domingo, 31 de março de 2024

All the Colours of the World Are Between Black and White(Nigéria, 2023)

Ganhador do Teddy, em 2023, no Festival de Berlim, o filme escrito e dirigido por Babatunde Apalowo, e lindamente filmado por David Wyte, nos apresenta Bambino (Tope Tedela), que ganha a vida como um entregador que se desloca pela hostil cidade de Lagos em uma motocicleta, e também Bawa (Riyo David), dono da Click Photography, uma pequena loja no bairro que Bambino costuma visitar, já que gosta de ser capturado por sua câmera.

Bambino é um reflexo dos desejos humanos reprimidos, mas também rejeita os sentimentos que Ifeyinwa (Martha Ehinome Orhiere) tem por ele, uma personagem feminina interessante à qual ele se apega em algum momento para tentar "normalizar" a percepção do mundo exterior sobre ele. 


Ifeyinwa fornece contraste com a história, ela tem Bambino como seu mentor e quer que ele seja seu primeiro encontro sexual, ela também tem uma aspiração e deixa isso claro mais tarde em seu noivado. O filme ainda mostra sombras do passado e feridas que não cicatrizaram.

Atração e repulsa, aceitação e rejeição em nível individual, romântico e social são os polos de antítese dramatúrgica da sensível estreia de Babatunde Apalowo no cinema. Seu enredo simplesmente estruturado se desdobra em imagens estáticas visuais e dramaticamente igualmente econômicas em harmonia com o naturalismo da história, que é tirada da vida. Sua alegoria sutil se concentra inteiramente no tumulto emocional dos personagens, cujos conflitos pessoais estão diretamente ligados a problemas sociais e políticos.



A maior parte do filme se passa em ambientes íntimos, embora a atração dos personagens masculinos seja perceptível nos passeios que eles fazem pela cidade, andando na moto de Bambino enquanto Bawa desenvolve seu amor pela fotografia. Enquanto a homossexualidade é forçada a permanecer escondida do resto da sociedade, são os rostos dos coadjuvantes que estão escondidos no filme, de modo que as interações com vizinhos ou amigos sempre se mantêm fora de foco..


All The Colours of the World are Between Black & White é um belo filme sobre o amor proibido em um ambiente permanentemente hostil. O perigo de uma sociedade que julga e condena certos comportamentos fica mais evidente em uma cena dolorosa em que um dos protagonistas sofre uma traição.


A Nigéria é conhecida por sua criminalização inflexível das relações entre pessoas do mesmo sexo, que são puníveis com longas penas de prisão e até morte. Assim, a aceitação social daqueles que não se conformam com conceitos morais arcaicos tende a zero. 


O cenário de Lagos, captado ao nível dos olhos num sentido prático, está, tal como seus personagens, dividido entre o modernismo e o reacionarismo. Seu desenvolvimento fixa uma história entre um apelo à tolerância e uma parábola psicológica que supera seus meios.




quinta-feira, 28 de março de 2024

Almamula(Argentina/Itália/França, 2023)

Almamula é um conto inabalável, pessoal e fantástico sobre amadurecer. O roteirista e diretor Juan Sebastian Torales faz da história de Nino(Nicolás Diaz), um conto íntimo e assustador sobre um adolescente que descobre que, se sua religião não puder abraçar sua sexualidade, ele encontrará uma criatura mítica que o fará.

Em seu antigo bairro, em Santiago del Estero, na Argentina, o jovem Nino é regularmente vítima de atos homofóbicos, até uma surra que quase o mata. Para evitar escândalos e estar mais perto do marido, sua mãe muito religiosa leva toda a família para o campo para as férias de verão. Diz-se que a floresta perto da casa é assombrada pela Almamula, uma criatura que se levanta contra qualquer um que tenha cometido um ato sexual impuro. 


Este é o noroeste da Argentina, e em toda parte há tensão entre a civilização patriarcal, com suas restrições religiosas e impulsos urbanos e capitalistas, e a selvageria da floresta, onde a tradição é preservada por mulheres velhas, cujo espírito ameaçador assume forma feminina.

