Como no clássico do cinema nacional Iracema - Uma Transa Amazônica(1975), o progresso tomado pelo homem está no centro de O Estranho. Dirigido por Flora Dias e Juruna Mallon, o filme tem como principal cenário o Aeroporto de Guarulhos (SP), um símbolo de avanço, por onde circulam diariamente mais de 35.000 pessoas, e um monumento do mundo globalizado, mas também um marco do agressivo processo de colonização e ocupação de território.
As personagens de Alê(Larissa Siqueira) e Silvia(Patricia Saravy) trabalham no aeroporto. Pertencentes ao estrato mais baixo das classes sociais, não se sabe ao certo o quanto de sangue nativo corre em suas veias. Entretanto, ambas as mulheres, circulam o ambiente mesmo em momentos de folga. Brincam de correr por uma aldeia que não existe mais e contemplam a natureza como ser superior.
Filmado ao longo de seis semanas, O Estranho mistura um interesse plural, o universo do aeroporto e o território de Guarulhos, com disposições das diretoras, como a ancestralidade indígena, as religiões de matrizes africanas, personagens e histórias profundas de pessoas encontradas ao longo da pesquisa: “uma pesquisa cinematográfica sobre como o processo de autoconhecimento individual e de ativação da memória ancestral se conjuga com a busca por território e a construção de paisagem” afirma Flora Dias.
Radical em termos de linguagem, o filme é ambientado na Guarulhos de hoje e do passado. O longa é um grande feito por ter a função de retratar vivências indígenas e trabalhar bem o debate e com respeito, ainda que com um orçamento limitado. “Cada minoria precisa contar a história”, defende diretora Flora Dias.
Com meditações políticas e uma história de amor queer, as diretoras propõem um filme mutável, capaz de questionar as promessas de progresso, dissecar o discurso colonial e, ao mesmo tempo, evitar o didatismo. A aldeia, o terreiro, são lugares bastante horizontais, com locais inclusive indicados por um babalorixá. “Toda essa preocupação a gente teve com todo mundo que colocou o seu corpo no filme", completa Flora.
Ganhador do Queer Lisboa, como filme de arte, o longa não nega suas raízes conceituais. É um filme que debate diversos assuntos, mas ainda assim não deixa de apresentar um relacionamento sáfico no centro. Essa construção das personagens não está num lugar de debate e sim naturalizado entre elas e a comunidade mais próxima. Aqui, a sexualidade não é questionada, ela simplesmente acontece.
Assim como Alê, o cenário também é um personagem central dentro da narrativa. O aeroporto, como representante da modernidade e descaracterizador da natureza. As memórias e o futuro dela e de seus companheiros estão permeados por uma questão comum: rastros de um passado em um território em constante transformação.
Colaborou Stefano Maximo.
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