terça-feira, 30 de abril de 2024

The Missing(Iti mapukpukaw, Filipinas/Tailândia, 2023)

Eric (Carlo Aquino) é um jovem que trabalha como animador, que tem uma característica distinta: ele não tem boca, algo que as pessoas ao seu redor simplesmente aceitam e rejeitam. Afinal, todos o veem como um solitário com habilidades sociais precárias.  As únicas conexões de Eric em seu dia-a-dia são sua mãe, Rosalinda (Dolly de Leon) e Carlo (Gio Gahol), um colega de quem gosta e que genuinamente retribui o interesse de Eric.

Um dia, Eric  encontra o tio morto há dias, e seu choque o leva novamente ao pesadelo de seus anos de infância, envolvendo um alienígena que repetidamente o abduzia, como em Mistérios da Carne, de Gregg Araki. 


Carl Joseph E. Papa consegue criar uma animação que combina técnica com intensa profundidade contextual e uma abordagem de direção que apresenta a história de maneira cativante. Particularmente os conceitos do jovem sem boca e da presença do alienígena, tanto quanto o resto dos eventos sobrenaturais que acontecem no filme, acabam se unindo da maneira mais chocante e significativa.


Em termos técnicos, a animação rotoscópio funciona excelentemente, com o movimento e as expressões dos atores originais sendo capturados da melhor maneira. Em uma jogada inteligente para que o público entenda o estado mental de Eric quando criança, sempre que o filme volta no tempo, a animação segue os traços de rabiscos infantis.

The Missing é uma jornada de descoberta em muitos aspectos, particularmente no que diz respeito à memória, identidade e amor. O alienígena de Eric envolve todos os aspectos de sua vida, deixando-o constantemente em um estado de medo. Ele pode não conseguir falar, mas o apoio emocional de Carlo e Rosalinda ajuda a guiar o protagonista ao longo dessa expedição para encontrar a voz que está desaparecido há tantos anos.


No fundo, porém, The Missing lança luz sobre os efeitos indescritíveis do trauma e do luto. Mas, mais importante, ressalta o papel vital que uma dose saudável de sistema de apoio pode desempenhar para ajudar alguém a navegar em sua jornada para derrotar seus monstros pessoais.



Bones and Names(Knochen und Namen, Alemanha, 2023)

Boris (Fabian Stumm) e Jonathan (Knut Berger), são um casal há oito anos. Há muito que eles valorizam um no outro, mas a relação deles também está começando a mostrar rachaduras. As dúvidas interpõem a naturalidade imediata de estar junto. Eles são reforçados pelas profissões criativas dos dois.

Boris é ator e assume um papel no filme da diretora de cinema Jeanne (Marie-Lou Sellem), como um homem que vive com a personagem Carla (Susie Meyer), mas a trai com um cara mais jovem, interpretado por Tim (Magnús Mariuson). E o escritor Joni está escrevendo um romance sobre morte, perda e desprendimento, temas bastante atípicos para seus trabalhos anteriores. Os desequilíbrios também estão aumentando no ambiente familiar dos dois.


A crise de relacionamento continua fervendo. Depois de uma visita ao cinema, os dois discutem sobre a atuação de Maria Schell numa cena de "A Última Ponte(1954)": sentimental ou tocante? E quando Jonathan orgulhosamente parte para uma entrevista de rádio sobre seu novo livro, Boris se recusa a acompanhá-lo.


Pelo meio, acompanhamos as brincadeiras da sobrinha de Boris, Josie, em episódios intercalados. A menina, que tem cerca de 10 anos, chama estranhos completos com nomes estranhos, rouba um xampu de uma farmácia ou finge ser adulta em um aplicativo de namoro.


O esboço de dois criativos é tão bem-sucedido, que às vezes a arte se confunde com a vida e vice-versa. Também convincente é o retrato de uma relação de longo prazo entre amor, sensibilidades, hábito e desejo nem sempre admitido por coisas novas entre dois parceiros, que Fabian Stumm e Knut Berger interpretam de forma muito envolvente.


