segunda-feira, 28 de fevereiro de 2022

Euphoria 2ª Temporada(EUA, 2022)

Após três anos de espera, a segunda temporada da aclamada Euphoria, série de Sam Levinson, para a HBO, chegou, mais sombria, obscura e menos lúdica e colorida mas igualmente realista e imersiva. O primeiro episódio começa revelando as origens do traficante Fez(Angus Cloud).

Somos transportados a um bordel repleto de sexo explícito onde o menino é resgatado por sua avó, uma bandida da pesada e inserido no submundo ilícito. O personagem enfim ganha protagonismo e já adulto aparece ao lado do minidealer Ash(Javon "Wanna" Walton) e Rue, a brilhante Zendaya, novamente se envolvendo em problemas.

Após uma tentativa de reabilitação, Rue recaiu e seu comportamento cada vez mais fora da realidade acaba por afastar as pessoas queridas, assim como colocá-la em riscos físicos e mentais. Ainda neste começo, em uma Festa de Ano Novo, regada a sexo, álcool, música e muita droga somos apresentados ao personagem Elliot(Dominic Fike) que mais tarde irá desempenhar um papel fundamental no relacionamento de Jules(Hunter Shafer) e Rue.


Ainda sofrendo as consequências da primeira temporada Sydney Sweeney  exibe sua beleza melancólica em cenas repletas de erotismo que definem sua personagem Cassie, submissa, objetificada, porém enigmática e que disputa secretamente o amor do vilão Nate(Jacob Elordi), com a melhor amiga Maddy(Alexa Demi).

O passado do obscuro Cal Jacobs é revelado no terceiro episódio, que humaniza o personagem, destaca o talento de Eric Dane e fornece momentos oitentistas embalados por INXS, marca a volta do tão característico neon e faz ainda uma referência ao clássico Happy Together. Enquanto isso, no presente, Lexi(Maude Apatow), já muito bem mais desenvolvida, além de flertar com Fez, começa a planejar a peça que será essencial no desfecho da trama.



“Só fumei um baseadinho”, Rue deu o primeiro passo dos Narcóticos Anônimos, que é admitir a derrota, porém não seguiu os conselhos do seu padrinho Ali(Colman Domingo), tornando sua vida infernal e a de seus parentes, trazendo à tona o tema da codependência ao vermos o sofrimento de sua mãe Leslie(Nika King) e sua irmã Gia(Storm Reid).

Quando o quarto episódio começa vislumbramos as melhores referências, durante a abertura, com Jules e Rue recriando filmes e obras de arte, como O Nascimento de Vênus, Brokeback Mountain, Yoko e John Lennon, Ghost, Frida Kahlo, Branca de Neve e Titanic. Embora as cenas sejam lindas e cintilantes, elas carregam o tom do andamento do relacionamento entre as protagonistas, que a essa altura é de partir o coração.

Assim como a relação entre Jules e Rue não será mais a mesma, algo também acontece com a amizade de Cassie e Maddy, abalada por Nate, que nessa temporada está ainda mais odioso, obsessivo, ambíguo e a ponto de um feminicídio.

Quando Labrinth, o compositor da trilha, aparece em uma participação, vislumbramos esperança para a protagonista, mas que nos episódios seguintes será quebrada com Rue sofrendo uma crise violenta de abstinência, correndo pelas ruas, sofrendo riscos, destilando verdades e mostrando os efeitos devastadores da droga na vida de um dependente químico.

Enquanto uns minguam, como Kat(Barbie Ferreira) que teve sua participação reduzida ao relacionamento com Ethan(Austin Abrams) e alguns carões, outros crescem, que é o caso de Lexi, que finalmente leva sua peça aos palcos e expõe, de forma muito sombria, os personagens, especialmente o vilão Nate. Servindo de muita metalinguagem, o espetáculo da irmã de Cassie acontece nos dois últimos episódios.


O tom adotado nessa segunda temporada certamente é mais sombrio. Embora o uso explícito de drogas tenha sido diminuído ainda há muitas carreiras e imagens impressionantes, como uma agulha espetando a pele. No entanto, mesmo obscuras, as cenas são plasticamente belas e há um momento memorável de Maddy experimentando as roupas luxuosas no close de sua patroa, ao som de Judy Garland.

Por falar em Judy Garland, a trilha mais uma vez incrível traz nomes como Lana del Rey, Tove Lo, James Blake, Bonnie Tyler, Ben E. King, Missy Elliot, Mazzy Star,  Mahalia Jackson, Jonathan Richman, Sinead O’Connor, INSX, Roxette, Erasure, Echo & The Bunnymen, Lenny Kravitz, CAN, 2Pac, Orville Peck, Sharon Cash, Captain & Tenille, e é claro Labrinth.


O vazio que habita em Rue e que só pode ser preenchido com doses de droga é o que a consome e a destrói, e também é o fio condutor da série, mas sempre há uma luz, sempre há uma esperança, e por mais que Euphoria não seja moralista, ela é realista mesmo em um universo lúdico que traz beleza para a escuridão.


Quando chega em seu oitavo e último episódio, Euphoria é catastrófica e trágica com toques tarantinescos e momentos comoventes. A resolução da peça de Lexi, traz o desfecho para os personagens(nem todos), e alguns são surpreendentes, enquanto outros desoladores.

