terça-feira, 25 de junho de 2024

Cyndi Lauper: Let the Canary Sing(EUA, 2023)

Narrado pela própria Cyndi Lauper, o documentário, de Alison Ellwood, deixa a cantora brilhar contando sua própria história, desde a infância, até ao estrelato por meio de hits oitentistas, e um período de transição, para sempre buscar a reinvenção.

Quando Cyndi era jovem, a música enchia a casa. Nascida em Nova York em uma família siciliana otimista, músicas dos Beatles e musicais da Broadway enchiam a casa. Mas as dificuldades também viviam lá. Após o divórcio de seus pais, o novo casamento de sua mãe trouxe abusos. Cyndi buscou refúgio no canto, fazendo covers de ícones como Janis Joplin.


O avanço veio através de uma música não destinada a ela. Em 1979, "Girls Just Want to Have Fun" foi escrita, mas faltou coração. Quando seu produtor tocou a faixa, Cyndi sabia que havia falhado. Ao longo de meses, eles transformaram a música em um hino, mudando seu próprio significado. Cyndi infundiu diversão com poder feminista e visuais elaborados, proporcionando humor e força em partes iguais.


A balada "True Colors", de 1986, de Lauper, tornou-se um hino de autoaceitação, quando a AIDS assolava a comunidade LGBTQIA+. Suas letras soam verdadeiras hoje, uma prova do dom de Cyndi para criar canções que elevam. Ela a escreveu para seu irmão, mas seu significado se expandiu para incluir todos que buscavam afirmação. 


A diretora Alison Ellwood utiliza uma mistura de técnicas cinematográficas para dar vida à jornada de Cyndi Lauper. Imagens de arquivo colocam os espectadores na primeira fila para performances vibrantes, depoimentos como os de Boy George agregam. Estes são justapostos com sequências animadas contemplativas que retratam a infância de Lauper. O contraste destaca como seu passado difícil alimentou seu sucesso futuro.


Quando a cantora recebeu o prêmio de Melhor Artista Revelação no Grammy na época, ela já tinha mais de 30 anos. Let the Canary Sing também fornece um pouco de visão sobre  a indústria da música como tal. Isso se aplica tanto ao tempo antes de sua descoberta, durante seu auge na década de 1980, e também aos anos posteriores.

É ainda mais simpático que o documentário também incorpore títulos menos conhecidos, incluindo o profundamente triste The World Is Stone, suas excursões posteriores ao gênero blues e country ou a canção Sally's Pigeons, que trata do tema do aborto e que mais tarde  ganhou maior importância novamente. Em geral, Ellwood deixa claro repetidamente que as músicas de Lauper não eram apenas cativantes, mas relevantes em muitos aspectos.


Outro destaque é Patti LaBelle, que se junta a Lauper para um dueto ao vivo de tirar o fôlego de "Time After Time". Suas vozes se entrelaçam lindamente quando o narrador Billy Porter compara a exibição a uma competição gospel. Essas apresentações únicas capturam a alegria e a intimidade da performance.


O documentário aborda o declínio comercial de Lauper após seu sucesso inicial. Ela discute os desafios em encontrar novos hits, mas continua dedicada ao seu ofício, conquistando sucessos como escrever Kinky Boots, para a Broadway, e ser premiada com um Tony. Embora breve em sua análise de um período recente, o filme reconhece a arte contínua de Lauper, apesar da mudança de gostos da indústria.



segunda-feira, 24 de junho de 2024

Levante (Brasil/Uruguai/França, 2023)

Um espírito potente  e combativo permeia, a estreia de Lillah Halla, uma celebração da irmandade queer diante do conservadorismo brasileiro. Sofia (Ayomi Domenica Dias), de dezessete anos, parece ter tudo certo. Como uma talentosa jogadora de vôlei, ela chama a atenção de um olheiro que lhe oferece uma bolsa patrocinada no Chile.

