosamente cafona. A imortalidade pode ser um inferno, mas aqui ela vem com salto alto, batom e um Oscar de efeitos visuais.

terça-feira, 28 de outubro de 2025

Ato Noturno (Brasil, 2025)

Por Bruno Weber Durante a sua longa parceria, os roteiristas e diretores Filipe Matzembacher e Marcio Reolon criaram histórias que, invariavelmente, giravam em torno de dois atos: o de performar e o de buscar. São tramas sobre artistas de vários formatos, pessoas que se acostumaram a desempenhar algum papel ou manter alguma ilusão, seja uma camada de tinta neon sobre a pele ou a aparência de heterossexualidade. E há quase sempre uma busca que move a trama, como o documento perdido em “Beira-Mar" ou o camboy rival do protagonista de “Tinta Bruta". Na verdade, nada disso é especialmente particular no cinema da dupla. O conflito entre mascarar e procurar uma verdade é o que move a maioria das tramas. Mas o que coloca os dois como expoentes do novo cinema queer brasileiro é a escolha de ilustrar esse conflito como tensão erótica, como se o próprio ato sexual entre dois homens fosse um jogo de verdades e mentiras, e que por isso mesmo é tão excitante.


Em seu mais novo filme, “Ato Noturno”, os diretores voltam a explorar esses temas, agora adotando uma linguagem de filme noir, o que apenas aprimora a dramaticidade das cenas de sexo. É a história de Matias (Gabriel Faryas), um ator em início de carreira que começou a trabalhar num grupo teatral famoso em Porto Alegre. Ele divide um apartamento com seu colega Fábio (Henrique Barreira), mesmo que a relação dos dois seja marcada por brigas e desavenças sobre a nova peça da trupe. Esse atrito apenas aumenta quando Fábio começa a ser sondado para o papel principal numa nova série que será gravada na cidade, enquanto Matias ressente não ter as mesmas oportunidades. Mas isso começa a mudar após uma noite, quando Matias tem uma transa casual com Rafael (Cirillo Luna), que ele conheceu num aplicativo de encontros. Matias acreditava que a necessidade de discrição de Rafael era por talvez ele ser casado, mas logo ele descobre o verdadeiro motivo: ele é vereador da cidade, e está iniciando uma campanha para eleição de prefeito. E quando a relação casual dos dois começa a se tornar mais séria, Matias descobre que de repente novas oportunidades surgem para ele. Porém, o aparente conforto do caso secreto dos dois é ameaçado, por um lado pela inveja de Fábio, mas principalmente quando Matias e Rafael começam a explorar juntos o fetiche de sexo em lugares públicos, o que os coloca em rota de conflito com Camilo (Ivo Müller), chefe da equipe de segurança de Rafael.


A atmosfera de teatro não se limita ao ambiente da peça de Matias e Fábio, se estendendo para todos os cenários, da sede de campanha de Rafael até a praça onde encontros sexuais noturnos acontecem entre as árvores. O filme se compromete com o caráter dramático de um thriller noir, com closes fechando rapidamente nos rostos dos personagens, uma trilha sonora angustiante e iluminação teatral criando sombras misteriosas. A primeira transa de Matias é Rafael, por exemplo, é filmada com a sensibilidade e importância de duas obras de arte se encontrando. Suas formas masculinas idealizadas pela câmera e pelas cores vivas do cenário. Uma luz amarelada surgindo de uma fresta na janela brilha sobre eles de repente, quase como um holofote sobre um palco, mas ainda oferecendo o risco de ser uma pessoa se aproximando, prestes a pegá-los no flagra.


Na verdade, a descoberta que Matias e Rafael fazem juntos desse fetiche de sexo em lugares públicos e mais do que um jogo sexual, e fala muito sobre como os dois lidam com suas ambições quando estão prestes a realizá-las. Matias realmente quer ser o ator principal da série, mesmo que isso implique uma "cláusula de comportamento" em seu contrato que praticamente o obriga a esconder sua sexualidade. Assim como Rafael realmente quer ser prefeito, mesmo que precise manter uma aparência conservadora e sua paixão por Matias escondida como um segredo sujo. É exatamente por arriscarem aquilo que mais desejam que ambos se sentem atraídos um pelo outro com tamanha voracidade. Em certo momento, perto do fim do filme, Rafael diz para Matias que eles podem conseguir tudo que desejam e ainda assim ser aceitos pela sociedade... um dia. Se os dois se comportarem bem, não chamarem atenção e fizerem exatamente o que precisam fazer. Ele está apenas recitando o mito do "bom gay", o homossexual respeitável com cara de bom moço, que não reclama de preconceito e nem aparenta ser "anormal". Uma autocensura perigosa, que leva a aberrações como gays e lésbicas rejeitando pessoas trans ou qualquer outra existência queer. Rafael diz isso, mas no fundo tanto ele quanto Matias sabem que não é verdade. É apenas mais um teatro, outra peça que eles estão cansados de montar. Dessa forma, quanto mais perigosas se tornam suas transas, mais elas começam a representar um ato de rebeldia. Isso tudo culmina num final em que sexo literalmente se opõe a violência, uma luta sensual entre os dois conceitos, num palco marcado por sangue, suor, sêmen e saliva.