As consequências do vício, do abuso, da criminalidade e das amizades tóxicas custam um preço alto. Mas o final, mostrando a sobriedade de Rue traz luz, um caminho de respostas e o anúncio da terceira temporada de um dos maiores sucessos televisivos dos últimos tempos.


domingo, 27 de fevereiro de 2022

Lamb(Islândia/Polônia/Suécia, 2021)

A grandeza sombria e pitoresca que os prados e montanhas da Islândia provocam é impressionante e ao mesmo tempo desoladora. A paisagem, integra a narrativa do filme, e se desdobra, de acordo com o misticismo que a estreia de Valdimar Jóhannsson, Lamb, se desenvolve.  

A ação começa na véspera de Natal no curral, onde acontecem coisas ultrajantes. Close-ups dos rostos dos animais peludos por si só criam tensão. O que o diretor de fotografia Eli Arenson traz para a tela aqui só pode ser descrito como uma grande obra de arte. 


Após essa introdução, começamos a acompanhar o casal de camponeses Maria (Noomi Rapace) e Ingvar (Hilmir Snær Guðnason), que vivem com seus animais completamente sozinhos nas montanhas. Não há muito diálogo entre eles, as primeiras palavras chegam depois de cerca de quinze minutos de projeção. O clima entre os dois é o de uma rotina amortecida, que logo será alterada por um acontecimento fantástico.


O que Maria encontra em uma de suas ovelhas um dia é tudo menos um cordeiro comum. O casal claramente tem sentimentos parentais pelo ser que chegou ao mundo. E o fato da criatura, que foi o resultado daquele Natal assustador no início, ser criada como sua própria ‘filha’ traz a eles um vislumbre de esperança.


Batizada de Ada, a personagem híbrida pode ser vista como uma alegoria para a disforia de gênero, afinal ela cresce em um mundo que não lhe pertence, apesar de ser muito bem aceita por seus ‘pais’ e provoca estranhamento, medo e fobia no irmão do protagonista, Petur(Björn Hlynur Haraldsson).

Quando tudo parece perfeito  surge mais do que uma nuvem escura que paira sobre o idílio. O filme abre um leque de interpretações para temas como perda, família e, por último, mas não menos importante, natureza. Em Lamb, Maria e Ingvar certamente rompem a ordem natural que reina ao redor e acima deles, mas suas ações estão longe do que se poderia chamar de mal. 

A princípio, parece óbvio classificar Lamb como um terror folk ou fantasia. Muito mais, Valdimar Jóhannsson criou uma saga cinematográfica que também poderia ser relacionada aos Irmãos Grimm em outros dados geográficos. Aqui o sobrenatural não é de modo algum motivo de terror, mas até mesmo de realização de desejos mais íntimos.


Produção da badalada A24, Lamb prova que um jovem cineasta ainda pode criar uma obra original inteiramente de acordo com as suas próprias ideias, sem se deixar guiar por expectativas e categorias. É um filme para ser lembrado por seus momentos mágicos com suas montanhas, criaturas e coisas que escapam à lógica humana.

sábado, 26 de fevereiro de 2022

Getting It(EUA, 2020)


Escrito, produzido, dirigido e estrelado por Tom Heard, Getting It prova que não é preciso um grande orçamento para entregar um bom trabalho.  O longa foi feito a partir do interesse de seu diretor em retratar relacionamentos interpessoais, e explorar suas dinâmicas através deles.

O filme segue Jamie (Tom Heard), um cantor cujo parceiro de cabaré e namorado o largou há um ano. Depois disso, ele se desliga e sempre se coloca em primeiro lugar, recusando-se a voltar lá novamente caso cruze o caminho de seu ex. Além disso, Jamie está lutando com sua própria carreira e paixões e se apresenta em seu apartamento, imaginando que está no palco novamente. Mas ele se recusa a cantar em público, para frustração de sua melhor amiga Elaine (Sharron Bower).


No apartamento do lado vive Ben (Donato De Luca), um poeta que está se recuperando da perda devastadora de sua mãe há um ano e atualmente vive com com seu irmão e cunhada. Ele passa a maior parte do tempo  em seu quarto e se recusa a socializar com qualquer pessoa.


Apesar da diferença de idade, Jamie e Ben realmente se conectam e descobrem que têm muito em comum e começam a se aproximar. Mas o relacionamento deles está longe de ser fácil, pois ambos tem problemas para enfrentar, assim como um mundo que os cerca.


Getting It equilibra melodrama  com alguns grandes momentos cômicos, com a maioria deles fornecidos pelo vizinho intrometido Linus (Adrian Laguette), que quer sempre saber de tudo e parece irritar todos ao seu redor. 


Tom Heard escreveu todas as músicas do filme, que transmitem as emoções de Jamie de forma brilhante. Jamie é um personagem, que traz a maturidade para o ponto focal, empático porém falho. Tanto Heard quanto De Luca entregam performances brilhantes, com uma excelente química na tela.

Embora apresente algumas limitações, o longa carrega  muita carga emocional e, seja felicidade, tristeza ou humor, cada emoção é equilibrada perfeitamente para criar uma experiência muito real e crua. Getting It é um adorável filme independente que surpreende ao sair do lugar comum.


