terça-feira, 19 de agosto de 2025

Jódete Jorge (Espanha, 2025)

“Jódete Jorge” é uma minissérie espanhola com três episódios de aproximadamente 20 minutos. criada por José Antonio Valera. A trama segue Adrián (Jaime Riba), um trintão emocionalmente abalado após uma ruptura, que descobre estar apaixonado por seu melhor amigo e colega de quarto, Jorge (Eduardo de Rodas). A situação se complica com segredos, um vídeo comprometedor gravado por Charo (Cristina Acosta), uma dominatrix amiga do duo, e um escândalo político iminente.

Com uma pegada sexy, especialmente na introdução, a série mistura humor ácido com elementos de thriller urbano. A trama aborda questões cotidianas da vida gay, como o ato de ‘passar um cheque’, e a complexidade dos sentimentos e os dilemas morais, utilizando diálogos afiados e situações inusitadas para explorar os conflitos internos dos personagens.

No centro da narrativa está o romance entre Adrián e Jorge, que desafia normas sociais e pessoais. A série explora temas como identidade, desejo reprimido e as complicações que surgem quando sentimentos profundos se misturam com amizade e convivência diária. O relacionamento deles serve como um espelho para as complexidades das relações 

A direção de José Antonio Valera, com fotografia de Dani Lisón, captura a essência de Madrid com cenas que transitam entre a intimidade dos apartamentos e as lindas ruas da cidade. As salas de BDSM, embora não sejam o foco principal, adicionam uma camada de fetiche ao universo da série, refletindo a diversidade de experiências dentro da comunidade queer.

“Jódete Jorge” apresenta uma narrativa envolvente, embora alguns momentos sejam previsíveis. A química entre os protagonistas e o desenvolvimento dos personagens são pontos fortes, mas a trama poderia aprofundar mais em certos aspectos para enriquecer a experiência do espectador, o que se entende devido a sua brevidade


A atração é uma minissérie que combina humor, drama e elementos de thriller para explorar as complexidades das relações humanas e da identidade queer. Com uma direção sólida e atuações convincentes, oferece uma perspectiva fresca e irreverente sobre os dilemas contemporâneos enfrentados por muitos gays 30+.

segunda-feira, 18 de agosto de 2025

Eu Não Sou Tudo o Que Eu Quero Ser (Jeste nejsem, kým chci být, República Tcheca/Eslováquia/Áustria, 2024)

Pré-selecionado para representar a República Tcheca no Oscar 2026, “Eu Não Sou Tudo o que Eu Quero Ser” celebra Libuše Jarcovjáková, apelidada de “Nan Goldin da Tchecoslováquia”. O filme revela sua coragem em expor experiências íntimas, sociais e políticas, transformando sua própria vida em arte visual de impacto.

Tasovská combina fotos cruas, diários e gravações caseiras para traçar a Tchecoslováquia sob o prisma da marginalidade. Sexo, LGBTQIA+, comunidades de Roma e trabalhadores migrantes são documentados como atos de resistência. Cada frame materializa corpo, desejo e identidade em uma afirmação política e estética que desafia o apagamento.


A edição transforma registros visuais em cinema vivo: sobreposições, cortes rítmicos e sons ambientes dão ritmo à narrativa, criando um fluxo emocional contínuo. A voz de Libuše reverbera na primeira pessoa, fazendo da memória algo sensorial, uma pulsação que envolve o espectador e torna o passado presente.


O documentário percorre décadas e cidades, Praga, Berlim, Tóquio,  mostrando uma trajetória de resistência e reinvenção. O olhar íntimo da câmera captura tanto a efervescência da juventude quanto o peso da história, costurando política, afetividade e desejo em um mapa emocional que transcende fronteiras.


Exibido na Berlinale Panorama 2024, o filme colecionou prêmios como o Innovation Award (Festival du Nouveau Cinéma), Fierté Montréal e reconhecimento de júri e público em Lyon, além do Czech Lion de Melhor Documentário. A trajetória do filme reflete não apenas o talento de Tasovská, mas a universalidade do olhar de Libuše.


