quarta-feira, 22 de outubro de 2025

Enzo (França/Bélgica, 2025)


 “Enzo”, de Robin Campillo,  narra a jornada de Enzo (Eloy Pohu), um rapaz de 16 anos oriundo de uma família burguesa no sul da França, que decide abandonar os estudos prestigiados e ingressar como aprendiz de pedreiro em La Ciotat, desafiando as expectativas de seus pais (Élodie Bouchez e Pierfrancesco Favino). No canteiro encontra Vlad (Maksym Slivinskyi), colega ucraniano em condição precária, cuja presença transforma seu mundo. O filme marca a última colaboração de Laurent Cantet, concluída por Campillo, e estreou na Quinzena dos Realizadores em Cannes 2025.

A dimensão queer de “Enzo” se revela não tanto por grandes declarações, mas pela sutileza do desejo e da pertença que brota entre dois jovens marginais ao sistema hegemônico. A relação entre Enzo e Vlad não é rotulada,  ela emerge na contemplação, no silêncio, na tensão de proximidade entre corpos de classes e origens diferentes. Esse indizível modo de se conectar, de descobrir-se fora das normas impostas, é exatamente o que faz do filme uma obra queer, pois questiona masculinidades, pertencimento e visibilidade.

“Enzo” costura temas de classe, identidade, trabalho manual e desejo com uma estética que privilegia o cotidiano e o corpo em mutação e até espiritualidade, pois o arco do protagonista remete a São Francisco de Assis. A escolha de filmar La Ciotat, o canteiro de obras, o vestuário simples, o suor e as mãos calejadas ecoam a rejeição dos privilégios e o encontro com a matéria rústica. A narrativa evita os discursos fáceis: o foco está no deslocamento, no instante de fissura que permite ao protagonista vislumbrar um horizonte novo. A direção de Campillo mantém o espírito de Cantet contenção máxima e atenção ao olhar ao humano.

Eloy Pohu carrega Enzo com uma timidez nervosa, uma busca por significado que se revela tanto nos gestos bruscos quanto nos olhares longos. Slivinskyi como Vlad oferece uma carnalidade contida, quase visceral, que alerta e fascina. Juntos eles criam uma química que vai além da amizade e se aproxima da revelação de algo mais: do desejo, do corpo, do risco. Essa “explosão de gênero”  em masculinidades que se mostram frágeis, que tocam uma fisicalidade não-normativa, é uma das forças mais potentes do filme.

Se o cinema de Cantet era marcado por dramas de tensão social e amadurecimento (“Entre les Murs”, Palma de Ouro, em Cannes 2008), e o de Campillo por visões queer e corpo político (“120 Batimentos por Minuto”, Queer Palm, em Cannes 2017), “Enzo” ocupa uma zona híbrida. Talvez por isso em alguns momentos o ritmo assuma o contemplativo. Mas essa hesitação também faz parte do projeto: o filme parece recusar conclusões fáceis, valorizando a incerteza adolescente e a descoberta em andamento. Nesse sentido, “Enzo” honra o legado de Cantet ao insistir no real e não-romantizar o ator jovem, e carrega a marca de Campillo ao trazer o desejo queer como subtexto legítimo.

“Enzo” é um filme de contradições visíveis: privilégio e desprezo, academia e alvenaria, desejo e silêncio. Mas é justamente nesse limbo que enuncia sua potência queer, ao mostrar que fugir de um destino imposto pode se tornar um ato de amor próprio. Campillo conclui este projeto com reverência e coragem, entregando um retrato sensível da juventude que ousa escolher diferentes mãos para construir seu corpo e seu desejo. É um filme que celebra o atraso, a confusão, o invisível e o possível, e que lembra que ser verdadeiro talvez seja a forma mais radical de existir.

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