O longa de estreia de Paul B. Preciado não é uma adaptação de Orlando, nem é a biografia de seu diretor, um homem trans. Por outro lado, toma o texto da escritora como base para explicar um pouco de sua própria vida e transformá-la, em algo, desta vez, político.
O livro é dissecado por um bisturi e ao longo do filme, o espectador ouvirá os versos da obra de Woolf na boca de muitas de pessoas trans e não-binárias que passam em frente à câmera dizendo que vão interpretar Orlando, vão até recitar partes da obra. Mas também vão contar parte de sua vida, sua transição, suas vivências trans, bem como o pensamento traçado pelo filósofo.
Em Orlando: Minha Biografia Política, aparecem as realidades de todos os seus protagonistas. De todas aquelas pessoas que, dizendo-se Orlando, contam como são suas vidas trans e não-binárias e mostram como com suas ações, com seus corpos, desafiam o estabelecido.
A influência de Jean-Luc Godard é evocada aqui e ali materializando o protesto político em uma clima de nouvelle vague. O célebre cineasta morreu durante a produção, que é mencionada por Jenny Bel'Air, uma mulher trans, hoje com 70 anos, que já foi um ícone da cultura noturna, dos anos 1980.
O pioneirismo trans com nomes como de Marsha P. Johnson e Sylvia Rivera é retratado, assim como uma incansável reivindicação pelo nome social de cada um desses Orlandos. Os fotógrafos Pierre e Gilles também aparecem com médicos de um dos Orlandos.
Como a própria identidade trans, o longa é muitas coisas ao mesmo tempo: um manifesto político, uma biografia individual e coletiva e uma releitura do romance de Virginia Woolf, que já tem quase cem anos. As fronteiras entre ficção e documentário são tão fluidas quanto as identidades; a forma é não-binária.
O que Preciado ousa fazer com esse arranjo de transferência documental é um jogo incondicionalmente político de ambiguidades de papéis e cenários, de vozes, de textos que são lidos e falados, e até cantados e dançados, em Orlando, Minha Biografia Política.
Ganhador do Teddy, no último Festival de Berlim, Orlando, minha biografia política é um filme militante. Um filme ensaístico que fala sobre o que foi alcançado, mas acima de tudo justifica o que falta alcançar, sem recorrer ao vitimismo ou ao exibicionismo, focando na dignidade das pessoas forçadas a lutar a vida toda.
Um filme cuja natureza parece derivada dos personagens das vidas que retrata: Orlando, Minha biografia política flui entre gêneros cinematográficos, entre ficção e não-ficção, tornando quase impossível uma classificação binária de gênero. É pura revolução e poesia!
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