Fabian Stumm, que escreveu o roteiro, desempenhou um papel principal e dirigiu, também foi o produtor, juntamente com Nicola Heim. Os atores e a equipe trabalharam quase de graça, porque o diretor tinha pressa de fazer o filme acontecer.  Bonito, autêntico e com ideias originais, a renúncia a qualquer financiamento garante visivelmente a liberdade criativa! 


segunda-feira, 29 de abril de 2024

Lost Country(Sérvia/França/Luxemburgo/Croácia/Catar, 2023)

A história do filme se passa durante os protestos que levaram centenas de milhares de pessoas às ruas de Belgrado, na Sérvia, em 1996, após a fraude eleitoral que manteve o presidente Slobodan Milošević no poder, e que foram constantes até 1997.

O diretor Vladimir Perišić viveu sua juventude nesses anos, mas com a tensão causada pelo fato de sua mãe ser membro do partido de Milošević. O protagonista é Stefan (Jovan Ganić), um adolescente cuja mãe Marklena (Jasna Đuričić, de Quo Vadis Aida(2020)) quase não tem tempo para ele porque trabalha como porta-voz de comunicação de Slobodan Milošević, e é responsável por organizar o processo de obstrução contra os resultados eleitorais. 


Lost Country é um retrato comovente de uma nação maltratada, através do fim da infância e das ilusões de um adolescente. Em termos mais simples é a história de um garoto sociável e sensível, um estudante do ensino médio mais jovem que, em meio aos protestos, torna-se mais consciente do papel de sua mãe na sobrevivência das autoridades contra as quais, ao que parece, quase todos os outros de seu ambiente se rebelaram. 


As aparições da mãe tornam a jornada de Stefan por sua escola mais dolorosa, onde seus colegas de classe começam a intimidá-lo. Há uma apatia no rosto do jovem ator Jovan Ganić que, no entanto, reflete adequadamente a incerteza da adolescência, mas também propõe um ponto de partida inteligente para o processo de raiva que o protagonista acaba vivenciando. 


Longe de ser apenas uma reconstituição histórica, e um coming-of-age, Lost Country deve sua riqueza ao olhar documental sobre um momento da história, a partir da jornada de seu personagem. Isso o torna atual e atemporal. 




domingo, 28 de abril de 2024

Ascenção e Queda - John Galliano(High & Low - John Galliano, Reino Unido/França/EUA, 2023)

Em 2011, o estilista John Galliano fez questão de que seu nome, vindo de uma degradação tóxica, fosse ligado a ataques antissemitas. Agora, em um retrato documental de Kevin Macdonald, um Galliano arrependido pode explicar como isso surgiu. 

Muitos que acompanharam sua carreira também têm sua opinião, incluindo financistas e apoiadores como Bernard Arnault e Anna Wintour, amigos, psicólogos, colegas, modelos como Naomi Campbell, Kate Moss e Penélope Cruz, e também um rabino e vítima do escândalo em Paris.


O longa é a história de ascensão e queda de um homem que se perdeu pelo caminho. Crescendo no sul de Londres, filho de um encanador de Gibraltar e de uma dançarina espanhola, ele buscou refúgio em um mundo paralelo imaginativo desde cedo – "fuga" no sentido de escapismo é outra palavra que aparece com frequência. Ele teve que esconder sua identidade gay de seu pai homofóbico, caso contrário teria sido ameaçado de espancamento.


O documentário abre com Galliano, hoje com 60 anos e bastante animado, sentado nos bastidores ao lado de algumas latas de lixo. As imagens originais das declarações marcam imediatamente o fato de que este filme não quer glorificar sua estrela, mas se dedicará justamente a esse episódio escandaloso.


Para contextualizar, toda a história do designer é contada, seu frescor na indústria. Galliano, como seus contemporâneos igualmente proeminentes, trouxe uma teatralidade pomposa de volta à moda, cheia de referências históricas e mitológicas. 


Seguiram posições glamourosas na Givenchy e na Dior, e durante décadas o intruso de Londres foi uma das estrelas do mundo da moda parisiense. No entanto, o sucesso foi acompanhado por um alcoolismo diabólico e vários vícios em drogas.

O filme Napoleão ,de Abel Gance (1927), que fascinou Galliano quando jovem, é inserido em Ascensão e Queda para fazer um paralelo entre a determinação e o triunfo, a humildade e a derrota do designer com o imperador francês. O entusiasmo de Galliano pela representação de Napoleão, bem como pelo estilo da França revolucionária.


Os desfiles de tirar o fôlego de Galliano têm menos a ver com moda e mais com teatro. Por trás de cada coleção há uma história em que as modelos não perseguem a passarela como bonecas de vestir, mas agem como atrizes de forma às vezes expressiva. 