Além disso, um relacionamento próspero se desenvolve com sua companheira de equipe, Bel (Loro Bardot). No entanto, a sorte muda  quando Sofia descobre que está grávida. Ela decide interromper a gravidez, mas se depara com a dura realidade de que o aborto é ilegal no Brasil.

O contexto do time, um espaço majoritariamente "queer", com jogadoras trans e não-binárias , traz uma carga especial para o trauma de superar uma gravidez indesejada. Quando um grupo de extrema-direita, apoiadores de Bolsonaro, toma conhecimento de sua situação por meio de fofocas que circulam no bairro, a equipe se torna um núcleo de resistência feminina, um espaço de defesa mútua para uma série de questões específicas de gênero.

João (Rômulo Braga), o pai de Sofia, é apicultor. Através de sua profissão, ele encarna a ameaça inexplicável da destruição da natureza pelo governo brasileiro. Uma visão de um país imposto a mentes e corpos que faz da situação em Sofia uma questão puramente política.



O protesto contra o controle policial de corpos femininos e não-binários é relevante, comovente e empoderador, não importa o quão indigesto seja. E apesar dos elementos sombrios e frustrantes do filme, a estreia de Halla é um primeiro jogo maduro e agridoce em quadra.

Cheio de frescor, Levante é como seu título: um convite à revolta contra a injustiça de um Estado que interfere na intimidade das mulheres. O peso do bolsonarismo obviamente pende no filme que é uma reação epidérmica à sua intolerância. No entanto, ninguém carrega o rótulo de vítima.

Se os corpos nus nos chuveiros expõem sua diversidade para a câmera, sua presença não é objeto de debate. Nem a proximidade física entre Sofia e a melhor amiga Bel. O reconhecimento da comunidade LGBTQIA+ em toda a sua diversidade é uma necessidade natural aqui, sem alarde ou reivindicações. Nesta atmosfera de tolerância óbvia, onde ninguém é julgado pelo seu gênero, a pressão do Estado a que Sofia está sujeita parece ainda mais brutal e intolerável .


Contrafogo a um Brasil dominado pelo populismo, Levante se ergue com energia comunicativa contra a pressão de uma potência que quer impor uma visão religiosa retrógrada a toda a população. Embora o desgoverno já tenha deixado o poder, o filme de Lillah Halla é uma prova do impacto de seu tempo no país. Uma cicatriz profunda que funciona como um alerta e uma mensagem de esperança. Numa democracia, como no voleibol, todas as vitórias podem ser postas em questão.


domingo, 23 de junho de 2024

Maschile Plurale(Itália, 2024)

Três anos, após os acontecimentos do primeiro filme, Antonio(Giancarlo Commare) e Luca(Gianmarco Saurino) se veem pela primeira vez após a morte de seu melhor amigo Denis. Luca, que chegou ao fundo do poço, teve a sorte de conhecer Tancredi, seu atual namorado, enquanto Antonio se concentrou em seu trabalho, tanto que agora é um chef conhecido em uma patisserie.

É claro que ainda há uma relação especial entre os dois, mas Antonio confunde o carinho de Luca com algo mais e faz de tudo para arruinar seu relacionamento com Tacrendi(Andrea Fuorto). Será que Antônio aprenderá a se desprender do passado para vivenciar plenamente o que o futuro tem a lhe oferecer?


Seu histórico de namoro desde então tem sido irregular, pois toda a sua energia foi para desenvolver sua carreira. Um dia, Luca entra em seu café e os dois homens se reconectam. Luca passou por momentos difíceis nos últimos três anos e perdeu seu negócio de padaria. Ele agora é, no entanto, um jovem trabalhador bem-sucedido que trabalha em um refúgio para sem-teto LGBTQ, e está noivo de seu namorado Tancredi.

Antonio percebe que ainda tem sentimentos românticos por Luca, com que teve um caso poliamoroso, e no seu pior parte para destruir o relacionamento de Luca com Tancredi e conquistar seu coração.