Freak Show(EUA/Reino Unido/Suécia, 2017)


Baseado no romance de James St. James, Freak Show, o filme de estreia da diretora Trudie Styler acompanha Billy Bloom interpretado por Alex Lawther. A partir do momento em que o encontramos olhando para si mesmo no espelho, decidindo como fazer sua maquiagem, sabemos que Billy não é um garoto comum.

E assim conhecemos uma mãe indulgente (Bette Midler), que adora seu filho e incentiva ativamente que ele se vista com roupas femininas. É a causa de muita discussão entre sua mãe e seu pai heterossexual que se separam e ele se vê obrigado a deixar sua adorada mãe para morar com seu pai em sua enorme mansão com a governanta.

Billy se retrai cada vez mais em seu mundo de fantasia, ignorando o conselho da governanta de se vestir de forma mais conservadora para seu primeiro dia em uma nova escola. No entanto, a ideia de conservador de Billy é se vestir como o filho bastardo de Marilyn Manson e sua ostensiva familiaridade com os outros alunos o leva ao ostracismo imediatamente.


O ensino médio é sobre se conformar e se encaixar e não chamar a atenção para si mesmo durante a turbulência da adolescência. Billy é exatamente o oposto e, embora ele faça amigos, uma super fã bizarramente chamadoa Blah Blah Blah (Anne Sophia Robb) e estranhamente um garoto hétero muito querido chamado Flip (Ian Nelson) que todo mundo gosta, Billy inevitavelmente se vê vítima do bullying quase fatal dos atletas do ensino médio.

É quando Billy decide concorrer ao título de rainha da beleza que tudo vem à tona com ele e a outra candidata ao título de rainha do baile fazendo discursos na escola para ganhar seu voto. Freak Show é uma ode à tolerância e à individualidade. Alex Lawther está ótimo como Billy e é um papel ideal para um jovem ator mostrar sua versatilidade. 


Os melhores filmes do ensino médio sempre ultrapassaram os limites. A diretora trabalha para enviar uma mensagem que difere apenas nos detalhes. É um longa em que o estilo, com graça na trilha-sonora e nos figurinos,  inevitavelmente triunfa, sobre a substância e há mais substância aqui do que você possa esperar.

sexta-feira, 25 de fevereiro de 2022

Bem-Vindo à Chechênia(Welcome to Chechnya, EUA, 2020)

O terceiro documentário do repórter investigativo, e agora cineasta, David France, de Como Sobreviver a uma Praga(2012) e A Morte e Vida de Marsha P. Johnson(2017),  é uma das representações mais dolorosas da vida LGBTQIA+  contemporânea que teremos que assistir. 

O filme usa a tecnologia do deepfake para disfarçar muitos de seus personagens e com razão, pois aprendemos que as pessoas LGBTQIA+ na república da Chechênia, no sul da Rússia, estão enfrentando uma ameaça existencial muito real nas mãos do líder Akmad Kadyrov, um déspota nomeado por Vladimir Putin , que une suas forças para "limpar o país" de qualquer pessoa que se identifique como homossexual e o vemos declarando assustadoramente em uma entrevista que "não temos gays".


O filme nos coloca no meio de uma rede de apoio improvisada que surgiu em 2017 em resposta a uma escalada de ataques orquestrados à comunidade gay. A apreensão de um telefone, afirma o filme, levou à descoberta de mensagens e imagens de uma surra que desencadearam uma política de tortura de homens e mulheres gays até que revelassem mais nomes a serem recolhidos e brutalizados.


David Itseev tornou-se um coordenador do movimento clandestino que ajudou a levar pessoas da Chechênia para esconderijos russos e, em conjunto com organizações internacionais, para asilo em outros países. Ao longo do filme, veremos o quão difícil e perigoso isso é enquanto vemos sua equipe, incluindo a igualmente determinada e destemida Olga Baranova, que tenta resgatar a filha de um político checheno que enfrenta 'crimes de honra' se suas preferências sexuais forem reveladas à sua família


O outro protagonista do filme é "Grisha" cuja identidade real é revelada no final do documentário à medida que o artifício digital se desfaz , um cidadão russo torturado na Chechênia, cuja família inteira se torna um alvo e cuja bravura de trazer a barbárie a público se torna uma luz brilhante em um mar de tristeza. 



Os meios de tortura foram muito além de qualquer coisa que os americanos fizeram aos prisioneiros no Iraque, e muitas pessoas morreram sob custódia e seus corpos foram jogados sem deixar vestígios. O fato de que as autoridades nunca foram questionadas pela população local sobre tamanhos absurdos.


Apesar dos riscos pessoais, Isteev e seus colegas planejaram resgatar tantos homens e mulheres gays presos na Chechênia quanto puderem. Foi preciso muita coragem e locais seguros em toda a Europa. Eles também administravam um Abrigo em um subúrbio de Moscou como uma casa de recuperação para aqueles que esperavam obter autorizações de viagem para o Canadá ou a Europa, já que o governo Trump, impedia a entrada de imigrantes chechenos, nos EUA.


A perseguição sistemática, tortura e assassinato , tanto pelo Estado quanto por "crimes de honra" por parentes, de lésbicas e gays é oficialmente negada, discretamente encoberto por Putin e dificilmente notado internacionalmente.