Há muitas versões da Almamula no folclore argentino. No cenário rural, a produção brinca habilmente com cenários do gênero terror. Os personagens juvenis que se tornam amigos da irmã correspondem ao grupo típico de um slasher adolescente. A floresta torna-se o local do suposto perigo, pois diz-se que uma criatura fantasmagórica reside nela. Isso, por sua vez, está associado à sexualidade "escandalosa".



Almamula vira as regras dramatúrgicas de cabeça para baixo de uma maneira fascinante: Nino tem que perceber que a verdadeira ameaça não é o "monstro" das trevas, mas sim a intolerância de pessoas que tentam justificar o medo e o ódio com sua crença em Deus. 


As exceções são os homens que trabalham entre as árvores, muitos deles no emprego do pai de Nino. São homens assim que habitam suas fantasias eróticas em cenas que podem inspirar preocupação, porque ele ainda é uma criança. É um amadurecimento solitário, difícil e que aos poucos o leva a se identificar com a alteridade da floresta, um lugar que também está sob ameaça.

Um filme semiautobiográfico com um potente sentido de pertencimento, Almamula alterna entre realismo e fantasia. O cineasta escolheu sua própria terra natal, Santiago del Estero, como cenário. Sua história oscila entre o pesadelo e a realidade não menos assustadora.


O fato de que algo monstruoso é dado à sexualidade que deve ser evitado é revelado no filme de forma original como uma estratégia cínica. Como uma figura queer que é estigmatizada pelas pessoas ao seu redor, Nino logo não percebe mais o "monstro" à espreita nas sombras como um perigo. Se as pessoas iludidas aconselham a ficar longe de um lugar, esse lugar provavelmente não é o inferno que fantasiam, mas o único espaço seguro livre de dogmas e restrições de bullying.




quarta-feira, 27 de março de 2024

Barrio Boy(EUA, 2022)

O roteirista e diretor Dennis Shinners transformou seu curta Barrio Boy, de 2014, em um longa homônimo. Ambientado em um Brooklyn em rápida mudança, o filme acompanha Quique (Dennis Garcia), um barbeiro porto-riquenho radicado em Nova York,– encontrando-se em uma jornada de autodescoberta.

Quique sente-se preso pela sua sexualidade e pela sua comunidade e isso provoca explosões de raiva nas pessoas à sua volta durante o longo verão quente na cidade. Isso inclui sua família, colegas de trabalho e homens com quem ele se relaciona.

O Brooklyn está rapidamente gentrificado, com muitos dos novos habitantes exibindo uma insensibilidade cultural para os moradores há muito estabelecidos no icônico bairro de NY. Essas pessoas também irritam Quique, que está lutando para encontrar seu povo e seu pertencimento.


Quique tem um encontro casual, numa quadra de basquete, com um atraente irlandês, Kevin (James Physick), e não demora muito para que eles se envolvam emocional e sexualmente.



Mas o bairro é uma comunidade unida, a macheza e a homofobia latina prevalecem, e não demora muito para que comecem a surgir suspeitas sobre a natureza da "amizade" próxima de Quique e Kevin. Sua conexão secreta é especialmente ameaçada pelo ciumento Cuz (Keet Davis), amigo de infância de Quique, que se tornou o machão do bairro.

Para o orçamento o filme, é lindamente filmado e igualmente traz uma mensagem sobre como as comunidades próximas podem ser sufocantes, assim como sobre como a gentrificação urbana pode causar transtornos para as populações existentes.

Garcia, também conhecido por seu trabalho em Chicado P.D.,  dá uma performance realista como o assombrado Quique, cujo tormento sexual interior escorre de todos os poros de sua pele.

Mesmo em 2024, ainda é bastante raro que a representação latina queer seja apresentada em projetos mainstream. Filmes indie, como Barrio Boy, estão felizmente ultrapassando esses limites e incentivando os estúdios a se arriscarem em projetos atraentes como esse.


terça-feira, 26 de março de 2024

T-Blockers(Australia, 2023)

O filme acompanha uma jovem cineasta trans, Sophie(Lauren Last), quando ela descobre que os moradores de sua cidade estão sendo infectados por parasitas misteriosos, e ela é a única que pode farejá-los. A jovem cineasta Alice Maio Mackay pegou essa premissa familiar e deu um toque distintamente queer e trans, como anunciado nos créditos iniciais.