A Natureza das Coisas Invisíveis (Brasil/Chile, 2025)

Há algo de profundamente raro em “A Natureza das Coisas Invisíveis”, estreia em longa de Rafaela Camelo: um cinema que olha o mundo com delicadeza, mas sem ingenuidade. O filme começa em um hospital, onde Glória (Laura Brandão) e Sofia (Serena), duas meninas de dez anos, se encontram entre lençóis brancos, ruídos de monitores e o silêncio da espera. Uma tem a mãe enfermeira, a outra acompanha a bisavó em estado terminal.

Nesse cenário de transição, entre infância e maturidade, vida e morte, nasce uma amizade que ilumina o invisível: o afeto, o medo, a descoberta de si. Camelo filma o luto e a infância como dimensões complementares. Sua câmera observa o cotidiano com ternura e precisão, captando o tempo das pequenas coisas: o toque, o olhar, o gesto que anuncia mudança. O hospital, o campo e a natureza que o título evoca se tornam extensões emocionais das personagens, onde o visível e o invisível coexistem.

A diretora rejeita o melodrama, preferindo o mistério: há sempre algo que escapa, algo que se sente antes de se entender. A força queer de “A Natureza das Coisas Invisíveis” está justamente nessa recusa de rótulos e fronteiras. O filme celebra modos de existir que não se encaixam nas normas, duas mães solo, crianças que se amam sem definição, mulheres que formam entre si uma comunidade de afeto e cuidado.

Camelo constrói um cinema de espiritualidade e corporeidade queer, em que o amor e o luto são experiências de sobrevivência. O realismo mágico surge como linguagem natural do afeto: quando o tempo se dilata, quando a morte parece apenas mais uma passagem, quando o invisível (seja uma lembrança, um espírito ou um desejo) participa da cena. A diretora transforma o ordinário em espaço de transcendência, onde a morte é apenas uma forma de metamorfose.

“A Natureza das Coisas Invisíveis” é menos um filme sobre a morte do que sobre o que persiste após ela: o rastro do amor, o aprendizado da perda, o gesto de cuidar. É um cinema que pede atenção ao que não se pode tocar. Poético, político e profundamente humano, o longa de Rafaela Camelo confirma uma nova voz do cinema brasileiro,  uma que enxerga o invisível como forma de existir, e o cuidado como o ato mais revolucionário de todos.

Futuro Futuro (Brasil, 2025)


Em “Futuro Futuro”, Davi Pretto reinventa o cinema de ficção científica brasileiro com um olhar profundamente humano. Vencedor de Melhor Filme, Roteiro e Montagem no Festival de Brasília, o longa constrói um futuro distópico que soa assustadoramente próximo. Em uma cidade alagada e desigual, onde a elite se isola em condomínios verticais e os pobres sobrevivem entre ruínas, a crise climática e a perda de memória coletiva compõem o pano de fundo para um retrato sombrio do Brasil que poderia ser amanhã.

O protagonista, K, vivido por Zé Maria Pescador, desperta sem lembranças em meio a esse caos. Sua busca por identidade é acompanhada pelo auxílio do Oráculo, uma inteligência artificial que tenta preencher os vazios de memória com imagens sintéticas. A jornada de K é também a de um homem tentando reconstruir vínculos em um mundo onde o afeto foi substituído pela tecnologia e o esquecimento se tornou regra. Pretto conduz essa travessia com um ritmo hipnótico, fundindo realismo social e abstração filosófica.