Assim, France nos traz um documentário visualmente implacável que não poupa o público nem de vídeos de tortura nem de cenas de assassinato. Seu filme investigativo furioso e desesperado lembra que não há motivo para esperança quando os únicos apoiadores dos perseguidos têm que fugir, para lugares que não oferecem refúgio e o mundo observa em silêncio.


Com precisão jornalística, James France confronta a situação catastrófica das pessoas queer na Chechênia, onde uma campanha assassina lançada pelo Estado contra qualquer pessoa suspeita de homossexualidade vem ocorrendo há anos. Perturbadoramente direto e profundo, o documentário em si é uma das poucas chances de resgate dos perseguidos e um lembrete de que diante o terror ainda há bondade na face da terra.



quinta-feira, 24 de fevereiro de 2022

Bem-Vindo à Casa de Bonecas(Welcome to the Dollhouse, EUA, 1995)

Bem-Vindo à Casa De Bonecas traz recordações brutais e implacáveis sobre o inferno do ensino médio. Ver esse filme é um choque por lembrar como adolescentes podem ser cruéis uns com os outros, e quão profundamente essas feridas da adolescência deixam cicatrizes.

O filme é estrelado por Heather Matarazzo em uma performance perfeita como Dawn Wiener, uma impopular aluna da sétima série cujos óculos estão errados, cujo cabelo está errado, ou seja ela é humanamente tão desajeitada, quanto qualquer um de sua idade poderia ser.

A primeira vez que a vemos, ela está realizando um dos rituais mais dolorosos da vida: andando pelo refeitório da escola com uma bandeja cheia, tentando escolher uma mesa. Seu objetivo é sentar-se com os alunos tão longe na escala social escolar quanto ela, sem ser rejeitada.


Dawn  também é conhecida como "Lesbo" e "Estúpida", e quando ela pergunta a um colega por que ele a odeia, ela recebe uma resposta direta: "Você é feia". Ela não é feia, simplesmente fora dos padrões impostos, e sempre haverá sádicos que lhe farão um alvo.


Mas Bem-Vindo à Casa de Bonecas é na verdade, um filme engraçado e intensamente divertido: intenso, porque se concentra tão impiedosamente no comportamento de seus personagens que somos forçados a enfrentar tanto a comédia quanto a dor.

Dawn mora com os pais e um irmão mais velho que é nerd e uma irmã mais nova que é bailarina. Seu irmão Mark (Matthew Faber) está focado em entrar em uma boa faculdade, e tudo o que ele faz é planejado. Ele começa uma banda de garagem e recruta um estudante popular chamado Steve (Eric Mabius) como seu vocalista. Steve é ​​um bonitão mais velho, e o coração de Dawn acelera só de olhar para ele. 


Dawn é muito mal informada sobre sexo, mas disposta a aprender. Ela essencialmente fará qualquer coisa por Steve, que não pode ser incomodado; há uma cena bem escrita em que ela o tem sozinho em casa e o enche de junkie food.


Enquanto isso, ela é atormentada pelo bullying de Brandon (Brendan Sexton Jr.), que torna sua vida miserável e traz consequências drásticas. Dawn é esperta o suficiente para sentir ou adivinhar que os meninos da idade de Brandon muitas vezes expressam afeição através da hostilidade, e ela o tolera.


Cena após cena, Bem-Vindo à Casa de Bonecas acumula seus detalhes, recriando a aguda tragédia diária de ser uma adolescente impopular e lembrando, também, quão resiliente uma garota como Dawn pode ser.


O filme, que ganhou o grande prêmio no Festival de Cinema de Sundance, de 1996, é a estreia de seu roteirista e diretor, Todd Solondz. Ele mostra o tipo de atenção implacável aos pormenores que é a chave para a sátira. Não é o quadro geral que importa para uma garota como Dawn, mas os pequenos sinais de esperança que podem ter sido avistados.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Now Apocalypse(EUA, 2019)

Now Apocalypse contém todos os ingredientes que fizeram Gregg Araki se destacar como um dos criadores do new queer cinema: um elenco bonito, uma infinidade de cenas e possibilidades sexuais, os fetiches que não faltam, uma fotografia colorida marcante, aliens e uma trilha sonora incrível.

A história gira em torno de Ulysses (Avan Jogia), apaixonado pelo enigmático Gabriel (Tyler Posey) e obcecado/atormentado por sonhos estranhos que parecem indicar que algum tipo de catástrofe está prestes a acontecer.


Outros personagens relevantes seriam: Carly (Kelli Berglund), BFF de Ulysses e aspirante a atriz, embora ganhe a vida como Cam Girl, o doce, lindo e hipersexualizado Ford (Beau Mirchoff), colega de quarto de Ulysses e projeto de roteirista; e Severine (Roxane Mesquida), a fria, sexy e também enigmática namorada deste último.

Há ainda Jethro(Desmond Chiam), que emula James Duval, dos filmes do diretor dos anos 1990, e protagoniza momentos tão intensos quanto cômicos ao lado da namorada Carly. Duval também aparece brevemente como o clássico sem-teto que anuncia o fim do mundo.


E embora certamente muitos não vejam mais longe, a série tem muitas outras coisas para nos oferecer. Como um olhar completo e mais complexo do que pode parecer sobre as relações humanas, todas envoltas em cores vivas e na forma de uma comédia atípica.