T-Blockers, que faz alusão aos bloqueadores de testosterona, abre com um monólogo envolto em névoa de Cryptessa, uma apresentadora de terror interpretada por artista drag não-binária de RuPaul's Drag Race Down Under, Etcetera Etcetera. Além de dar o tom  satírico, as aparições de Cyptessa criam uma ligação com o passado, ajudando os personagens a aprender com aqueles que os antecederam.

Isso é importante em um filme focado em uma nova onda de intolerância. O roteiro de Mackay e de Ben Pahl Robinson aborda ataques contemporâneos contra pessoas trans, de projetos de lei antitransgênero a J. K. Rowling. Mas, como vemos durante um filme-dentro-do-filme, o "Terror de Baixo", apresentado por Cryptessa , esse parasita em particular já fez estragos avassaladores antes.

T-Blockers usa os códigos dos filme B para lidar com as realidades dramáticas de um grupo de pessoas queer, em particular a de Sophie. O tom é dado com um parasita que gera uma horda de caçadores sanguinários, pessoas que fetichizam e objetificam os corpos de pessoas trans, mas o fato é que os temas discutidos, como transfobia ou disforia, são profundos e sensíveis.

O gore e os efeitos práticos são incríveis, com gosmas verdes brilhantes, tripas, sangue viçoso, canibalismo e tudo banhado numa luz neon. Também é usado o PB nos monólogos de Cryptessa e um filtro de VHS, no filme-dentro-filme.

Quando você tem apenas 17 anos e está entregando um longa-metragem  do calibre de T-Blockers por apenas seis mil dólares, você certamente terá um futuro brilhante. Como se não bastasse, este é um terceiro longa-metragem da cineasta trans australiana Alice Maio Mackay, com um quarto a caminho.




domingo, 24 de março de 2024

Captain Faggotron Saves the Universe(Alemanha, 2023)

 

Captain Faggotron Saves The Universe é um filme satírico onde indícios de blasfêmia são bastante intencionais. Com elementos kink, de HQ e transformismo, no filme de baixo orçamento, de Harvey Rabbit, o personagem título, vivido pelo artista multifacetado Tchivett, é contratado pelo padre Andy Gaylord(Rodrigo Garcia Alves), para salvar o mundo de forças ocultas(ou nem tanto).


Usando maquiagem, bigode, longos cabelos, boné de capitão com o triângulo rosa, brincos gigantes, uma capa amarela brilhante, um crop top rosa, leggings coloridas e botas pretas ele aparece. A situação é grave, de acordo com Gaylord: Queen Bitch (Bishop Black), seu ex-amante (secreto e alien) tem planos malignos.


O padre padece de um grande remorso e se vê na "encruzilhada entre o desejo e a vergonha". Especialmente porque ele descobre que com Queen Bitch e The Dick Reader(Pina Brutal), dois "queers do espaço sideral", ou mais precisamente: o planeta Oberon, querem abrir o "ânus do inferno" e inundar o mundo com demônios que supostamente desequilibram os fundamentos da Igreja Católica Romana e transformarem todos os humanos em pessoas LGBTQIA+.


O figurino, a cenografia, as piadas toscas e a atuação deliberadamente exagerada lembram o cinema da meia-noite nos anos 1970. O filme é enormemente ridículo;  a sombra de John Waters paira sobre tudo. Queen Bitch uma vilã negra remete ao deslumbramento diabólico de Milton Gonçalves, no clássico A Rainha Diaba (1974), de Antônio Carlos da Fontoura. 


O artista trans Harvey Rabbit, que escreveu e dirigiu o filme, entrega uma carta de amor audiovisual à estética trash e à subversão de seus ídolos,  com figurinos maravilhosos e uma grande propensão para o grotesco e o absurdo.


