quinta-feira, 23 de outubro de 2025

O Riso e a Faca (França/Portugal/Brasil/Romênia, 2025)

Por Bruno Weber

 "Quero ser o riso e o dente

Quero ser o dente e a faca

Quero ser a faca e o corte

Em um só beijo vermelho


Fiz meu berço na viração

Eu só descanso na tempestade

Só adormeço no furacão"


Os versos da música de Tom Zé que dão o título do filme "O Riso e A Faca" surgem quando o filme está se aproximando de seu ato final. Os personagens a escutam e cantam junto com o rádio do carro durante uma viagem à praia, num momento que deveria ser feliz, mas que é marcado por uma certa melancolia. Isso porque, aos olhos do protagonista Sérgio, sua longa estadia em Guiné-Bissau se revelou um exercício em frustração e fracasso. Ele inicia o filme atravessando a fronteira do país em seu carro, para atender a uma oportunidade de trabalho única em sua carreira de engenheiro: realizar uma pesquisa que poderá ou não dar início a construção de uma grande estrada que ligará o deserto à floresta. Mas como um homem português, branco e privilegiado, ciente da herança colonialista que seu país deixou para aquela região, ele busca algo mais. Talvez redenção. Ou pertencimento.


De certa forma, é isso que buscam também alguns dos amigos que ele conheceu no país. Como Guilherme, um brasileiro homossexual que deseja se aprofundar em suas raízes africanas e na cena LGBT da grande metrópole de Bissau. Da mesma forma, sua melhor amiga Diára, natural do país, é retrato da juventude consciente daquela sociedade. Uma mulher forte, cheia de energia e desenvoltura, totalmente em controle de si mesma e da própria sexualidade, ela representa uma mistura de tudo que marcou aquela região da África, e navega por todos os cenários com naturalidade - é interessante notar como ela fala com um sotaque português mais forte quando conversa com Sérgio, mas tem um sotaque mais abrasileirado quando está com Guilherme. Tanto Guilherme quanto Diára servem de contraponto à figura de Sérgio, e respondem à sua presença com um misto de atração e precaução. Ele é uma novidade, e é bonito e simpático, e retribui aos avanços dos dois com um fervor que vai além de sua bissexualidade. Ele sente desejo por tudo e todos naquele país, ao mesmo tempo que se sente responsável por "consertá-lo". É aí que surge o ressentimento entre os três personagens. Guilherme e Diára percebem em Sérgio a velha história do branco europeu cosmopolita, cheio de culpa e boas intenções, uma outra face do neo-colonialismo. 


O diretor Pedro Pinho utiliza sua experiência com documentários para trazer à vida essa obra cheia de significados reais. Por um lado, dá aos personagens os nomes dos atores que os interpretam: Sérgio Coragem, Cleo Diára e Jonathan Guilherme. Por outro, embaralha o filme com longas conversas que parecem não ter sido ensaiadas, protagonizadas por pessoas reais de cantos diferentes de Guiné-Bissau, criando um retrato fiel daquele povo. É um compromisso que possibilita tanto as virtudes quanto as fraquezas do filme, que em suas três horas é meia consegue nos conectar com tudo aquilo que mostra, mesmo que em vários momentos pareça um pouco sem rumo. 


Talvez o longo tempo do filme apenas sirva para acentuar o sentimento de frustração de Sérgio. No final ele não conseguiu realizar nada a que se propôs, e foi confrontado com verdades sobre si mesmo que preferia ignorar. Tal qual a canção de Tom Zé, ele queria ser o riso e a faca, queria conter todas as contradições de estar naquele país sem sacrificar nada. Na última cena do filme, derrotado, ele parece finalmente entender que não consegue. 


Nenhum comentário:

Postar um comentário