A sua comédia, sexo e humor, acima de tudo absurdo, formam uma boa combinação, a direção de arte detalhada e sua trilha sonora esplêndida são garantias mais do que suficientes para que o público não fique indiferente com Now Apocalyse.

Incrível, a trilha-sonora traz nomes como Slowdrive, Disclosure ft. The Weekend, Years & Years, Frank Ocean, French 79, FKA Twigs, Morcheeba, Franz Ferdinand, Interpol, My Bloody Valentine, Troye Sivan, Nine Inch Nails, M83, Kings of Convenience, Bat for Lashes, Chromatics, Yeah Yeah Yeahs, LCD Soundsystem, Pixies, Ladytron, Portishead, The XX, entre muitos outros.


O melhor de Now Apocalypse é nos devolver ao Araki mais transgressor; a um Araki renovado, inserido na atualidade dos apps com força total. A série é uma brincadeira muito apetitosa onde se acumulam nudez livre e cenas sexuais cheias de fetichismo. O pior, é que a atração foi cancelada, pelo Starz, e no entanto seu desfecho ficou em aberto.


terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

Venuseffekten(Dinamarca, 2021)

A maioria de nós, independentemente de idade, gênero, etnia e orientação sexual, se sentirá representado de uma forma muito especial no encontro com o cativante drama juvenil de Anna Emma Haudal.

A jovem Liv, que se mudou recentemente de casa, mas ainda mora perto de seus pais, está apaixonada pelo doce Sebastian(Clint Ruben), mas é atraída pela brincalhona Andrea, que na encantadora figura de Josephine Park irrompe em sua vida.


As duas mulheres iniciam um relacionamento que é desafiado pelo fato de Liv ter dificuldade em lidar com sua sexualidade. Andrea, por outro lado, parece ter dificuldade em lidar com sua paixão por uma mulher que não se encaixa em seu grupo de namoradas lésbicas.


Anna Emma Hauda, dá uma visão amorosa da província como um lugar onde, é claro, existem as mesmas alegrias e tristezas da capital. O mesmo acontece numa bela ilha. Os pais de Liv cuidam de um jardim e os personagens do filme se referem ao ambiente orgânico como uma personalidade.




Como o pai de Liv, Klaus, Lars Mikkelsen é partes iguais em harmonia com a natureza e completamente louco em seu jeito introvertido. A edição permite que a história encontre um lugar tranquilo onde você seja atraído pelas cenas. Dessa forma, bate muito mais forte quando em uma sequência entre Liv e sua mãe Gitte(Sofie Gråbøl) ​​a intensidade é lentamente disparada ao se aproximar dos rostos das duas mulheres no humor saturado e nos closes da linda fotografia de Valdemar Cold Winge Leisner.


Comédia e drama se misturam silenciosamente para que ninguém seja vilão e cada um tenha seus motivos. Johanne Milland Pedersen, em sua estreia nas telas, é um achado no papel principal como Liv. A jovem atriz irradia naturalidade no retrato de uma mulher que não quer ser definida a partir de sua sexualidade.


"Eu não sou lésbica o suficiente para ser lésbica", ela diz a seu irmão Jonas (Morten Hee Andersen), que é gay e vive em um relacionamento aparentemente harmonioso com o namorado. Mas entendemos que também não foi fácil para ele sair do armário. E para todos os personagens do filme, uma rica vida emocional interior fervilha logo abaixo da superfície.

Portanto, Venuseffeckten pode permitir que as cenas se desenvolvam em um curso silenciosamente realista, onde você fica surpreso por sempre parecer tão reconhecível. Afinal, todos eles são apenas pessoas tentando encontrar seu caminho no labirinto confuso da vida de meandros de amor e dúvidas existenciais.


segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

Moneyboys(Áustria/França/Bélgica, Taiwan, 2021)

Fei (Kai Ko) vem de um lugar onde sua orientação sexual não é algo que se fala até o meio da narrativa, mas onde o conhecemos não é a aldeia em que ele cresceu. Em um longo prólogo da trama, vemos ele atravessar a porta de um apartamento onde é recebido por um jovem chamado Xiolai (JC Lin) vestido com um traje espetacularmente todo vermelho. Fei está um pouco inseguro sobre como se comportar e, por um momento, tem-se a impressão de que ele chegou a uma espécie de entrevista de emprego. E de certa forma, esse já é seu período de teste. Quando, alguns momentos depois, um terceiro homem, não tão jovem e bonito, passa brevemente pela câmera, com a barriga pendurada sobre a cueca, fica claro como cristal que Fei é um callboy em seu primeiro dia.

Ao construir a história em torno do ambiente dos moneyboys no sul da China, o diretor C.B. Yi está interessado em explorar algo diferente do modo que um grupo de garotos escolheu para ganhar a vida. O filme trata da migração de jovens do campo, que neste caso, estão trabalhando como michês de classe alta nas grandes cidades. Quase todos vêm da China rural, de comunidades que nunca aceitariam sua homossexualidade, o que significa que sair nunca foi uma questão de escolha. 


Ao optar por filmar as cenas da vida urbana principalmente em ambientes fechados, C.B.Yi mantém um contraste entre a vida rural e urbana chinesa crível evitando o perigo potencial de expor a paisagem arquitetônica de seu set de filmagem real, em Taiwan. Há outra razão por trás da escolha de interiores em vez de exteriores da cidade, o diretor de fotografia Jean-Louis Vialard, de Mal dos Trópicos(2004), usa a limitação dos movimentos de câmera em espaços herméticos para colocar a proximidade ou distância de Fei de outras pessoas sob observação atenta.