Rodado em Berlim, como vários de Bruce LaBruce, o filme é muito divertido, mas em sua essência também fala de violência , homofobia e falta de aceitação, portanto, deixa claro que o mundo realmente precisa ser salvo. Com muita sagacidade, Captain Faggotron  transmite uma mensagem empoderadora e subverte os conhecidos clichês de narrativas de super-herói ao longo do caminho.



sábado, 23 de março de 2024

Slay(EUA, 2024)

Elas já tiveram que dublar por suas vidas e agora precisam lutar para sobreviver. As RuGirls, Trinity The Tuck, Crystal Methyd, Heid N Closet e Cara Melle(da edição britânica), estrelam Slay, comédia de terror, original Tubi, onde por 'engano', vão parar num remoto bar de motoqueiros, para se apresentar.

Escrito e dirigido por Jem Garrard, que vem do universo das séries, o longa é surpreendentemente bem filmado e divertido. Em uma mistura de Drag Race com Walking Dead, acompanhamos essas queens, chefiadas por Mama(Trinity), que acabam em um bar de machões e precisarão lutar contra vampiros.


O que começa como uma aventura a la Priscilla a Rainha do Deserto, logo servirá referências à Buffy e Crepúsculo, quando essas rainhas da peruca, estarão cravando saltos brilhosos, ao invés de estacas, ao som de Doja Cat, em criaturas sanguinolentas.


Está certo que o visual dos vampiros deixa a desejar, mas faz parte da essência trash do filme. O que vemos aqui é um conto de aceitação, quando pessoas queer precisam se unir a motoqueiros para combater monstros. que não se sabe muito bem de onde saíram. E o filme é realmente engraçado, com trocadilhos para todos os lados.


Trinity the Tuck tem o maior destaque como Mama, assim como Cara Melle, como Olive Wood, que tem realmente muita presença, no entanto todas têm seu momento de brilhar, assim como os dois jovens queers que aparecem na boate e garantem sua permanência, e até um pouco de romance.


Tudo é muito kitsch e muito camp, a montação das drags está sempre impecável e há troca de looks, mas o que realmente importa aqui, é a alegoria dos dentes afiados. Na constante perseguição às pessoas queer, Slay coloca Drag Queens, um verdadeiro símbolo de resistência, como heroínas.


quarta-feira, 20 de março de 2024

Três Tigres Tristes(Brasil, 2022)

Ganhador do Teddy, prêmio máximo do Cinema LGBTQIA+ , no Festival de Berlim, Três Tigres Tristes, de Gustavo Vinagre, caminha entre drama, comédia e musical usando a pandemia causada pela Covid-19 para criar um mundo distópico onde um vírus que produz amnésia invade a população.

Vinagre e a roteirista Tainá Muhringer criam um divertido estudo sobre memória, lembrança e o coletivo a partir das experiências dos três personagens principais e seus encontros com coadjuvantes, onde juventude e maturidade se reúnem para falar sobre HIV/AIDS, prostituição, maquiagem, morte e tudo mais.


No centro do filme estão Isabella (Isabella Pereira), uma garota trans, e Pedro (Pedro Ribeiro) . Ele é um camboy que está de luto pela perda de seu amado que se suicidou por causa da pandemia. Pedro, também conhecido como BabyFace geme para seus clientes usando uma jockstrap.


Em questão de horas, Jonata (Jonata Vieira), sobrinho, com HIV, de Pedro, vai passar a noite no minúsculo apartamento, para uma consulta médica no dia seguinte. São três personagens principais queer jovens falando de suas experiências de marginalidade a deriva na metrópole.


Há muito cuidado no filme, seja na fotografia de Cris Lyra, ou nos fabulosos números musicais. É a obra mais bem trabalhada de Vinagre, que traz situações surpreendentes vindas de um contexto político repressor, enquanto faz um cinema queer radical, que tem muito o que dizer.


Através das conversas, ouvimos falar sobre a Mãe Natureza e salvar o planeta, e a onça-pintada, um animal ameaçado de extinção, que surrealmente reencarna em uma mulher-pantera, interpretada por nada menos que Inês Brasil.

Pedro, Isabella e Jonata, três tigres tristes, além do trava-língua, sabem viver na adversidade... mas, além disso, conhecem o amor, a solidão e a amizade; especialmente num regime que teve como alvo minorias. Porque apesar de toda a abstração, Três Tigres Tristes é um filme profundamente político. Mais de uma vez se fala em ‘capetalismo’. Os protagonistas não são politicamente ativos, mas a crítica social, é!