O primeiro filme era mais sexy e atrevido, enquanto esse se concentra na tensão entre os homens, com uma ou outra sequência descamisados. Para ajudar e conquistar Luca, Antonio se oferece para entrar em uma parceria em sociedade com ele. Mas as coisas não saem exatamente como o planejado.


O diretor italiano Alessandro Guida criou uma sequência raramente bem-sucedida em Maschile Plulare. Estilo italiano por excelência, com ecos de Ferzan Ozpetek, emoções, cor e humor combinam com um belo elenco, fotografia, uma trama de várias camadas e uma trilha sonora suave para dar uma característica romântica.

Entre sentimentos, risos e emoções, o longa consegue convencer porque é capaz de juntar todo o registro que os relacionamentos e seus respectivos rompimentos trazem consigo, mas também a perplexidade de um garoto que dedicou toda a sua existência ao trabalho apenas para perceber que não tinha coragem suficiente para olhar ao redor e perseguir o que realmente precisava.


sexta-feira, 21 de junho de 2024

Queendom (EUA/França, 2023)

Para ê artista performátique Gena Marvin, sua casa se tornou o principal perigo para sua vida. O documentário que acompanha há quatro anos, entre 2019 e 2022, logo no início da invasão da Ucrânia que também se tornou uma ameaça para um certo número de jovens russos, justifica-se através dos seus figurinos escandalosos e criativos e em passeios a pé pelas ruas de Moscou perante o olhar curioso, mas também furioso, dos transeuntes.

Queendom, de Agniia Galdanova, apresenta-se, assim, como um retrato que se expande progressivamente para um olhar mais coletivo, sem que Gena Marvin se manifeste realmente como  ativista global representando um grupo de pessoas que não são aceitas em seu país, mas como uma reivindicação de sua identidade pessoal. Aos 21 anos, elu decidiu mostrar sua arte e não-binariedade sem medo: "Não me identifico com nenhum gênero ou orientação sexual. Mas também não tenho medo de nada." 


O documentário mostra algumas das atuações de Gena Marvin em gravações que ê tornaram popular nas redes sociais, mas que geralmente têm um fundo de opressão e solidão, em espaços vazios onde elu rasteja pela lama, ou em que anda perdide enrolade em fitas. E, no entanto, elu é reconhecide nos círculos artísticos, participando de uma sessão de fotos para a Vogue Rússia ou de um desfile de moda em que sua presença também desafia a beleza das modelos russas. 


Os momentos mais íntimos e frustrantes acontecem quando elu interage com seus avós, com quem fala ao telefone de Moscou ou quando volta para casa em Magadan, uma cidade de pescadores. Lá, elu  ajuda o avô no trabalho de pesca, mas também ouve novamente os comentários que mostram a incompreensão sobre o tipo de vida que leva ou como está constrangendo sua família.

Na realidade, parece haver um profundo sentimento de amor por parte dos avós, uma espécie de resignação que, no entanto, especialmente por parte do avô, é cheia de reprovações, mesmo que tentem ser afetuosas. A única vez que Gena realmente expressa medo é quando a invasão da Ucrânia está prestes a acontecer e elu tenta obter um visto para deixar a Rússia antes de ser convocade, ciente de que "entrar para o exército significa morte para mim". 


Queendom captura a situação de uma geração de pessoas LGBTQ+ enquanto Galdanova observa Gena em casa e em público. A diretora fez uma bela produção com muito amor pela imagem dos figurinos insanos que Gena faz e veste. Para ela, o documentário é sobre amor, resistência e compaixão. Uma vez em Paris, a emoção vem à tona. Ouvindo os resmungos do avô e depois conversando com a avó, elu percebe que não consegue viver sem eles, pois são os únicos que sabem quem elu é.



Spark(EUA, 2024)

Dirigido por Nicholas Giuricich, Spark tem um grande ponto positivo a seu favor, ele não usa a narrativa LGBTQIA+ tradicional, e sim a do loop temporal. Aaron (Theo Germaine) se vê revivendo o mesmo dia: sendo acordado pelu  amigue e colegue de quarto Dani (Vico Ortiz), indo em uma festa de aniversário com um belo estranho, Trevor(Danell Leyva), e transando com ele. O que parece desencadear o ciclo é o sexo.