Além do registro, o filme também traz valores inéditos: estamos lá ao vivo enquanto Galliano percebe pela primeira vez quantas noites seus slogans antissemitas foram realmente documentados. A câmera também acompanha a primeira visita à Dior desde 2011. As lágrimas fluem, Galliano se arrepende, dá uma visão sobre o crescimento, o complexo do pai, o estresse no trabalho e muito mais. Tudo é, um filme de redenção.


Sua carreira foi resgatada pela Maison Margiela, onde lhe foi oferecido o cargo de Diretor Criativo originalmente ocupado por Martin Margiela. Com mais um palco para mostrar todas as suas fantasias fashionistas, ele está de volta. Pelo menos criativamente. E MacDonald nos mostra um Galliano sóbrio e feliz.





quinta-feira, 25 de abril de 2024

Rivais(Challengers, EUA, 2024)

Tashi Duncan (Zendaya) é uma ex-prodígio do tênis, agora treinadora: uma força da natureza que não permite erros, dentro e fora das quadras. Assim, sua estratégia para a redenção de seu marido Art Donaldson (Mike Faist), um astro que acaba de voltar de uma série de derrotas, toma um rumo surpreendente quando este tem que enfrentar o agora arruinado Patrick (Josh O'Connor), outrora melhor amigo de Art e ex-namorado de Tashi. À medida que seu passado e presente colidem e as tensões aumentam, Tashi se verá tendo que questionar qual é o preço da vitória.

Luca Guadagnino e o roteirista Justin Kuritzkes, voltam a trabalhar juntos, desta vez em uma história de ascensão ou incursão atípica ao gênero de filmes esportivos. Embora também haja muito tênis jogado, o longa é mais sobre o amor, o sexo e as energias que eles liberam.


Rivais conta a história de um triângulo amoroso cujo campo de jogo é sempre o tênis. Como jovens de 18 anos, Art e Patrick são muito familiarizados um com o outro, mas seu amor por Tashi os torna rivais. Tashi visita os dois jovens, em seu alojamento, como eles desejavam. Ela conduz a conversa, ela finalmente sinaliza que o beijo também é permitido. 


Luca Guadagnino alterna entre eventos que aconteceram agora, há 13 anos, ou apenas duas semanas ou algumas horas atrás, e assim aborda passo a passo não apenas a dinâmica especial dos personagens entre si, mas também dos próprios indivíduos.


Com a fotografia, de Sayombhu Mukdeeprom, o diretor prova sua vontade estilística. Tudo é elegante e jovem, energeticamente pulsante e sexy. A câmera testa todas as perspectivas possíveis, até mesmo olhando para os jogadores de baixo do chão.


Zendaya, uma estrela absoluta, oferece a performance de sua carreira, finalmente saindo dos retratos adolescentes. Ela comanda cada cena em que está com confiança e intensidade ardente, contracenando com dois colegas de elenco que estão à altura da tarefa de equilibrar sua energia.


O roteirista e o diretor constroem o filme, como se fosse uma verdadeira partida de tênis. A história dos três protagonistas se desenrola ao longo de 13 anos, de 2006 a 2019, com o espectador sendo levado de um lado para o outro durante esse tempo como acompanhando uma bola.


Guadagnino encena com tanta garra e sofisticação, com tanta sensualidade e um fino senso de subtexto estrondoso, que é irresistível. E assim como ele gira e remonta a cronologia do amor, ele também quebra a sequência e impacto no tênis e a transforma em uma montanha-russa alimentada pelo ritmo da trilha sonora de Trent Reznor e Atticus Ross.




quarta-feira, 24 de abril de 2024

Love Lies Bleeding - O Amor Sangra(Love Lies Bleeding, Reino Unido/ EUA, 2024)

1989. Lou (Kristen Stewart) vive em uma pequena cidade no Novo México e administra uma academia local que seu pai distante, Lou Sr. (Ed Harris), possui. Uma noite, Jackie (Katy O'Brian), uma andarilha de Oklahoma, chega à cidade a caminho de uma competição de fisiculturismo em Las Vegas. Ela e Lou acertam, mas eles se metem em problemas quando Jackie toma as coisas em suas próprias mãos depois que JJ (Dave Franco) abusa fisicamente de sua esposa, a irmã de Lou, Beth (Jena Malone).