O filme rejeita uma estrutura narrativa convencional, preferindo adotar uma abordagem muito mais experimental, mas evitando cuidadosamente tornar-se alienante. É um manifesto cativante sobre a natureza da juventude, filtrado pela perspectiva de um diretor promissor com muito a oferecer.

terça-feira, 19 de março de 2024

Sweet Sue(Reino Unido, 2023)

Leo Leigh é filho do cineasta Mike Leigh, de Segredos e Mentiras(1996). Seu pai é grande quando se trata da criação de cinema dramático e observacional. É provável que Leo siga seus passos. Há definitivamente semelhanças, mais na forma do que no conteúdo, em Sweet Sue.

Sue (Maggie O'Neill) vive mais uma decepção romântica e se prepara para voltar ao circuito de namoro, com uma grande taça de vinho tinto na mão. No cenário improvável do funeral de seu irmão, ela conhece um motoqueiro melancólico e vestido de couro chamado Ron (Tony Pitts).

Uma conexão entre eles parece preencher o vácuo da solidão. Mas então Sue conhece o filho de Ron, Anthony (Harry Trevaldwyn), um gay pintoso, aspirante a dançarino e influencer digital. Depois de um início promissor, em que Sue e Anthony se unem sobre comida tailandesa e astrologia, o jovem decide que a odeia.


O tecido narrativo se atrapalha quando Sue encontra Anthony, que transmite aos seus seguidores o quão literalmente ohmygod se sente ao conhecê-la, antes que as coisas se tornem definitivamente ácidas.




Sweet Sue funciona melhor como um retrato de uma mulher complexa, não totalmente simpática. Onde vacila é na relação entre Sue e Ron, cada vez mais retraído, que recua como personagem enquanto Sue e Anthony cospem insultos e brilho um no outro.


Muito do desenvolvimento e motivação dos personagens foi trabalhado durante os ensaios e diálogos improvisados. Então esse é o tom. Há um absurdo sombrio que atravessa o coração de Sweet Sue que é encontrado em tudo, desde sua estranha trilha sonora até a necessidade dos personagens de zombarem frequentemente da desgraça um do outro. Cada personagem é uma caricatura de seus piores traços.


Abaixo do surrealismo de tudo isso, há uma interessante representação da masculinidade. Rony, embora nunca demonstre, está desconfortável com a sexualidade de Anthony. Ele raramente fala uma palavra para ele a não ser quando ele está expressando seu descontentamento por ser provocado por ele em público, e ele usa seu capacete de motocicleta como um cobertor de conforto para sua própria masculinidade, recuando para ele quando as coisas ficam demais.


Assim como Sue, Ron e Anthony podem estar prestes a formar uma família viável e disfuncional, mas o amor de Sue pelo ridículo ameaça derrubá-los enquanto Anthony se prepara para uma de suas noites de dança kitsch. Para ela, toda a ideia de ordem doméstica estabelecida parece mais uma armadilha, e escapar de uma mentalidade adolescente acaba sendo o desafio para os personagens.



Bergamota(Brasil, 2023)

Acumulando prêmios está o curta Bergamota, de Hsu Chien, diretor de Quem Vai Ficar com Mário?(2021). Estrelado por Márcio Rosário, que também assina a produção, e esteve em obras como Além da Linha Vermelha(1998), de Terrence Malick, o filme é um alerta sobre os perigos comuns na comunidade LGBTQIA+.

Rodada em preto e branco, a obra começa pulsando de tesão, para logo ganhar tintes de thriller e neo-noir. A história inicia com um gay sigiloso e enrustido, Léo (Gabriel Canella), rumo a um encontro às escuras com Jorge(Rosado).

Mas a trama guarda uma reviravolta, e em seguida guarda outra mais e a premiada fotografia, de Silvia Gangemi, fornece a tensão adequada para cada um desses momentos, quase como um personagem. De belas cenas de intimidade à uma violência abrupta, tudo é conduzido com maestria pelo experiente diretor e seu time de atores.