Outro aspecto bastante positivo é que o filme mostra Germaine como uma estrela trans e não-binárie interpretando um personagem que compartilha o que significa se sentir confortável na própria pele enquanto explora os corpos de seus colegas na tela e navega pelas leis da atração.


Os loops temporais de Aaron em Spark são acionados durante cenas de sexo com Trevor, frequentemente quando um deles aumenta a paixão para ficar um pouco mais áspero. O que permanece constante são os esforços de Aaron para maximizar o loop temporal, descobrindo os gostos e desgostos de Trevor para seduzi-lo.


À medida que aprendemos sobre Trevor, ele se torna mais atraente. Spark se encaixa em algum lugar entre um romance e um filme de gênero, é preciso dizer que a apresentação naturalizada de personagens trans e não-bináries é muito bem vinda.



quinta-feira, 20 de junho de 2024

QUEM QUER QUEER



De 26/06 a 03/07 acontece no Rio de Janeiro, nos cinemas do Estação,  a mostra Quem Quer Queer. São mais de 20 obras selecionadas para compor um rico catálogo de representatividade, dentre mais e menos conhecidas pérolas do cinema LGBTQIAPN+. Vem conferir a programação

Programação (Estação NET Botafogo 1):


Quarta, 26/06:

21h - Orlando, Minha Biografia Política


Quinta, 27/06:

14h - Teorema

16h - Caravaggio

17h55 - Colegas de Classe

19h15 - Nunca Fui Santa

21h - Cidade dos Sonhos


Sexta, 28/06:

11h - Orlando, Minha Biografia Política (NET Rio)

14h - A Lei do Desejo

16h - O Funeral das Rosas

18h05 - Tangerina

19h55 - E Sua Mãe Também

22h - Pink Flamingos

23h59 - Crash: Estranhos Prazeres


Sábado, 29/06:

11h - O Funeral das Rosas (NET Rio)

14h - Nunca Fui Santa

15h45 - Lírios D’Água

17h40 - Blue

19h55 - Mistérios da Carne

22h - Paris Is Burning

23h59 - Ligadas pelo Desejo


Domingo, 30/06:

14h - Cidade dos Sonhos

16h50 - Batguano

18h25 - Priscilla, a Rainha do Deserto

20h30 - O Segredo de Brokeback Mountain


Segunda, 01/07:

14h30 - Caravaggio

16h25 - Blue

18h50 - A Lei do Desejo

21h - A Bela da Tarde


Terça, 02/07:

14h - E Sua Mãe Também

16h20 - Teorema

18h15 - Lírios d’Água

20h - Orlando, Minha Biografia Política


Quarta, 03/07:

14h - Tangerina

15h50 - Mistérios da Carne

18h - Batguano

19h40 - Colegas de Classe

21h - Filmes Queer em Super-8 na Paraíba

Quinta, 04/07:

21h -  Novos Filmes Queer

Sexta, 05/07:

21h -  Toda Noite Estarei Lá

Programação (Estação NET Gávea):

Sábado, 06/07:

14h30 - Ligadas Pelo Desejo, das Irmãs Wachowski, com 105 min.

16h35 - Nunca Fui Santa, de Jamie Babbit, com 84 min.

18h30 - Crash: Estranhos Prazeres, de David Cronenberg, com 100 min. 20h30 - Cidade dos Sonhos, de David Lynch, com 147 min. VALORES: 16 reais a unidade das sessões regulares. 18 reais os Filmes da Meia-Noite e as matinês. Pacotes de ingressos (7 ingressos a 12 cada e 14 ingressos a 11 cada) disponíveis na bilheteria local do Estação NET Botafogo.