Juntas, as mulheres explodem com uma paixão que não é mostrada apenas em suas cenas de amor, mas com a conexão de seus espíritos. Lou e Jackie imediatamente apoiarão uma à outra, não importa o que aconteça. No entanto, seus problemas de confiança às vezes fazem com que eles recuem, resultando em tragédia anunciada.


Depois das frias cenas britânicas de seu longa de estreia Saint Maud, a diretora Rose Glass, ambienta Love Lies Bleeding  no empoeirado sudoeste americano, e há um zumbido sangrento de perigo em cada quadro. 


Jackie é uma mulher que está escondendo seu trauma através da força e um físico poderoso. Quando alguém foi abusado física ou psicologicamente, às vezes pode agir com violência quando se sente ameaçado. A única pessoa que Jackie deixa entrar é Lou, e a única pessoa que Lou deixa entrar é Jackie. Ambas são duras e estão dispostas a fazer o que for necessário para sobreviver, não importa se é ilegal ou não.


Em uma mistura de Thelma e Louise, Ligadas pelo Desejo com Assassinos por Natureza, enquanto Lou tenta ajudar Jackie a encobrir um crime, a trama fica cada vez mais distorcida quando Daisy (Anna Baryshnikov) afirma ter testemunhado o ato então ela chantageia Lou. 

Por baixo de toda a garra, escuridão e violência, Love Lies Bleeding realmente tem um coração batendo. Kristen Stewart e Katy O'Brian dão performances cruas e emocionalmente ressonantes. Ambas têm uma química explosiva juntas.


Em termos de sexo e violência, há muito, embora não muita nudez. As cenas violentas são muito gráficas, no entanto, empurram para um gore inabalável.


Love Lies Bleeding também tem algumas sequências surpreendentemente surreais, de realismo mágico, que são sombriamente cômicas. Além disso, a trilha sonora, de Clint Mansell , é soberba e a fotografia, de Ben Fordesmann, cintilante, em um mundo ilícito de armas, violência e anabolizantes.


sábado, 20 de abril de 2024

Problemista(EUA, 2023)

Dolores (Catalina Saavedra, de Rotting in the Sun), mãe do pequeno Alejandro Martinez (Logan J. Alarcon-Poucel), lhe deu tudo e criou um mundo fantástico e protegido, mas nem sempre conseguiu salvá-lo das adversidades da vida.. Quando jovem, ele está pronto para enfrentar os perigos e vai para Nova York realizar seu sonho de se tornar um designer de brinquedos

Ele herdou a veia artística da mãe, mas as criações lúdicas de Alejandro não necessariamente caem em terreno fértil na indústria de brinquedos, e é por isso que ele tem que se contentar com um trabalho menos criativo por enquanto. Na FreezeCorp, uma empresa de serviços criogênicos que congela artistas por um período posterior de tempo em que seu trabalho poderia gerar melhores lucros. Ele é responsável pelo armazenamento de Bobby Ascencio (RZA), mas é demitido após um erro no processo.

Agora, a estadia de Alejandro nos EUA está em risco e, de acordo com o advogado de imigração Khalil (Laith Nakli), ele tem apenas um mês para encontrar um novo empregador, caso contrário, seu visto irá expirar. Mas quando a viúva de Bobby, Elizabeth (Tilda Swinton), concorda em contratá-lo como assistente de curador tudo muda. Ele deveria organizar uma galeria para as pinturas de ovos de seu falecido marido, mas com seu jeito furioso Elizabeth não torna a tarefa fácil para ele.


Problemista é a estreia de Julio Torres, do time de roteiristas do SNL, em um filme da A24. Além de dirigir, ele também escreve e estrela a produção como um imigrante salvadorenho tentando chegar a Nova York como designer de brinquedos, numa mistura caprichosa de comédia e crítica ao sistema de imigração dos EUA.


O filme é totalmente único em sua voz e história de tentar seguir atividades criativas como imigrante. A natureza satírica do filme não cede ao absurdo de coisas mundanas, como a política de cheque especial do Bank of America e o labirinto confuso que é o sistema de imigração.

A parte cômica do filme também vem de seu imaginário intenso e extremamente criativo. Por exemplo, em vez de simplesmente mostrar Alejandro procurando emprego ele é confrontado com um ser místico, uma espécie de fada madrinha queer, cercado pelo lixo virtual em um mundo neon. 