Bergamota, também traz o terror queer, ainda tão pouco explorado, no cenário nacional. Há claras referências a Alfred Hitchcock(como o sangue de chocolate, de Psicose(1960)) , ao mítico giallo italiano e ainda, aos clássicos filmes da icônica produtora Hammer. A trilha sonora também inclui representatividade, com a presença de vozes trans, Rafaella Villella e Camila Guiaz.


Outro ponto é a faixa etária de Jorge, um homem por volta de seus 50 anos, que em tempos de etarismo em aplicativos e redes sociais é extremamente desejável e bem representado. Rosário já trabalhou em Mercenários(2010), estrelado e dirigido por Sylvester Stallone, e esteve em Deserto(2016), de Guilherme Weber.


Intenso e cativante, esse curta-metragem, que já rodou mais de 60 festivais e ganhou mais de 30 prêmios, vai te prender em uma teia de erotismo, perigo, fetiche, desejo e loucura e, acima de tudo, propor uma reflexão para quem você está abrindo sua porta.


Com produção da Três Tons Visuais, Bergamota, que faz alusão à como tangerina é tratada no sul do país, enquanto tece sua crítica social, ganhará uma versão em longa-metragem no próximo ano. Inspirado em fatos reais, o roteiro de Hsu Chien, promete ainda mais reviravoltas em sua forma estendida.



domingo, 17 de março de 2024

Brutal Heat(Brutální vedro, República Tcheca/Eslováquia, 2023)

Em um futuro próximo, o mundo inteiro será tomado por uma onda de calor, que levará a uma série de tumultos. A razão para isso é um fragmento do Sol que está se dirigindo para a Terra e chegará a ela em cerca de 30 anos.

No entanto, Vincek (Vincent Hospodářský), de 18 anos, está apenas marginalmente ciente da agitação no mundo. Em casa, ele sempre entra em conflito com o pai, quando não está entediado vendo a agitação na rua em frente ao seu apartamento. Uma ligação de um amigo chega na hora certa, porque ele convida Vincek para passar um fim de semana em sua cabana no campo. No caminho, ele conhece principalmente pessoas estranhas, que são caracterizadas por um impulso sexual intensificado e aumento da agressividade.


O motivo da viagem está no centro da obra do diretor Albert Hospodářský, embora seja descrito como um filme apocalíptico, o diretor insiste que Brutal Heat é, antes de tudo, um road movie. O  que de alguma forma é o condutor narrativo de muitos filmes catástrofe.


A perspectiva de uma sociedade em desintegração permite ao diretor e roteirista muita liberdade. Vemos a atração dos dois homens um pelo outro, ao qual eles não conseguem mais resistir. Nesses momentos, o filme mostra que o apocalipse que se aproxima não traz apenas as imagens usuais e carregadas de clichês de destruição e violência, mas também da despedida de outros medos e preconceitos, que, curiosamente, ainda se aplicam em certos contextos. 


Não é por acaso que tantas pessoas em Brutal Heat estão com tesão, raiva ou uma mistura de ambos. Com suas sequências de cenas surreais, ele está tentando fazer uma declaração sobre como as pessoas se divertem quando confrontadas com o fim do mundo. É quase como se o fragmento do Sol queimasse todas as nuances humanas possíveis e deixasse para trás apenas a parte mais instintiva.

O longa apresenta uma história de amadurecimento centrada na Geração Z que se concentra menos nas provações dos jovens e mais em capturar a mentalidade e o ambiente sociopolítico com o qual eles estão lidando. O filme entrega uma declaração geracional repleta de tons cínicos, desencadeada pela primeira interação de Vincek com pessoas mais velhas em um passeio de trem que rapidamente se transforma de conversas casuais em conflitos intergeracionais.


O evento astronômico serve como uma metáfora para as mudanças climáticas, usada para enfatizar restrições morais e psicológicas. Brutal Heat compartilha características com a sátira, no entanto, Hospodářský minimiza o elemento caricato para destacar o contexto global que molda a geração jovem. 