O futuro apresentado pelo filme é uma extensão das desigualdades do presente. A segregação entre ricos e pobres ganha contornos de ficção científica, mas o que se vê é o reflexo de uma sociedade exaurida. Nas favelas inundadas e nos corredores assépticos dos prédios de luxo, corpos e memórias coexistem em ruínas. A estética, feita de neblina, néon e decadência, evoca o cyberpunk tropical, mas sem glamour: há uma melancolia concreta, uma beleza que nasce do desespero.

Dentro desse cenário de desumanização, o filme insere o afeto e o desejo como forma de resistência. Embora o aspecto LGBTQIA+ não seja centralizado em um arco narrativo específico, “Futuro Futuro” apresenta relações e corpos rebeldes de maneira natural, até mesmo na busca por identidade. O sexo e a ternura aparecem de forma fragmentada, ora performática e fria nas elites, ora genuína e vulnerável nas margens. Essa alternância transforma o afeto em gesto político: existir, sentir e lembrar são atos de rebelião contra o apagamento.

Pretto não oferece respostas, apenas rastros. A memória, a identidade e o corpo são ruínas em reconstrução, e o espectador é convidado a decifrar um mundo que se desmancha na tela. O uso de sons metálicos, enquadramentos claustrofóbicos e luzes difusas reforça a sensação de perda e recomeço, como se cada lembrança recuperada fosse também uma ferida aberta. O futuro, aqui, não é apenas tecnológico, mas emocional, feito de solidão, desejo e busca por pertencimento.

“Futuro Futuro” é uma obra inquieta e visionária, que mistura o delírio da ficção científica à densidade do drama socia. Davi Pretto cria um mundo que reflete o nosso com desconfortante nitidez, onde o esquecimento é política e a memória, revolução. Um filme sobre perder-se para tentar existir novamente  e talvez reconhecer, no meio do esquecimento, o que ainda nos faz humanos.

segunda-feira, 27 de outubro de 2025

Ramón y Ramón (Espanha/Peru/Uruguai, 2024)

Em “Ramón y Ramón”, Salvador del Solar constrói um drama sensível sobre reconciliação, afetos masculinos e a solidão que marcou o confinamento global. O filme, uma coprodução entre Peru, Espanha e Uruguai, parte de uma premissa simples, dois homens isolados num mesmo prédio durante a pandemia, para alcançar uma jornada emocional que transcende o isolamento físico e se transforma em uma busca espiritual. Ramón (Emanuel Soriano), um jovem peruano gay que acaba de perder o pai, conhece Mateo (Álvaro Cervantes), um espanhol retido em Lima. Entre silêncios, conversas noturnas e pequenos gestos de cuidado, nasce uma conexão que desafia fronteiras, culturais e emocionais.

Del Solar, conhecido por seu olhar político e humano, faz aqui seu filme mais íntimo. “Ramón y Ramón” fala de luto e de amor com uma delicadeza que lembra o cinema de Cesc Gay e Andrew Haigh, mas com uma assinatura latino-americana, impregnada de dor histórica e afeto contido. O confinamento, longe de ser apenas pano de fundo, funciona como metáfora da imobilidade emocional: Ramón vive preso ao passado, à homofobia do pai, à culpa por não ter se despedido. Mateo, por sua vez, enfrenta o vazio de uma vida suspensa, com sua masculinidade em crise e uma vulnerabilidade que o aproxima de Ramón de modo inesperado.


A viagem para Huancayo, onde Ramón pretende espalhar as cinzas do pai, marca a transição entre o confinamento e a liberdade, tanto física quanto simbólica. É nesse percurso, entre a poeira das estradas e a vastidão dos Andes, que o filme atinge sua plenitude. A paisagem peruana, filmada com naturalismo e reverência, torna-se personagem e espelho das transformações internas dos protagonistas. A huaconada, ritual tradicional de Junín, surge como ponto de catarse: um gesto de perdão ancestral que conecta o pessoal ao coletivo, o luto individual à herança cultural.


A relação entre Ramón e Mateo evita o estereótipo da amizade viril que nega o afeto. Há ternura, ambiguidade e desejo contido, não porque o filme se envergonhe de seu componente queer, mas porque o entende como algo natural, não performativo. O roteiro, coassinado por del Solar e Claudia Llosa, trata a sexualidade de Ramón com respeito e sobriedade, mostrando como o preconceito, mesmo vindo de dentro da família, pode moldar a forma como alguém ama e se permite ser amado. O contraste entre o Ramón que pede desculpas ao fantasma do pai e o que sorri ao lado de Mateo é o arco emocional mais bonito da obra.