Junto com Torres, Problemista é estrelado por Tilda Swinton. Sua personagem pode estar enlouquecida e incapaz de aceitar um não como resposta, mas ela ensina Alejandro a se defender e tirar proveito do mundo injusto em que vivem. Swinton rouba a cena como a pseudo-vilã que virou amiga de Alejandro. Ela injeta muito humor no filme, além de momentos sinceros com o personagem de Torres que dão profundidade à obra.


O humor e o estilo visual tornam o filme incrivelmente divertido, a experiência de Torres como imigrante faz uma grande representação absurda do sonho americano.  Através da cenografia impecavelmente não convencional, de Katie Byron, e da narração,de Isabella Rossellini, Problemista mostra que não é uma simples crônica da jornada de Alejandro para a América, mas na verdade é uma espécie de conto de fadas sobre um homem profundamente sensível que descobre o que significa perseguir suas paixões.



quinta-feira, 18 de abril de 2024

Sem Coração(Brasil/França/Itália, 2023)


Sem Coração  está chegando aos cinemas. O longa é um microcosmo da própria vida repleto de momentos únicos e inesquecíveis, retratando um espectro de experiências humanas, da alegria à tristeza, da perda ao ganho, do medo do desconhecido à descoberta do amor profundo. A página listou uma série de motivos para não perder o filme.


 1- ESTREIA DE TIÃO E NARA NORMANDE

A estreia na direção de longas-metragens dos diretores, se distingue por um estilo incrivelmente harmonioso, misturando autenticidade e sensibilidade, realismo e fantasia, e retratos individuais e coletivos, tudo em contraste com paisagens oníricas à beira-mar.


2 - TOM AUTOBIOGRÁFICO

É notável que a obra carrega em um tom autobiográfico. A sinopse diz, Tamara está aproveitando suas últimas semanas na vila em que vive antes de partir para Brasília. Um dia, ela ouve falar de uma adolescente apelidada de Sem Coração. Durante o verão, Tamara sente uma atração crescente por essa garota.


3 - FOTOGRAFIA

Uma parábola modesta sobre a união de dois Brasis, Sem Coração também deve muito à sua premiada diretora de fotografia, Evgenia Alexandrova, que captura totalmente a sensualidade de uma certa idade e lugar, transformando o filme em uma experiência visual imersiva.

4 - COMING-OF-AGE

Sem Coração é um filme sobre amadurecimento. Os protagonistas são meninos e meninas muito diferentes que povoam as praias tropicais do Brasil em 1996. Tamara, que começa a descobrir sua atração por mulheres assistindo a sex tapes, se apaixona por Sem Coração, uma pescadora adulta que se prostitui para sobreviver. 



5 - CURTA-METRAGEM

O longa é a sequência de um curta-metragem, de 2014, de mesmo nome, premiado na "Quinzena dos Realizadores", em Cannes, com a qual divide os ambientes e cores e a protagonista, Eduarda Samara.


6 - REFERÊNCIAS

O filtro de uma extraordinária sensibilidade feminina e feminista (referências explícitas da realizadora são ao cinema de Lucrécia Martel, Alice Rohrwacher, mas também de Céline Sciamma) consegue segurar de alguma forma moral mesmo as cenas mais brutais e ásperas.


7- ELENCO

Um dos destaques do filme são as atuações cativantes entregues por seus jovens atores, que trazem profundidade e autenticidade aos seus personagens, fazendo com que o público realmente se conecte com suas histórias. Os destaques adultos vão para Maeve Jinkings, de Pedágio e Erom Cordeiro


8 - REALISMO FANTÁSTICO
No encontro de ‘Sem Coração’, com criaturas marinhas, Normande e Tião escolhem o caminho dos sentidos, trabalhando em parte a consistência material dos sons, enquanto, sob outra perspectiva, inserem elementos do realismo mágico que têm um valor simbólico explícito.

9 - DESCENTRALIZAÇÃO
O filme sai do Eixo Rio-SP e  é ambientado em Guaxuma, perto de Maceió, capital do turismo litorâneo, em Alagoas. Guaxuma é o título de um curta-metragem de animação de Normande, e é também lá que ‘Sem Coração’ nasceu há uma década. A trilha sonora também faz parte desse aspecto com nomes como Maria Bethânia, Cavalo de Pau e Mastruz com Leite.