Ao lado da trama muito atual e curiosamente concebida , o filme não perde sua novidade em termos de forma. Algumas cenas, sublinhadas tanto pelas composições executadas pelo próprio Albert Hospodářské quanto pelos solos de guitarra, de Jan Tomáš ,do duo musical Tomáš Palucha, conseguem construir uma sensação de tensão surreal que pode ou não escalar para um desastre irreversível a qualquer momento.



sexta-feira, 15 de março de 2024

Frida(EUA, 2024)


Este não é o primeiro filme sobre a pintora mexicana Frida Kahlo, que viveu de 1907 a 1954. Mas o documentário de Carla Gutiérrez, narra a vida da artista através de um diário animado, usado como fio condutor, e sem depoimentos. Fernanda Echevarria del Rivero dá voz à Frida e faz isso de forma muito eficaz.


As palavras de Frida podem dominar aqui, mas também há citações expressas de muitos outros que desempenharam um papel em sua vida, incluindo o artista Diego Rivera, com quem se casou duas vezes, sua amiga Lucile Blanch e o escritor André Breton, que a incentivou a ir à Paris após uma exposição individual em Nova York, em 1938.

A vida de Frida é apresentada basicamente em ordem cronológica. Mesmo em seus tempos de escola, Frida já era uma rebelde que se destacava contra sua mãe religiosa e, quando jovem, estava pronta para abraçar o comunismo, no qual via o espírito da revolução mexicana de Emiliano Zapata.

Descarada no uso de uma linguagem forte e com um potente desejo sexual, ela nunca foi de se conter. Ela trouxe suas pinturas para Diego Rivera, casou-se com ele apesar de chamá-lo de "cara de sapo" e viajou com ele para Nova York. Lá, ela era altamente crítica do que via dos ricos, assim como no final da década ela desrespeitaria muitos intelectuais franceses, incluindo até então Breton, que procurou categorizar sua pintura como surrealista (ela não concordava e dizia isso).



Ouvir os comentários de Frida feitos sem reticências fornece uma visão eficaz de todos os aspectos de sua vida, incluindo a dor ao longo da causada por seu envolvimento em um acidente de ônibus aos dezoito anos, seu aborto espontâneo durante seu primeiro casamento com Rivera e seu reconhecimento franco de seus muitos casos com homens e mulheres. 

Ao mostrar suas obras de arte – muitas delas autorretratos – Gutiérrez optou por usar recriações digitais e depois elaborá-las com toques de animação. O resultado é certamente colorido, mas brincar com a arte deixada por Frida Kahlo, é no mínimo arriscado.


Mas o que o filme faz de melhor  é pintar um quadro de Frida para o público. O uso das próprias palavras de Kahlo diferencia este documentário, dando-lhe uma vivacidade ao mostrar o estilo, a criatividade e a personalidade da artista. 


O documentário, com muito material de arquivo e fontes (coleções particulares de arte incluídas), mostra respeito por diferentes aspectos de sua vida, a narrativa é baseada em fatos e enfatiza seus sentimentos, emoções e reações ao que viveu e viu, escrito no contexto íntimo de seu diário.



terça-feira, 12 de março de 2024

Garotas em Fuga(Drive-Away Dolls, EUA/Reino Unido, 2024)

Garotas em Fuga, é o filme de estreia individual de Ethan Coen, embora carregue muitos elementos dos longas realizados com seu irmão Joel, especialmente ‘Fargo(1996)’. Ethan segue com um solo cinematográfico na forma de uma trilogia sáfica.

A louca por sexo Jamie (Margarteth Qualley) é repetidamente pega traindo. Seu relacionamento com Sukie(Beanie Feldstein, de Ladybird(2017) e Booksmart(2019), uma policial histérica, com problemas de agressão, finalmente chega ao fim, para dar espaço ao uma aventura psicodélica na estrada.


A melhor amiga sexualmente contida de Jamie, Marian (Geraldine Viswanathan), na verdade queria visitar sua tia em Tallahessee sozinha. Mas Jamie se junta à jornada. De uma empresa duvidosa elas pegam o chamado drive-away, um carro que vai ser transferido. E como era de se esperar, as duas se confundem, pegam o carro errado com carga roubada, são perseguidas por gângsteres bizarros e quase não percebem nada sobre isso. 