Visualmente, “Ramón y Ramón” é impecável. A fotografia alterna interiores opressivos, marcados pela luz fria do confinamento, com exteriores amplos, onde o horizonte andino simboliza cura e renascimento. Há ecos do realismo poético e da contemplação de João Pedro Rodrigues e Alain Guiraudie, em como o filme olha para corpos masculinos com desejo e compaixão, sem precisar sexualizá-los. A trilha sonora discreta reforça a atmosfera de suspensão, como se o tempo tivesse parado para que os personagens pudessem se reconciliar com o que perderam.


Produzido pela El Deseo, dos irmãos Almodóvar, mais do que um drama sobre pandemia, “Ramón y Ramón” é um filme sobre presença, sobre estar com o outro quando o mundo parece ausente. Del Solar entrega uma narrativa de empatia e aprendizado, um lembrete de que o amor, em suas múltiplas formas, continua sendo o antídoto mais poderoso contra o isolamento e a culpa. Um filme pequeno em gestos, mas imenso em humanidade.

domingo, 26 de outubro de 2025

O Beijo da Mulher Aranha (Kiss of Spider Woman, EUA, 2025)

Em “Kiss of the Spider Woman”, Bill Condon revisita um clássico da literatura e do cinema com o brilho e a melancolia de um musical em Technicolor. Baseado na peça de Kander e Ebb e no romance de Manuel Puig, o filme transita entre o cárcere e o sonho, entre a Argentina opressiva de 1983 e o delírio colorido da fantasia cinematográfica. Condon, que já havia explorado a relação entre espetáculo e identidade em “Dreamgirls” e “Chicago”, constrói aqui uma obra sobre o poder transformador da imaginação queer em meio à repressão política e moral.

A trama se desenrola na cela úmida de uma prisão, onde dois homens compartilham não apenas o espaço, mas também visões de mundo conflitantes. Luis Molina, interpretado com doçura e vulnerabilidade por Tonatiuh, é um decorador de vitrines condenado por indecência. Ele encontra em Valentín Arregui, o militante vivido por Diego Luna, um contraponto de dureza e ideologia. Para escapar da brutalidade da prisão, Molina narra sua versão de um musical estrelado pela diva Ingrid Luna, vivida por Jennifer Lopez, cuja Mulher-Aranha é tanto um símbolo de desejo quanto de fatalidade.

O contraste entre a cela cinzenta e as cenas em Technicolor é o coração estético e político do filme. A fantasia de Molina não é fuga, mas resistência. Cada coreografia e figurino cintilante é um ato de sobrevivência. Condon homenageia os musicais clássicos de Hollywood, de “Gentlemen Prefer Blondes” a “The Band Wagon”, usando o artifício para falar da verdade.


Há uma ternura moderna na forma como o filme retrata a relação entre Molina e Valentín. Diferente da versão de Héctor Babenco, em que o amor era atravessado por tensão e ambiguidade moral, Condon filma o afeto como aprendizado e entrega mútua. O desejo não é punição, mas cura. Valentín, o revolucionário endurecido, descobre na sensibilidade de Molina uma forma de resistência emocional, enquanto Molina encontra na honestidade política de Valentín um motivo para acreditar em algo além da fantasia.

Se o filme de Babenco é um monumento do drama de câmara sobre o trauma e a humanidade sob a opressão política, o filme de Condon é uma celebração do musical queer como resistência estética. Onde o primeiro mergulhava na clausura e no silêncio, o segundo explode em cor, ritmo e fantasia, transformando a cela em palco. Babenco pedia que víssemos a humanidade por trás da figura queer marginalizada, Condon, ao contrário, faz da própria performatividade um grito de liberdade.

“Kiss of the Spider Woman” é, portanto, mais que uma releitura, é uma reencarnação. Condon entende que o poder queer está na teatralidade, na reinvenção, no gesto que transforma o horror em espetáculo. Ao dar voz e corpo a Molina, Tonatiuh faz da fantasia uma forma de política e de poesia. E quando Jennifer Lopez surge, toda envolta em lantejoulas e mistério, ela não é apenas a Mulher-Aranha dos sonhos, mas o próprio cinema encarnado, aquele que seduz, aprisiona e também liberta.


sábado, 25 de outubro de 2025

The Crowd (Jama'at, Irã, 2025)

“The Crowd", longa de estreia de Sahand Kabiri, emerge como um documento cinematográfico de urgência e resistência, capturando a pulsação de uma juventude iraniana forçada a construir sua liberdade nas margens da sociedade. O filme transcende a simples narrativa de um drama geracional ao se estabelecer como um ato artístico desafiador. Ao focar em um grupo de amigos planejando uma festa de despedida underground para Raman, que está prestes a emigrar, Kabiri não apenas ilustra o êxodo e a esperança de fuga, mas também desenha o mapa afetivo da "família escolhida", cuja existência depende da clandestinidade em Teerã.