10 - RESISTÊNCIA

Normande disse que o filme teve muito atraso, devido à pandemia e ao governo Bolsonaro que congelou recursos. A representação de uma natureza ainda fraterna, na qual e com a qual ainda é possível conviver em harmonia, num momento trágico para o planeta e em particular para o Brasil, talvez contenha mais de um elemento utópico e esperançoso. 


11 - PRODUÇÃO
Sem coração é produzido pela brasileira Cinemascópio (Emilie Lesclaux e Kleber Mendonça Filho, diretor de Bacurau e Retratos Fantamas), pela francesa Les Valseurs e pela italiana Nefertiti Film.



terça-feira, 16 de abril de 2024

Imaculada(Immaculate, EUA/Itália, 2024)

 
Ao chegar em um pitoresco convento italiano, a americana, irmã Cecília (Sydney Sweeney), se vê enredada em uma teia de terror divino. Sem um domínio completo da língua, Cecília se apoia nas intenções de seus anfitriões, provando ser um erro irremediável. O diretor Michael Mohan, e o roteirista Andrew Lobel, criam uma narrativa que entrelaça a inocência devota da irmã Cecília com as correntes malévolas de sua nova morada. Segredos deliciosamente sinistros se escondem em corredores escuros e santuários no porão. 

Cecília rapidamente percebe que por trás do idílio da iluminação espiritual um mundo estranho está se abrindo. Além disso, Cecília é atormentada por visões vagas, mas desagradáveis. E então o médico do mosteiro lhe revela uma gravidez comprovadamente imaculada de coração puro. Quanto mais Cecília é louvada pela Ordem, como a Segunda Virgem Maria, mais ela duvida da santidade dos acontecimentos. E a partir disso, Michael Mohan evoca um filme que puxa todas as cordas do terror.


A execução tonal em Imaculada é onde o filme encontra seu terreno, ecoando os fundamentos góticos, ele navega habilmente pelo ‘nunsploitation’ com um aceno de consciência,  dos clichês sombrios com que trabalha. 


A excelente fotografia, de Elisha Christian, traz um sentido absurdo de expressão em cada sequência individual, a lente acompanha as figuras como um espelho da percepção de Cecília. Christian sempre coloca a câmera no cenário certo, no momento certo. 


No coração satânico das afrontas delirantes de Imaculada arde Sydney Sweeney no que só pode ser descrito como um tour-de-force de resiliência sombria. Como a malfadada Cecília, a estrela em ascensão traça um arco requintado de sacrifício espiritual, sua jornada assombrosa da inocência protegida para a vingadora primordial é simplesmente impressionante em sua ferocidade emocional.


Através do canal transcendente da angustiante atuação de Sweeney, o filme explora verdades primordiais sobre força diante da aniquilação espiritual,  desatando visões de vontade humana inextinguível que brilham mais quando mergulhadas no abismo. 


O elenco de apoio, incluindo Álvaro Morte como o enigmático Padre Sal Tedeschi e Benedetta Porcaroli como a problemática Irmã Gwen, entrega performances igualmente atraentes, adicionando camadas de complexidade aos personagens. A interpretação de Dora Romano, como a sinistra Madre Superiora, é particularmente arrepiante, infundindo à personagem na aura da maldade.


Com cada quadro impregnado de grandeza sinistra, Mohan conduz uma escalada sinfônica de pavor que cresce em visões de blasfêmia irrestrita. Os esplendores antiquados dos locais italianos tornam-se playgrounds profanos onde o trabalho de câmera referencia o terror italiano de Bava e Argento e o cinema gótico de A Bruxa(2015) ou Nosferatu(1979), de Werner Herzog.


O que diferencia Imaculada é sua mistura perfeita de horror psicológico e alegoria religiosa. Enquanto Cecilia lida com a revelação de sua imaculada concepção e as armadilhas sinistras à espreita dentro das paredes do convento, o filme mergulha em temas de poder, dominação e as consequências da ambição descontrolada. 


Em sua essência, este é um longa sobre a natureza da crença e a escuridão que se esconde sob a superfície da devoção religiosa. É uma meditação assombrosa sobre o poder da fé para inspirar e corromper e os comprimentos pelos quais os indivíduos irão em busca de sua própria salvação. 


sexta-feira, 12 de abril de 2024

Le temps d'aimer(França/Bélgica, 2023)

Madeleine (Anaïs Demoustier) trabalha como garçonete em um hotel costeiro francês na década de 1950, onde conhece o estudante rico François (Vincent Lacoste), que demonstra grande interesse por ela. Os dois se apaixonam e se casam. Mas Madeleine tem um segredo obscuro: porque teve um caso de amor com um soldado alemão durante a Segunda Guerra Mundial, do qual uma criança, Daniel, foi gerada.

