"Asog", de Sean Devlin, é uma obra singular que combina realismo mágico, comédia irreverente e uma profunda reflexão sobre traumas coletivos e individuais nas Filipinas pós-Super Tufão Yolanda (Haiyan). Ambientado em um cenário de devastação climática e social, o filme acompanha Jaya, uma apresentadora de TV trans que, após perder o emprego, retorna ao papel de Sr. Andrade, um professor não-binário. A escolha de escalar sobreviventes reais do tufão confere uma verdade visceral, sem nunca parecer exploratória, tornando a dor e a esperança palpáveis.
A trama segue Jaya em uma jornada rumo ao concurso Ms. Gay Sicogon, uma espécie de road movie que troca carros por pedicabs e balsas, refletindo as limitações financeiras dos personagens. Ao longo do caminho, Jaya encontra comunidades devastadas pelo Yolanda, revelando não apenas a destruição física, mas também a corrupção e o oportunismo que seguiram. No entanto, o filme equilibra essa gravidade com momentos de leveza, como perucas cômicas, stand-up e uma perseguição de pedicab hilariamente lenta. Essa dualidade entre tragédia e humor é o cerne da narrativa, capturando a essência da vida em meio à adversidade.
A estética de "Asog" é um dos seus pontos altos, com uma narrativa visual que mescla fantasias, animações e flashbacks, criando uma saturação de cores que contrasta com a melancolia da história. A fotografia de Anna MacDonald é exuberante, com exteriores vibrantes que ecoam o luto e a beleza das Filipinas. O título "Asog", que remete às figuras não-binárias pré-coloniais das Filipinas, conecta Jaya a uma linhagem de curandeiros espirituais, simbolizando sua transição de tentar curar traumas individuais em sala de aula para enfrentar os desafios sistêmicos de uma geração marcada pela perda.
A narrativa entrelaça a jornada de Jaya com a de Arnel, um jovem órfão lidando com o luto pela mãe. A relação entre eles é a essência do filme, especialmente em momentos como a aula de história improvisada de Jaya ou a lição de drag que arranca um raro sorriso de Arnel. A personalidade de Jaya brilha, seja na intimidade com seu parceiro Cyrus, seja em sua luta por respeito na escola.
O filme não deixa de abordar questões estruturais como o colonialismo e as mudanças climáticas, mas evita ser didático ao centrar a história na humanidade de seus personagens. A trilha sonora vibrante e o conto de fadas narrado por Arnel, envolvendo mosquitos, sapos e um Rei Caranguejo, tecem realismo fantástico à narrativa.
"Asog" triunfa por sua originalidade e por sua recusa em se encaixar em moldes previsíveis. É uma celebração da resistência e da dignidade, mostrando como Jaya e Arnel, ao lado de uma comunidade acolhedora, encontram formas de seguir em frente. O filme é uma joia filipina que transcende estereótipos de gênero e narrativas convencionais sobre desastres, oferecendo uma visão única de um paraíso perdido e recuperado, onde a cura começa com a coragem de ser quem se é.
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