Fei se adapta às regras do jogo rapidamente, mas não antes de bater a cabeça contra a parede com força. Em um ponto, ele é brutalmente espancado por um cliente que Xiaolai tentou avisá-lo. Mas o ato de violência afetará fortemente a vida de ambos os jovens, deixando Xiaolai deficiente após uma tentativa ingênua de vingar seu amante e forçando Fei a partir para outra cidade. Nós o vemos cinco anos depois de viver uma vida relativamente boa e basear seu negócio em clientes que o visitam em casa e o pagam muito bem.



Comovente é o momento em que Fei finalmente volta à sua aldeia para ver seu avô moribundo. A mesma família que está contando com sua ajuda financeira desde que ele partiu torna-se abertamente hostil, mas é lá que ele se reconecta com seu amigo de infância Long (Bai Yufan), que logo depois aparecerá em sua porta na cidade. Long não apenas seguirá o mesmo caminho que Fei, ele também se tornará uma parte muito importante de sua vida. 


Moneyboys não se preocupa com a exposição longa e detalhada, em vez disso, lança o público diretamente na ação e no conflito iminente. Isso deixa uma coisa muito clara desde o início: não há longas explicações ou introduções de personagens. Se você quiser notar reviravoltas na história e no desenvolvimento dos protagonistas precisa olhar muito atentamente.


O único aspecto da trama que realmente perpassa todo o filme é a pressão social que pesa sobre Fei. Como um jovem em idade de casar, espera-se que ele encontre uma esposa o mais rápido possível. Essa pressão é onipresente e sempre se reflete nas conversas com amigos e parentes. Além disso, ele encontra incompreensão, ódio e bloqueios de sua família devido ao seu trabalho e sua orientação sexual. Essa ruptura afeta claramente Fei, que não é apenas resolvida de maneira muito compassiva em termos de encenação, mas também é bonita de se ver em termos de atuação.

Cada cena em Moneyboys tem muito a oferecer e, portanto, muito a contar. Em vez de uma experiência visual rigorosa, o resultado é mais um jogo de busca que é muito divertido no início, mas se torna um pouco monótono com o tempo. Mas quando Fei passeia pelas ruas históricas e toda a cena é banhada pela luz neon magenta, não é apenas um belo contraste entre modernidade e tradição, mas também uma imagem maravilhosa para lembrar.


domingo, 20 de fevereiro de 2022

Geração Maldita(The Doom Generation, EUA, 1995)

A segunda parte da trilogia Teen Apocalypse, de Gregg Araki, depois de Totally F***ed Up(1993) e antes de Nowhere(1997), Geração Maldita  ajuda a definir o cinema indie de meados dos anos 1990. É um filme que se alimenta do niilismo da Geração X e da raiva da juventude pós-punk para criar um road movie que parece relevante e ao mesmo tempo banal.


A desbocada Amy (Rose McGowan) e seu namorado Jordan (James Duval) estão fora uma noite quando seus caminhos se cruzam com o do malandro Xavier (Johnathan Schaech). Enquanto Amy a princípio não quer nada com ele, um estranho vínculo se desenvolve depois que Xavier salva sua vida literalmente atirando na cabeça de um dono de loja armado. O trio acaba saindo em uma viagem juntos, com Xavier tendo uma tendência enervante de matar pessoas, e Amy sendo constantemente confundida com o amor da vida das pessoas, com resultados violentos.


Os locais por onde passam, incluem bares enfeitados com e quartos de hotel com papel-de-parede quadriculado, o diálogo é irreverente e autoconsciente e há muitas cenas de atores vagando de cueca sem motivo aparente. 

 

As coisas ficam cada vez mais estranhas e logo Xavier está fazendo sexo com Amy, mas com o conhecimento e aprovação tácita de Jordan. Tal como acontece com vários outros filmes de Gregg Araki, Geração Maldita vive no limite entre a inutilidade sinuosa e o significado surreal. Com muito sexo e violência extrema, em um momento parece que não vai a lugar nenhum, antes de adicionar um pequeno ponto satírico. 



Geração Maldita, apesar de comparado a uma versão teen de Assassinos por Natureza(1994), tem um senso de humor muito mais aguçado e uma autenticidade que representa a geração grunge. É muito áspero nas bordas, mas funciona. 


Embora não haja conteúdo gay explícito, a tensão sexual entre Jordan e Xavier é deliberada e palpável, com a única questão de saber se Jordan está alheio a isso ou não. Também não é uma coincidência que o final sombrio e indutor de estremecimento ocorra quando a dupla está prestes a agir em sua atração. 


Esses personagens sentem que podem matar, foder qualquer coisa e usar drogas sem parar; não há mais nada por aí para esperar, onde cada dono de loja empunha uma arma e onde imagens da vida real estripando no noticiário do horário nobre são perfeitamente aceitáveis, o mundo em que vivem parece desprovido de qualquer valor moral ou ético.