Mas François também tem um segredo. Ele acaba de terminar um caso de amor - com um homem. Como a homossexualidade é crime na França na época, ele vivia com medo constante de ser responsabilizado por seu comportamento pela polícia. O casamento entre Madeleine e François pode sobreviver nessas condições?

Le Temps d’aimer acena para Douglas Sirk, não só no título: tomando sua fonte na liberdade e se estendendo por 20 anos, o filme de fato retoma seus códigos. Amores impossíveis, segredos de família, feridas indeléveis, que pontuam os destinos de um casal que quer acreditar na redenção através do outro, sem que a magia realmente possa funcionar.


O filme, de Katell Quillévéré, revela um verdadeiro deleite estético: o casamento entre jazz, iluminação neon e uma atmosfera viril onde o excesso de energia oscila entre brigas e sexo desimpedido, às vezes a três, resulta em sequências muito bonitas, que conseguem captar os impulsos contraditórios dos protagonistas.


A ideia de seguir a euforia dos Anos de Glória como uma alavanca para a realização de duas pessoas muradas é interessante, especialmente quando leva à desilusão a longo prazo. A acidez e o descontentamento de uma mãe, e a repressão de um marido, envenenam uma família cujos alicerces parecem irremediavelmente enfraquecidos. 


Inspirado na história da avó da diretora, o longa não é um romance, mas é um retrato profundamente tocante e também bonito que resume bem o "amor" como conceito, como uma necessidade humana. 




segunda-feira, 8 de abril de 2024

Névoa Prateada(Silver Haze, Países Baixos/Reino Unido, 2023)

Após Dirty God(2019), a atriz inglesa Vicky Knight e a diretora holandesa Sacha Polak unem forças novamente em Névoa Prateada, um cruzamento cinematográfico de familiares destroçados, cada um com suas lutas vivendo em um bairro desanimado do leste de Londres.

Franky (Vicky Knight) é uma enfermeira de vinte e poucos anos que cumpre seus deveres na enfermaria e, por sua vez, lida com uma nova paciente, Florence (Esme Creed-Miles), ela mesma uma jovem sobrevivente de suicídio.

Ambas têm seus problemas, Franky é consumida pela ideia totalmente infundada de que a nova namorada de seu pai distante foi responsável pelo incêndio em casa que lhe causou queimaduras e, ao mesmo tempo, sua atual vida doméstica fraturada a vê tendo que competir com sua mãe instável.

Enquanto isso, Florence luta contra um transtorno alimentar suicida e vive com sua avó doente terminal e irmão autista. No entanto, apesar, e talvez, por causa disso, as duas veem um espírito semelhante uma no outro e um relacionamento logo se desenvolve, mas logo se torna tenso.


Vicky Night supera o trauma e o medo de um passado que depositou marcas indeléveis em seu corpo, com uma prática de atuação que aproveita a identidade em uma rede de histórias. Assistimos, portanto, a um trânsito entre o tempo vivido, inscrito nas marcas que Vicky carrega em seu corpo, e uma subjetivação dos personagens interpretados, que compreendem e transcendem a experiência.


O fogo que transformou o corpo de Franky ,em Névoa Prateada, é um evento invisível, recombinado pela atividade psíquica da jovem enfermeira, na amplificação da memória e da carga de significado emocional que é atribuída àquela tragédia. Polack nos mostra breves flashes oníricos, chamas no escuro que atingem a tela e parecem emanar do desejo e não da dimensão factual.

O filme torna-se, então, um filme sobre a elaboração de um trauma que gradualmente incorpora outros. Na dor compartilhada, a expiação e a culpa são becos sem saída, comparados à possibilidade de construção de novas cartografias e novos vínculos, para além das ditaduras do corpo e do olhar.