Becoming Karl Lagerfeld (França, 2024)

Vagamente baseado na biografia Kaiser Karl, de Raphaëlle Bacqué, publicada logo após a morte de Lagerfeld, em 2019, Becoming Karl Lagerfeld apresenta um exame muito bem fundamentado do homem mais lembrado por seus cabelos brancos, rabo de cavalo e icônicos óculos escuros.

É aqui que conhecemos o ambicioso freelancer que estava desesperado para deixar sua marca, forjando rivalidades ferozes e emaranhados românticos ao longo do caminho. No centro de tudo está o hipnotizante retrato de Daniel Brühl como o enigmático jovem Karl.

A série cobre aproximadamente dez anos da vida de Lagerfeld, bem no auge de sua carreira como designer para Chloé e Fendi, antes de seu trabalho com a Chanel transformá-lo no Karl Lagerfeld que lembramos hoje. Mas Becoming Karl Lagerfeld não está interessado nesse aspecto de sua vida, pelo menos não nas minúcias dele. Em vez disso, a série se concentra em relacionamentos interpessoais,


A atração não se esquiva dos aspectos mais pesados de seu envolvimento com Yves Saint Laurent (Arnaud Valois, de 120BPM). A história explora a rivalidade florescente, mas tensa, de Karl e Yves, enquanto ambos buscavam chegar ao topo e definir a era através de seus designs. A competição só foi intensificada pelo carinho que ambos passaram a desenvolver pelo mesmo homem, Jacques de Bascher(Theodore Pellerin). Como Karl continuou seu romance com Jacques, apesar de inúmeros obstáculos, isso colocou ainda mais tensão em seu relacionamento com Yves. 


O design de produção, de Jean Barrasse, é bastante glamouroso. Não faltam a alta-costura colorida dos anos 70 ou o estilo moderno, mas marcante, característico do próprio Lagerfeld. No entanto, a série de televisão francesa, criada por Isaure Pisani-Ferry, Jennifer Have e Bacqué, usa todo esse glamour e beleza como fachada, revelando os impulsos mais sombrios e isolados do designer. A incrível trilha sonora funciona como um cronômetro dos anos.


O desempenho sensível de Daniel Brühl humaniza Karl Lagerfeld sem descartar suas arestas mais afiadas. Entendemos as inseguranças e os muros defensivos por trás de sua persona distante. Mesmo momentos que poderiam mexer com julgamentos, como o tratamento dado aos rivais, tornam-se mais perdoáveis em seu devido contexto. A série acompanha como sua natureza protegida evoluiu em uma indústria implacável.


Brühl e Theodore Pellerin compartilham uma tremenda química na tela, eletrizando até mesmo os momentos apáticos de seus personagens. Seus olhares saudosos e trocas agridoces ressoam com emoção reprimida.


Ainda há espaço para uma narrativa bastante profunda e o estudo de personagem de Lagerfeld, que está quase desesperadamente se esforçando para triunfar, escondendo-se, mascarando-se e isolando-se, porque enfim, tinha um estilo peculiar.


quarta-feira, 19 de junho de 2024

Tudo o que Você Podia Ser (Brasil, 2023)

A amizade pulsa no coração de Tudo o que você podia ser, de Ricardo Alves Jr., que faz referência à canção de Milton Nascimento em seu título. O roteiro, de Germano Melo, com uma boa dose de improviso, é íntimo e cru, e traz um novo olhar sobre as narrativas LGBTQIA+ para a tela. “As origens são misturar realidade e ficção, com um elenco vivendo um pouco sua vida mas também uma fábula sobre ela, essa é a origem do projeto”, de acordo com o diretor. 

O roteiro foi elaborado a partir de histórias e vivências do próprio elenco, que estrutura as cenas enquanto o motor da construção do filme. “Tem um procedimento muito teatral, da sala de ensaio, de improvisação, diálogos que a gente mesmo cria, enquanto atrizes, dramaturgas, roteirista…”, completa Bramma Bremmer.