Ethan surpreende com algumas cenas curiosas. As aventuras sexuais distraem repetidamente da caça à infame mala. Pelo meio, são inseridas repetidamente sequências psicodélicas, que se destinam a separar ou ligar cenas individuais. Seu significado não é muito claro, e inclui a participação especial de Miley Cyrus como uma artista icônica ao longo do caminho.


O que levanta questões são as referências históricas. Ambientado em 1999, o filme aborda o pânico da chegada dos anos 2000, a era Clinton minguante, ou Massachusetts como o primeiro estado a permitir o casamento entre pessoas do mesmo sexo. 



Vale destacar o trabalho especialmente de Margaret Qualley, uma atriz com muita energia e muito a oferecer, que abraça sua personagem sem medo. Ao lado dela estão nomes como Colman Domingo, Joey Slotnick e C.J. Wilson e a presença de Pedro Pascal, Miley Cyrus e Matt Damon, em participações especiais.


No meio do caminho entre a narrativa dos anos sessenta e setenta, Ethan Coen dá um estilo muito particular ao filme, preenchendo-o com referências e espaços visuais diferentes do habitual, com muitos jogos com a câmara, com uma montagem cheia de transições muito pessoais, com aqueles sonhos cheios de cor e luzes.


Garotas em Fuga não é o mesmo que um filme dos irmãos Coen. É claramente algo diferente. No entanto, Ethan se dá ao luxo de colocar sua marca em um filme bandido que é ao mesmo tempo um road movie e uma espécie de amadurecimento sáfico.


O longa como um todo consegue fazer com que a psicodelia que envolve Garotas em Fuga funcione e se torne um elemento importante para a resolução da trama. Nesse sentido, o roteiro, de Coen e a esposa Tricia Cooke, se joga.


Os respectivos filmes de estreia dos dois irmãos dificilmente poderiam ser mais diferentes. Enquanto Joel filmou 'MacBeth(2021)', um drama em preto e branco artisticamente ambicioso, Ethan prefere que seja mais colorido e bem-humorado. Desde o início, ele atinge tons bastante estridentes, misturando gêneros, com uma propensão para a grosseria a la John Waters, quando observamos Jamie despreocupadamente por aí.






quarta-feira, 6 de março de 2024

Mary & George(Reino Unido, 2024)

Encabeçado por Julianne Moore, além de Nicholas Galitzine, Mary & George, série em 7 episódios da STARZ, acompanha uma mãe e um filho que não medem consequências para se tornar uma das famílias mais poderosas da Inglaterra, do século 17.

Inspirado na história real e no livro de não-ficção, de Benjamin Woolley, The King's Assassin, a série foi escrita por DC Moore (Killing Eve) com licença poética, dando uma ideia da época, pintando cenas como obras renascentistas, e sugerindo o que poderia ter acontecido por trás das paredes de um palácio.


Após a morte de seu pai (Simon Russell Beale), a família Villiers se vê em um estado de insegurança financeira. A engenhosa matriarca Mary (Moore), decide resolver as coisas com as próprias mãos. Ela envia seu filho George para a França, onde recebe um curso intensivo de participação em orgias.

Enquanto isso, ela tenta se agarrar à segurança financeira ao se casar com Sir Thomas Compton (Sean Gilder). Enquanto seu filho ganha confiança para seduzir e conquistar o rei Jaime I (Tony Curran), e para elevar a família na realeza.


E não são apenas os homens que se relacionam uns com os outros. Mary também é parte de um romance queer com Sandie (Niamh Algar), a dona do bordel, que virou sua amante. Suas lutas de poder são particularmente interessantes, pois revelam um lado mais suave da personagem.

Uma das coisas gloriosas sobre a atração e é que ela não apenas joga luz sobre um capítulo menos conhecido da história LGBTQ+ e real britânica, mas certamente elimina o trauma que muitas vezes pode vir de histórias marginalizadas. Aqui, qualquer experiência sexual é simplesmente a norma e, em vez de lidar com homofobia ou preconceito, a série está mais preocupada com liberdade e ideias anacrônicas.


Tudo isso soa como uma configuração bastante familiar, é provavelmente porque é uma dinâmica muito semelhante à retratada no vencedor do Oscar de 2019, A Favorita, de Yorgos Lanthimos.