A verdadeira força do filme reside na forma como ele entrelaça a celebração e o luto com a resistência social e política. A festa, organizada em uma garagem familiar vazia, torna-se o espaço liminar onde as normas patriarcais são suspensas. É neste refúgio temporário que a vulnerabilidade se manifesta, culminando em uma discussão acalorada sobre a morte de Tondar, um amigo cuja perda não pôde ser lamentada publicamente. O cinema de Kabiri revela que a luta pela festa é, na verdade, a luta pelo direito de expressar o luto e a amizade em um sistema que tenta ditar até mesmo o que pode ser sentido e falado.

É neste contexto de repressão que o filme se consolida como uma crônica da resistência queer iraniana. Embora não seja explicitamente focado em tramas românticas, há um momento suave aqui e outro ali, Jamaat trata o gênero como um princípio de vida: qualquer comportamento ou relação que desafie a estrita heteronormatividade e as leis do Estado. As referências aos diálogos secretos, o medo constante da descoberta e a necessidade de manter as relações ocultas demonstram o alto custo da personalidade.

A estética do filme reforça essa temática de auto-expressão clandestina. Cenas sensíveis, diálogos íntimos e momentos de celebração como a performance de pole dance do protagonista ou a música techno ressoam como manifestações de uma identidade reprimida que se recusa a ser silenciada. Esses elementos, que poderiam ser meramente estilísticos, são na verdade símbolos de combate.

“The Crowd” se posiciona como uma resposta artística fundamental ao conservadorismo iraniano, seguindo uma nova onda de cineastas que arriscam tudo para expor a vida oculta de sua juventude. Financiado de forma independente e filmado em apenas 12 dias, a própria materialização do filme é um desafio direto à censura.

Kabiri oferece uma visão orgânica e multifacetada da juventude de Teerã, que evita a simplificação, celebrando a solidariedade e a esperança que sustentam a sobrevivência emocional dessa comunidade. Ao dar voz a essa juventude que resiste através da comunidade, do segredo e da arte, Sahand Kabiri transforma a dor da repressão em uma vibrante declaração sobre a tenacidade do espírito humano em sua eterna busca por liberdade.

sexta-feira, 24 de outubro de 2025

A Night Like This (Reino Unido, 2025)

 

Liam Calvert estreia em longa-metragem com “A Night Like This”, um romance noturno que flutua entre o realismo melancólico e a poesia etílica das madrugadas londrinas. O filme acompanha Oliver (Alexander Lincoln), dono de uma boate à beira da falência, e Lukas (Jack Brett Anderson), um ator gay quebrado e desiludido, que se encontram por acaso em um bar e decidem passar a noite juntos. A premissa é simples, mas o que o diretor constrói a partir dela é uma sinfonia de solidão, desejo e efemeridade,  uma espécie de “Before Sunrise” com cheiro de cerveja morna e neons roxos.

O roteiro de Diego Scerrati, que também assina a produção, aposta na cadência das conversas e nos silêncios entre uma confissão e outra. O encontro dos dois homens funciona menos como uma história de amor e mais como um mergulho nas ruínas da masculinidade queer contemporânea, marcada por frustrações profissionais, desejos contidos e a ânsia por ser visto. Calvert filma a noite londrina como um espelho fragmentado, onde os personagens se perdem e se revelam na mesma medida, um retrato fiel da vulnerabilidade gay urbana.


Lukas e Oliver são opostos que se refletem: o primeiro, impulsivo e quebrado, o segundo, contido e resignado. O que começa como flerte vira confissão, e o que poderia terminar em sexo casual se transforma em partilha emocional. A química entre Jack Brett Anderson e Alexander Lincoln é sutil, mas magnética, sustentada por olhares cansados e gestos que carregam tanto desejo quanto desespero. “A Night Like This” entende que o amor gay muitas vezes nasce da solidão, e que nem toda conexão precisa durar para ser verdadeira.