O longa acompanha o último dia de Aisha em Belo Horizonte, uma despedida que se desenrola na companhia de suas melhores amigas: Bramma, Igui e Will. Através das interações cotidianas entre as personagens, o filme oferece um retrato afetuoso da família acolhida, onde cada personagem corresponde a um espaço de vivências muito próprias.

Pinta, colocação, maquiagem, e uma linguagem muito específica, o pajubá, servem como pano de fundo para tratar temas como comunidade, HIV, afeto e sexualidade.  Alguns diálogos foram improvisados no set, partindo de indicações da direção e do roteirista Germano Melo. “Como ela vai chegar nessa questão está na base do improviso dela. O roteiro não está no modelo tradicional, mas constrói uma estrutura dramática onde cada personagem tem suas questões, tem seu drama, tem seu ponto de virada”, refere o diretor.



Como um filme de processo, Tudo o que Você Podia Ser, combina perfeitamente bem, e trata de temas autobiográficos com naturalidade, política e história. “Narrativas de pessoas HIV positivas sempre foram muito conectadas com a morte e com a tristeza, mas hoje qualquer pessoa que faz o tratamento vai se tornar indetectável. É importante falar isso e trazer uma história de vida”, revela Bramma.

Outro aspecto, é que o longa retrata Belo Horizonte, como poucas vezes vimos no cinema, como uma personagem. Em tom quase documental, a fotografia, de Ciro Thielmann, traz cenas gravadas em diferentes bairros e regiões da cidade, como Aglomerado da Serra, Bonfim, Centro, Lagoinha e Santa Tereza, construindo diferentes imagens desse espaço urbano.


A cumplicidade desses personagens em seus momentos compartilhados reafirmam o conceito de que a família é aquela que escolhemos, a que acolhe. É o registro de um tempo. E esses são questionamentos que o filme gera, mas que em um tom muito intimista, também celebra a amizade e a liberdade de se expressar e viver como quiser e puder.


A Sessão Vitrine Petrobras, que é o projeto da Vitrine Filmes em parceria com a Petrobras, está fazendo possível a distribuição desse filme. A Sessão Vitrine Petrobras  tem uma distribuição diferenciada, que permite que filmes brasileiros cheguem a um público que nem sempre teria acesso à produção nacional independente. Colaborou Marco Gal.

19 DE JUNHO - DIA DO CINEMA NACIONAL



Desde os tempos remotos das chanchadas com Oscarito e Grande Otelo, caracterizados com roupas femininas, já havia uma certa representatividade queer, porém, ela só começou a ser levada a sério mesmo a partir da década de 1960, com personagens mais matizados. Não é uma lista de favoritos, embora goste de todos, mas uma cronologia da representatividade LGBTQIA+, no cinema nacional, dos personagens marginalizados à crítica política, para celebrar a data de hoje.


terça-feira, 18 de junho de 2024

O Estranho (Brasil/França, 2023)

Como no clássico do cinema nacional Iracema - Uma Transa Amazônica(1975), o progresso tomado pelo homem está no centro de O Estranho. Dirigido por Flora Dias e  Juruna Mallon, o filme tem como principal cenário o Aeroporto de Guarulhos (SP), um símbolo de avanço, por onde circulam diariamente mais de 35.000 pessoas, e um monumento do mundo globalizado, mas também um marco do agressivo processo de colonização e ocupação de território. 

As personagens de Alê(Larissa Siqueira) e Silvia(Patricia Saravy) trabalham no aeroporto. Pertencentes ao estrato mais baixo das classes sociais, não se sabe ao certo o quanto de sangue nativo corre em suas veias. Entretanto, ambas as mulheres, circulam o ambiente mesmo em momentos de folga. Brincam de correr por uma aldeia que não existe mais e contemplam a natureza como ser superior.


Filmado ao longo de seis semanas, O Estranho mistura um interesse plural, o universo do aeroporto e o território de Guarulhos, com disposições das diretoras, como a ancestralidade indígena, as religiões de matrizes africanas, personagens e histórias profundas de pessoas encontradas ao longo da pesquisa: “uma pesquisa cinematográfica sobre como o processo de autoconhecimento individual e de ativação da memória ancestral se conjuga com a busca por território e a construção de paisagem” afirma Flora Dias.


