quarta-feira, 25 de junho de 2025

Enigma (EUA, 2025)

"Enigma", dirigido pela ativista trans Zackary Drucker, é um documentário que explora o fascínio humano por mistérios e complexidade da identidade. O filme traça as vidas de duas figuras trans icônicas, April Ashley e Amanda Lear, que começaram em um mesmo ponto, o cabaré parisiense Le Carroussel nos anos 60 , e seguiram caminhos radicalmente opostos. Em tempos de polarização e debates acalorados sobre transexualidade, "Enigma" chega como um respiro, crítico, sim, mas também cheio de personalidade.

O ponto alto do filme está nas trajetórias de April Ashley e Amanda Lear (ou Peki Oslo, dependendo de quem você pergunta). April, uma britânica que enfrentou o mundo de peito aberto, tornou-se uma ativista incansável, lutando por reconhecimento legal como mulher, uma batalha que, ironicamente, viu retrocessos recentes na Suprema Corte inglesa. Amanda, por outro lado, escolheu o caminho do enigma, negando até hoje qualquer passado trans e vivendo como a diva misteriosa que flertou com David Bowie e Salvador Dalí. Drucker não força conclusões, mas deixa essas histórias falarem por si, mostrando que não há um único jeito "certo" de ser trans, e isso é o que torna o filme tão humano.


A direção de Drucker é um malabarismo esperto entre o leve e o pesado. O filme abre com as luzes e o glamour de Le Carroussel, onde drag queens brilhavam e celebridades como Elvis Presley apareciam na plateia. Há uma nostalgia gostosa aí, mas ela logo dá lugar às realidades duras: os choques da terapia forçada que Ashley enfrentou, ou a cirurgia arriscada em Casablanca que ambas buscaram. Ainda assim, o humor está lá, como quando as entrevistadas riem de terem ido ao mesmo cirurgião, "todos parecendo clones!".


A montagem alterna entre arquivos antigos, recortes de jornais, imagens de shows, e entrevistas atuais, criando um carrossel (com o perdão do trocadilho) de memórias e reflexões. A trilha sonora, discreta mas emotiva, com uma pegada disco, reforça o tom bittersweet da narrativa. Não é um documentário revolucionário em estilo, mas a escolha de deixar as protagonistas brilharem, sem recursos desnecessários, confere ao filme uma naturalidade que ecoa. Você sente que está ouvindo amigas contando suas vidas, não assistindo a uma obra didática.


No fim, "Enigma" é sobre escolhas, ser transparente como Ashley ou enigmática como Lear, e sobre como ambas podem ser formas válidas de sobreviver num mundo que nem sempre acolhe. A sensação que fica é um gosto de quero mais de Le Carrousel, acho que merecia um documentário próprio,  e a curiosidade, junto com Drucker, de perguntar: 'Quem é Amanda, afinal? É crítico, é amoroso, é um enigma, e isso é mais que suficiente.

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