quinta-feira, 25 de dezembro de 2025

Pluribus (EUA, 2025)

“Pluribus”, criada por Vince Gilligan para a Apple TV+, é uma ficção científica pós-apocalíptica, mas opera, sobretudo, como um estudo ácido sobre autonomia, trauma e a violência embutida em discursos de felicidade compulsória. Ambientada em um mundo devastado por um vírus alienígena que transforma a humanidade em uma mente colmeia pacífica chamada Others, a narrativa segue Carol Sturka (Rhea Seehorn), uma das poucas imunes ao processo de assimilação conhecido como Joining. Desde o início, fica evidente que o conflito central não reside na ameaça externa em si, mas na imposição de um consenso emocional e moral que elimina a discórdia.

Carol é construída como uma protagonista deliberadamente antipática, sarcástica, isolada e emocionalmente endurecida, uma escolha que distancia “Pluribus” de heroísmos confortáveis. Autora de romances de fantasia, ela carrega uma relação tensa com o mundo, marcada por perdas. Essa caracterização é potencializada pela performance de Rhea Seehorn, que imprime à personagem uma fisicalidade defensiva e um humor corrosivo, transformando cada interação em uma granada explosiva de ironias e resistência.

A representatividade queer da série se destaca justamente por sua recusa aos estereótipos. Carol é explicitamente lésbica, com um relacionamento afetivo significativo com Helen L. Umstead (Miriam Shor), explorado em flashbacks. A morte de Helen, ocorrida no caos inicial da epidemia, não funciona como um gatilho descartável de sofrimento, mas como uma ausência persistente que molda as decisões, os medos e as contradições da protagonista. Ao evitar o tropo do “Bury Your Gays”, “Pluribus” preserva a densidade emocional da relação e mantém a identidade queer de Carol como eixo ativo do enredo.

Esse eixo se complexifica ainda mais na relação ambígua com Zosia (Karolina Wydra), uma integrante dos Others designada como acompanhante de Carol. A atração latente entre as duas tensiona a lógica binária entre resistência e assimilação. O fato de Zosia ser moldada a partir das memórias de Helen adiciona uma camada inquietante à dinâmica, transformando o desejo em terreno ético instável, onde afeto e violação simbólica se confundem.

O episódio “Please, Carol” marca um ponto de mudança ao explicitar o trauma queer da protagonista. Em uma conversa sob efeito de soro da verdade, Carol revela ter sido enviada pela mãe, ainda adolescente, a um acampamento de terapia de conversão no Tennessee. A série estabelece um paralelo direto entre os conselheiros sorridentes que prometiam “cura” e os Others, cuja felicidade permanente funciona como instrumento de apagamento identitário. Ao fazer essa conexão, “Pluribus” articula uma crítica contundente às práticas forçadas, expondo a violência psicológica disfarçada de cuidado.

Ao longo da temporada, “Pluribus” se mostra menos interessada em resolver seus mistérios de ficção científica do que em explorar as fissuras morais de um mundo sem conflito aparente. A origem do vírus, sua possível reversão e o futuro da humanidade permanecem em suspensão, deslocando o foco para a pergunta mais incômoda da série: o que se perde quando a diferença é tratada como erro a ser corrigido. Nesse sentido, o final aberto não funciona como gancho protocolar, mas como extensão coerente de uma narrativa que desconfia de soluções fáceis. A série encontra sua força justamente na recusa ao conforto, apostando em uma protagonista falha, em uma sexualidade atravessada por trauma e em uma crítica social que prefere o incômodo ao didatismo.

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