Visualmente, o filme é um espetáculo de contenção. A fotografia aposta em tons azulados e sombras suaves, captando o contraste entre a vibração dos bares e o vazio das ruas ao amanhecer. Cada plano parece tentar capturar o instante antes que ele desapareça, o cigarro que se apaga, a risada que quebra o silêncio, a música que ecoa num clube vazio. É um cinema de atmosferas, em que o espaço urbano se torna personagem e confidente.


O mérito de Calvert está em abraçar o minimalismo emocional sem cair no clichê do sofrimento queer. “A Night Like This” não fala sobre dor, mas sobre encontros, esses lampejos de humanidade que iluminam o escuro. O filme recusa o drama explícito, preferindo a ambiguidade dos gestos e a leveza do que não se diz. Ao invés de buscar respostas, oferece cumplicidade, como um estranho que te ouve no balcão e desaparece antes do amanhecer.


Entre taças, risadas e confissões, “A Night Like This” revela-se uma ode aos encontros fugazes e ao amor possível dentro do caos urbano. Liam Calvert estreia com um filme que respira a melancolia dos pubs londrinos e a esperança dos corações cansados, onde o simples ato de escutar o outro já é um gesto de redenção. Um retrato delicado, queer e profundamente humano daquilo que nos une, ainda que por uma noite só.

En El Camino (México, 2025)

“En el Camino”, de David Pablos, diretor de "El Baile de los 41" (2020), é um road movie sombrio e ardente que transforma a estrada mexicana em palco de desejo, violência e sobrevivência. A história segue Veneno (Sebastián Haro), garoto de programa em fuga, que cruza o país ao lado de Muñeco (Luis Gerardo Méndez), homem que o cafetina e carrega em si o peso da culpa e a fome do prazer. A jornada dos dois mistura o real e o mítico, o suor e o símbolo, compondo uma narrativa que ecoa o erotismo e a solidão de “Baby”, de Marcelo Caetano, mas com o pó do deserto no lugar das luzes de São Paulo.

Se “Baby” era um retrato íntimo e urbano, “En el Camino” é seu avesso sujo e flamboyant. Aqui, a prostituição masculina se torna paisagem e linguagem: uma forma de existir à beira do abismo. Os personagens transitam entre a ternura e o instinto, entre a performance e a entrega, sempre em busca de algo que talvez nem saibam nomear. O filme é sobre corpos que vendem prazer e compram tempo, mas também sobre homens que desejam ser vistos, nem que seja por um instante, sob o néon falso de um motel de beira de estrada.

A direção de Pablos aposta em uma mise-en-scène de excessos e contrastes. A fotografia de Ximena Amann é hipnótica, combinando a luz do neon com o vermelho do sangue e o suor da pele e aridez da estrada. Cada enquadramento parece pensado como uma pintura erótica e o filme tem plena consciência disso. Há uma cena simbólica, um boquete em uma arma, gesto tão literal quanto metafórico, que sintetiza o erotismo e a violência como pulsões irmãs.

O homoerotismo é onipresente e nunca tímido. Entre banhos compartilhados, músculos em tensão e brincadeiras na piscina, “En el Camino” cria uma coreografia de corpos em exibição e exaustão. O sexo é cru, explícito, e ainda assim, de uma beleza plástica impressionante. Não há vergonha, apenas o choque entre desejo e desespero, prazer e autopunição. É um cinema de carne viva, mas também de artifício assumido, como se Pablos quisesse provar que o delírio pode ser uma forma de verdade.

O filme explora dinâmicas de poder, desejo e sobrevivência em ambientes hipermasculinos, tematizando a sexualidade queer de forma aberta. A conexão íntima entre Veneno e Muñeco é central à trama, eles se apaixonam e se prejudicam, numa alternância de afeto, rivalidade e cumplicidade. A atmosfera mistura o realismo social, o suspense de estrada e referências literárias a Jack Kerouac, em uma jornada que confronta traumas, vícios e a própria ideia de lar temporário.

Produzido por Diego Luna, “En el Camino” é um triunfo do cinema queer latino-americano. Provocante, explícito e visualmente deslumbrante, o filme ergue um monumento à marginalidade e à beleza. Sua vitória no Queer Lion é mais do que justa: é o reconhecimento de uma obra que transforma o desejo em linguagem e a estrada em rito de sobrevivência. ¡Viva México, cabrones!