Radical em termos de linguagem, o filme é ambientado na Guarulhos de hoje e do passado. O longa é um grande feito por ter a função de retratar vivências indígenas e trabalhar bem o debate e com respeito, ainda que com um orçamento limitado. “Cada minoria precisa contar a história”, defende diretora Flora Dias.


Com meditações políticas e uma história de amor queer, as diretoras propõem um filme mutável, capaz de questionar as promessas de progresso, dissecar o discurso colonial e, ao mesmo tempo, evitar o didatismo. A aldeia, o terreiro, são lugares bastante horizontais, com locais inclusive indicados por um babalorixá. “Toda essa preocupação a gente teve com todo mundo que colocou o seu corpo no filme", completa Flora.


Ganhador do Queer Lisboa, como filme de arte, o longa não nega suas raízes conceituais. É um filme que debate diversos assuntos, mas ainda assim não deixa de apresentar um relacionamento sáfico no centro. Essa construção das personagens não está num lugar de debate e sim naturalizado entre elas e a comunidade mais próxima. Aqui, a sexualidade não é questionada, ela simplesmente acontece.


Assim como Alê, o cenário também é um personagem central dentro da narrativa. O aeroporto, como representante da modernidade e descaracterizador da natureza. As memórias e o futuro dela e de seus companheiros estão permeados por uma questão comum: rastros de um passado em um território em constante transformação.



 Colaborou Stefano Maximo.

sábado, 15 de junho de 2024

Nosso Verão Daria um Filme(To kalokairi tis Karmen, Grécia, 2023)

Da Grécia vem o provocante Nosso Verão Daria um Filme, de Zacharias Mavroeidis, com um delicioso senso de subversão. Não faltam luxúria e drama de relacionamento, mas a amizade platônica no centro é o motor que faz o longa acelerar.

Os melhores amigos Demóstenes (Yorgos Tsiantoulas) e Nikitas (Andreas Labropoulos) passam o dia em uma praia de nudismo queer de Atenas, onde apreciam as rochas sob o sol, a bela água e o cruising rolando. Enquanto isso, eles discutem suas memórias de um verão recente e debatem transformá-lo em um roteiro para a estreia de Nikitas, no cinema.


O roteiro de Mavroeidis e Fondas Chalatsis traz uma qualidade lúdica para a tela, listando as "regras de ouro do roteiro" em uma exploração metalinguística da narrativa. Demóstenes e Nikitas tentam configurar pontos da trama a partir de situações da vida real. No entanto, a vida não não tem roteiro,


Após seu ato inicial, onde a cadela Carmen chega como mero catalisador simbólico das emoções contraditórias de Demóstenes, o filme muda um pouco do ritmo fantástico inicial à medida que oscila entre os dois períodos de tempo, sempre retornando ao processo de escrita do episódio contemporâneo, em paralelo com lições de vida que eles expressam enquanto escrevem.


O longa não é uma comédia de gargalhadas, mas tece momentos engraçados e alguns de vergonha alheia. Comparações com Rotting in the Sun, são inevitáveis, já que ambos são ambientados em uma praia de nudismo e usam da metalinguagem.


O sexo é uma parte importante dessa expedição, que o obriga os protagonistas a confrontarem seu futuro e o que realmente querem da vida. Yorgos Tsiantoulas, reforça seu status de Deus Grego em cenas de tirar o fôlego. Nosso Verão Daria um Filme reconfigura a comédia romântica sendo deliciosamente sexy e abordando identidade queer, amizade e as inseguranças que vêm com o questionamento do seu lugar no mundo.


Este não é o tipo de estudo de personagem que é brutal e sombrio, mas sim uma exploração emocionante e cativante do processo de chegar a um acordo com seus defeitos e o crescimento da autoconsciência.