Uma fatia de niilismo por excelência dos anos 1990, o filme coloca em cena o grunge pós-punk com um senso de humor sombrio, sexo, drogas e violência. E todas essas vertentes fazem que Geração Maldita seja um filme furioso mas também de partir o coração.  


sábado, 19 de fevereiro de 2022

Looking: O Filme(Looking: The Movie, EUA, 2016)


Há um momento nos minutos iniciais de Looking: O Filme que nos sentimos na série para logo perceber que este é um longa para dar um desfecho ao que ficou pendente. Pressionados uns contra os outros  bebendo sob um mural desbotado, Patrick (Jonathan Groff) e seus amigos revivem discussões e reaproveitam piadas, entrando no ritmo de seus dias passados ​​juntos.

É uma sequência despretensiosa, salpicada de detalhes sobre os personagens que conhecemos, mas também é potente, esboçando os contornos  de uma vida anterior. Quase um ano desde que foi embora de São Francisco para Denver, Patrick está de volta na cidade para um casamento, e seu retorno é um acerto de contas – com Richie (Raúl Castillo), com Kevin (Russell Tovey) e com o pessoa que ele era, é, e talvez ainda possa ser. 


Requintadamente nostálgico, é tão confortável e complicado quanto um reencontro com um velho amigo, debruçado sobre o passado em busca de sua promessa e arriscando a pontada aguda do arrependimento, o filme consegue cumprir seus objetivos.


Ao focar no desejo de Patrick de “fechar o capítulo” e “enterrar os mortos”, Looking: O Filme adota sua perspectiva, vendo os sucessos do grupo através de seus olhos. Enquanto Dom (Murray Barlett) vê seu restaurante crescer, Doris (Lauren Weedman) se diverte em seu relacionamento com Malik (Bashir Salahuddin), e Agustín (Frankie J. Álvarez), ainda com Eddie (Daniel Franzese), se estabelece em um novo trabalho. Insinuações de suas próprias ansiedades borbulham para a superfície, mas o desejo de Patrick inunda o filme com um brilho idealista.

À medida que a imagem de Patrick sozinho em um espelho se dissolve em uma longa e persistente imagem de casais se abraçando e se beijando, pares se misturando em totalidades perfeitas, o filme captura a pungente sensação de incompletude que chamamos de decepção. “Isso não dura para sempre”, Doris assegura a Patrick, vendo em sua expressão algo que ela mesma passou. .


Se o filme, escrito por Andrew Haigh e o criador da série, Michael Lannan, às vezes parece leve, em particular porque reduz o namorado de Richie, Brady (Chris Perfetti), a uma caricatura presunçosa, sua representação de uma vida em pontas soltas é, no entanto, comovente, construída da precisão naturalista que definiu a série desde o início com seu brilho neon e ousadias sexuais.

No momento em que a câmera recua pela última vez, Looking: O Filme não pode oferecer uma resposta melhor, exceto talvez que a única cura para o romance do retrospecto seja o salto de fé – o novo lar, a nova carreira, o novo casamento. Siga em frente, Patrick pede a si mesmo. Feche o capítulo. Enterre os mortos. Mas sua noção do homem que ele é, ou foi, continua sendo parte integrante do homem que ele se tornará. O único espectro que nenhum de nós consegue afastar é o de nós mesmos.



POSTS RELACIONADOS: LOOKING(2014-2015)


sexta-feira, 18 de fevereiro de 2022

Vicky Cristina Barcelona(EUA/Espanha, 2008)

Vicky Cristina Barcelona é o melhor filme que Woody Allen realizou depois de muito tempo; é engraçado, nítido, perfeitamente ritmado e maravilhosamente filmado, com um quarteto de papeis para excelentes atores colocados firmemente no centro.

A história diz respeito a duas garotas americanas, Vicky (Rebecca Hall) e Cristina (Scarlett Johansson), amigas de longa data, mas com temperamentos completamente diferentes. Vicky, chegando ao fim de seu curso de estudos catalães, é sensata e prática, com um noivo de longa data; Cristina é uma buscadora de atenção, flutuando de um “projeto criativo” para outro. Quando uma amiga da família, Judy (Patricia Clarkson) as convida para passar o verão em sua casa em Barcelona, ​​elas aproveitam a chance.


Elas mal saem do avião quando Judy os leva para a inauguração de uma galeria de arte e aponta Juan Antonio (Javier Bardem), um artista abstrato com uma reputação crescente, mas um passado escandaloso – um casamento tempestuoso com um colega artista terminou quando ela tentou matá-lo. Mais tarde, Juan se aproxima das meninas em um restaurante e as convida para voar com ele para Oviedo no fim de semana – “vemos belas paisagens, comemos boa comida e vinho, e depois fazemos amor”.


Vicky está a ponto de chamar a polícia, enquanto Cristina vê isso como o começo perfeito para sua aventura europeia e, eventualmente, convence a relutante Vicky a acompanhá-la. As belas paisagens estão devidamente abastecidas, mas a boa comida e o vinho agravam a úlcera estomacal de Cristina. Enquanto ela passa o fim de semana na cama, Juan continua a mostrar Vicky – e, apesar de tudo, ela fica cada vez mais atraída por ele.