A câmera geralmente adota uma abordagem familiar, quase documental. Há momentos de beleza: o diretor de fotografia Tibor Dingelstad capta a natureza onírica e irreal do primeiro brilho de um novo relacionamento através de um pôr do sol dourado e laranja que transforma um parque despretensioso em um espaço semimágico, onde Franky e Florence se beijam pela primeira vez, tingindo levemente seus cabelos e pele.  O longa é baseado tanto no improviso quanto nas experiências de Vicky Knight de sobreviver a um incêndio semelhante em sua própria infância, e é essa performance fundamentada que é o aspecto mais forte do filme. A relação de Franky e Florence oscila entre afeto gentil e discussões ardentes e destrutivas, e a capacidade de Knight de equilibrar a raiva subjacente de sua personagem com momentos de cuidado e afeto.


É claro que a infância de Franky impactou seus próprios relacionamentos, mas nada é realmente mencionado em relação ao próprio comportamento destrutivo de Florence.  Névoa Prateada é sobre as tentativas de Franky de conciliar as perguntas não respondidas de sua infância, navegando em sua sexualidade e o poder destrutivo da raiva. 





quinta-feira, 4 de abril de 2024

Ripley(EUA, 2024)

Ripley, a adaptação episódica, do icônico romance de Patricia Highsmith, de 1955, não é só uma obra de arte pelas referências de Picasso à Caravaggio, ou pela arquitetura italiana e ainda sua maravilhosa fotografia em PB. A atração escrita e dirigida pelo showrunner Steve Zaillian(indicado ao Oscar pelo roteiro de O Irlandês),  apresenta multicamadas dos personagens encabeçada por uma interpretação tour de force de Andrew Scott.


Scott, que vem do hype de Todos Nós Desconhecidos(2023), tem aqui a oportunidade de mostrar seu imenso potencial como ator. Seu Ripley é cheio de nuances,  com atenção em cada detalhe, o que apesar de toda ambiguidade o dota de humanidade.


Em 1960, Alain Delon deu vida ao personagem em O Sol Como Testemunha , de René Clément; em 1999, Matt Damon reprisou o papel em O Talentoso Ripley, de Anthony Minghella. Ripley tem muito em comum com esses filmes, já que todos eles praticamente compartilham a mesma premissa e história geral, mas Zaillian consegue fazer algo novo na série da Netflix.


Thomas Ripley é um zero à esquerda, um vigarista na Nova York, dos anos 1960. Mas, ele é contratado por um milionário para ir à Itália e convencer seu filho errante a voltar para casa. Depois de aceitar o trabalho, Tom entra em um mundo complexo de engano, fraude e assassinato.


Quando ele chega à pitoresca cidade costeira de Atrani, Tom fica instantaneamente apaixonado pela área e pelo estilo de vida luxuoso de Dickie(Johnny Flynn). Ele ganha a confiança do milionário e é convidado para ficar em sua opulenta vila. À medida que se aproxima de seu novo amigo, Ripley se vê com ciúmes da namorada de Dickie, Marge Sherwood(Dakota Fanning), e se torna hostil com amigos como, Freddie Miles(Eliot Sumner).


Com a elegante cinematografia em PB, Zaillian e o diretor de fotografia Robert Elswit prestam homenagem ao cinema noir, sem deixar se reverenciar clássicos italianos. Os episódios iniciais se aquecem com a luz do dia e a beleza cênica, reservando elementos mais sombrios para a segunda metade. 

Além disso, outro destaque da minissérie são as locações. Nápoles e Roma tornam-se dois elementos essenciais. Eles são integrados à história e adicionam ainda mais sensação de decadência e melancolia à atmosfera e à imagem. Tudo é embalado por divas italianas como Mina e Nilla Pizzi.


A homossexualidade aqui é ainda mais latente, do que no filme de 1999. Vemos a ambiguidade sexual do protagonista o tempo todo, além disso, a atração tem tempo suficiente para aprofundar mais a questão, um tabu na época, e a estender para outros personagens e situações.


Dakota Fanning, em um papel que foi de Gwineth Paltrow, se destaca em sua interpretação de Marge Sherwood. Quando Tom se joga pela primeira vez na vida de Dickie, ela imediatamente sente que há algo de errado nele. Maurizio Lombardi, como o Inspetor, garante alguns momentos de humor involuntário.


Como o personagem titular, Tom Ripley é magnânimo em um momento e rancoroso no outro. Oscilando entre mesquinho e pensativo, a performance de Scott permanece dentro de cada uma das peles que ele usa para fazer o público se apaixonar.  E volta e meia somos traídos. Arrepiante, romântica e tensa, a série guarda um desfecho brilhante, totalmente à sua altura.