“Eu Não Sou Tudo o Que Eu Quero Ser” pulsa com coragem e sensibilidade. Entre câmeras, diários e imagens, o documentário recusa o apagamento histórico e afetivo, oferecendo um testemunho queer que é ao mesmo tempo íntimo e político, lembrando ao espectador: a arte e a memória existem, aqui e agora.

Cama de Tatame (Brasil, 2025)

 

Com apenas nove minutos, "Cama de Tatame", de Otávio Oliveira, revela uma delicadeza rara ao filmar o cotidiano queer com sotaque cearense, filtrado por uma câmera que privilegia silêncios, gestos e pequenas cumplicidades. O protagonista, interpretado por Jefferson Vieira, encontra na amiga vivida por Jéssica Katiane um espaço de afeto que dispensa grandes diálogos: são olhares, presenças e uma rotina compartilhada que constroem a intimidade.

A estética, inicialmente casual, logo se mostra pensada com rigor. Planos que captam o ato de lavar louça ou uma faxina não são meros registros, mas ferramentas narrativas que traduzem sensações e vínculos. O mesmo vale para a sequência de videogame, que rompe a atmosfera mais contemplativa e injeta um frescor POP à narrativa, sem quebrar seu eixo emocional.

O filme também se abre a um registro mais sensual e reflexivo ao abordar o uso de aplicativos de pegação. Aqui, a montagem cria uma transição para um território quase onírico, onde o desejo é menos performado e mais imaginado, expandindo a dimensão subjetiva do personagem.

A direção de Otávio Oliveira se mostra hábil em todos os quadros. há cuidado, composição e proximidade, sem que nada soe artificial. A fotografia de Luiz Francisco, além de solar e intimista, oferece momentos oníricos, como na cena de sexo simbolizada por uma luta, revelando um diálogo entre o corpo, o desejo e a fantasia. A trilha sonora brinca com contrastes improváveis, misturando referências de Lucha Libre com Zé da Guerrilha.

Belamente fotografado, "Cama de Tatame" é mais do que um recorte de vidas, é um exercício de presença, que entende o cinema queer como um espaço onde a intimidade é política e o afeto, revolucionário. Ao transformar gestos banais em imagens carregadas de sentido, o curta encontra beleza naquilo que o mundo costuma não notar.

domingo, 17 de agosto de 2025

CatBoy (Espanha, 2023)

 "CatBoy", curta de 31 minutos dirigido por Xaho (pseudônimo audiovisual de Cristian Sitjas), mergulha nos territórios do desejo e da identidade queer. A trama acompanha Marc, que após sofrer ataques racistas e homofóbicos em um app de encontros, é levado pela amiga Cacao a uma Ballroom em que descobre novas possibilidades de afeto, liberdade e pertencimento. Entre as luzes e performances, ele se aproxima de Leo, num jogo de atração marcado por hesitação e intensidade. O filme se distingue pelo modo como incorpora cenas de sexo explícito, filmadas com sofisticação e beleza plástica, evitando o voyeurismo e integrando a intimidade à própria dramaturgia. Com elenco formado por Javier des León, Cacao Díaz e Gorgeous Jayce Gucci, "CatBoy" articula estética de clube, tensão emocional e celebração da cultura ballroom. Reconhecido em festivais queer internacionais, é uma obra que não teme cruzar as fronteiras entre arte, erotismo e política do corpo.

DRIVE NOS COMENTÁRIOS

Queens of Drama (Les Reines du Drame, Bélgica/França, 2024)

Alexis Langlois estreia em longa-metragem com um musical que é ao mesmo tempo audacioso, exagerado e profundamente queer. A narrativa acompanha o romance turbulento entre a doce estrela pop Mimi Madamour (Louiza Aura) e a icônica punk Billie Kohler (Gio Ventura), narrado pelo alter ego digital glamuroso Steevyshady (Bilal Hassani). A estética camp, por vezes quase delirante, exibe uma saturação visual que funciona como afirmação política, ocupando, visibilizando e celebrando as narrativas queer em sua máxima intensidade. Esse manifesto visual dialoga com clássicos como “Jubilee”, de Derek Jarman, e “Velvet Goldmine”, de Todd Haynes. É como se Jacques Demy tivesse tomado um café fortíssimo com “Hedwig and the Angry Inch” e decidido fazer um sci-fi pop-punk cantado até o último decibel.