A principal reviravolta do filme é o reaparecimento da ex-esposa de Juan, Marie Elena (Penélope Cruz), sem dúvida maluca, mas igualmente sexy e ainda com uma chama acesa por ele. A personagem traz o elemento do triângulo amoroso para o filme, mas como sempre, na cinematografia de Allen, este é um filme sobre relacionamentos, não sexo. Mas um efeito colateral disso é que o diretor, expande seu estilo habitual de apontar e disparar, claramente extasiado e encorajado pela arquitetura de Gaudi e os tons dourados de um verão espanhol para criar um trabalho de câmera impressionante e peculiar.


Rebecca Hall prega o sotaque americano completamente, e sua Vicky é uma mistura fascinante de ousadia e reserva, apaixonada pela cultura espanhola, enquanto de muitas maneiras não entende realmente a paixão e o pathos em seu coração.


Johansson é uma criação um pouco mais convencional – a criança selvagem conscientemente boêmia que realmente gosta de arte e se vê incapaz de se comprometer com um relacionamento ou estilo de vida genuinamente incomum. Mas ela traz o calor e a paixão pela vida de sua personagem, a ponto de a amizade central se tornar crível de personalidades contrastantes, mas complementares. Bardem e Cruz transformam papéis que poderiam ser muito clichês em personagens redondos e simpáticos, mas ao mesmo tempo muito sedutores.


À medida que o ataque do quarteto se desencadeia, torna-se evidente que Woody recuperou seu fôlego cômico. Nunca atinge as alturas sublimes de seu melhor trabalho, mas dá um passo na direção certa. 

quinta-feira, 17 de fevereiro de 2022

Garotas(Bande de filles, França, 2014)



Os filmes de Céline Sciamma são exames delicados e emocionais e cada um assume uma faixa diferente do espectro da feminilidade. É preciso uma cineasta intuitiva e sensível como Sciamma para ir além da superfície da "infância", remover as armadilhas normais e observar todas as diferentes forças e influências em jogo. Garotas é um filme poderoso e divertido sobre uma gangue de meninas e o que a amizade significa, a proteção que ela oferece.

O filme segue Marieme (Karidja Touré) em seus 16 anos. Ela mora em um grande conjunto habitacional e é a principal cuidadora de sua irmã mais nova. Suas notas são baixas e ela está sendo pressionada a se transferir para uma escola técnica e aprender um ofício. Sua mãe (Binta Diop) trabalha em tantos empregos que ela nunca está por perto, e Marieme tem que responder a seu irmão (Cyril Mendy), que é francamente abusivo. Marieme é uma garota doce e tímida.

Um dia, três tipos durões de Rizzo, reclinadas nas arquibancadas, a convocam. Suas motivações não são claras no início. Marieme parece muito mais jovem do que essas garotas glamourosas, todas usando longas tranças retas, colares dourados idênticos e batom vermelho. 


Essas três garotas são Lady ( Assa Sylla), a líder do grupo, e as duas subalternas bem-humoradas, Fily (Mariétou Touré) e Adiatou (Lindsay Karamoh). Elas precisam de uma "quarta" para completar seu bando.

Marieme entra na dinâmica: as quatro garotas correm, fazem compras, reservam quartos de hotel e comem pizza. A gangue de garotas não inicia Marieme em um mundo perigoso de drogas e sexo. Não, as meninas a iniciam em um mundo de pertencimento, de conversa fiada divertida, um ambiente onde ela pode se soltar, experimentar maquiagem e um penteado diferente e um pouco de identidade


A vida é dura lá fora, e as meninas estão cientes disso. Há caras do tipo cafetão começando a mostrar interesse neles, circulando como tubarões. Há pais e irmãos julgadores, que envergonham as meninas por crescerem, por quererem esticar um pouco as asas, sexualmente.

Marieme começa a namorar, provisoriamente, um garoto que ela conhece desde sempre, chamado Ismaël (Idrissa Diabaté). Suas cenas juntas oferecem um espaço doce onde ambos podem se permitir ser ternos, em contraste com a dureza fechada exigida em seu mundo maior.

O que interessa a Sciamma são os "momentos". O épico jogo de futebol feminino em câmera lenta da abertura. Os closes repetidos da nuca de Marieme o tempo todo, quebrando Garotas  em "capítulos" não oficiais. Em Garotas há cenas de luta e uma hilária excursão de minigolfe, além de muitos lembretes dolorosos de que não, eles não serão deixados em paz, o mundo não pode deixar as meninas em paz.


Uma cena de obra-prima vem na metade, tão poderosa em sua representação de alegria e liberdade compartilhadas que desencadeia ecos em torno dela que continuam pelo resto do filme. As meninas roubaram vestidos bonitos e reservaram um quarto de hotel onde podem passar a noite, talvez ir a um clube mais tarde com seus bens roubados. Há uma sensação de alegria no momento, e as quatro se levantam e começam a dançar juntas ao som de “Diamonds” de Rihanna. A luz é de um azul profundo, e as garotas estão pulando e rindo e amando a grandiosidade uma da outra por quase toda a música. 


A adolescência é uma época de crescimento e mudança, de experimentar novas identidades, ver qual se encaixa melhor. As garotas “atingem a maioridade” assim como os garotos, mas muitos filmes assumem a atitude de que é mais perigoso para as mulheres experimentarem. Não é que Sciamma adoce os perigos que estão por aí. É que ela está mais interessada em como as garotas descobrem as coisas e a maneira como elas podem lidar caso algo dê errado.