No centro dessa explosão visual está “uma história de amor apaixonada e conflituosa”, um relacionamento que atravessa décadas, da glória televisiva de Mimi até o universo underground de Billie. O recurso à estratificação temporal (de 2005 a 2055) revela a evolução cultural e social da identidade queer, mas mantém uma ambiguidade poética entre o pop mainstream e o punk marginal, nunca deixando de lado a intensidade melodramática.

Embora o excesso seja parte da marca registrada de Langlois, é nos momentos sensoriais,  como os números musicais ou as sequências em que a câmera adota a perspectiva subjetiva, que o filme encontra sua força. Cenas como a aproximação de Mimi e Billie durante um show, quando o mundo ao redor se dissolve em pulsação, ou a explosão dos fãs que as separa no palco, mostram a habilidade do diretor em harmonizar estética e emoção sem cair na mesmice.


Além do dramalhão musical, “Les Reines du Drame” apresenta um olhar crítico sobre o star system, o fandom exacerbado e o papel das redes sociais na construção de identidades. A cultura pop é ressignificada sob uma perspectiva queer, o kitsch, o “has-been” e o artificial são reafirmados como símbolos de resistência e pertencimento.


O filme costura influências de Brian De Palma,  “Phantom of the Paradise” e “Body Double”, à tradição camp queer, passando por melodramas clássicos e chegando à ousadia de “Hedwig and the Angry Inch”, de John Cameron Mitchell. Também é possível sentir ecos dos curtas de Langlois, como “The Demons of Dorothy” e “Terror, Sisters”, em seu humor ácido e na construção de universos queer fantásticos. Essa mistura transforma o longa numa fábula pop-queer que transita entre subcultura e cultura de massa com desenvoltura.


Apesar da inventividade, há momentos em que a homogeneização estética suaviza os contrastes narrativos, o choque entre punk e pop, passado e futuro, mainstream e underground por vezes perde impacto na uniformidade visual. Ainda assim, o filme entrega um desfecho onírico e poderoso, com uma espécie de Éden subterrâneo de divas esquecidas, que sela brilhantemente o dilema de Langlois: a efemeridade queer diante dos sistemas dominantes. A participação de Asia Argento como Magalie Charmer é um presente extra para o público cinéfilo. “Les Reines du Drame” confirma que Langlois é uma voz inédita e necessária no cinema queer contemporâneo.


sábado, 16 de agosto de 2025

Os Demônios de Dorothy (Les démons de Dorothy, França, 2021)

Alexis Langlois é um cineasta que parece ter feito um pacto com o exagero  e, felizmente, cumpre cada cláusula com glitters, sangue falso e melodrama camp. Em “The Demons of Dorothy”, ele constrói uma fábula delirante sobre a própria luta por espaço no cinema queer, transformando a frustração criativa em um espetáculo de horrores e fantasia pop. A protagonista, Dorothy ( Justine Langlois), é uma diretora lésbica que sonha em realizar filmes trash e fabulosos, mas é pressionada a fazer algo mais “normal” para agradar produtores. O que poderia ser apenas uma sátira do mercado cinematográfico se torna, nas mãos de Langlois, um manifesto contra o apagamento das vozes queer dissidentes.

Visualmente, o filme é um carnaval de estímulos: cores saturadas ao ponto da psicodelia, maquiagem over-the-top, cenários que parecem colagens de papelão propositalmente artificiais e figurinos que misturam a estética de videoclipes de Lady Gaga com o underground parisiense. Langlois filma como quem monta um palco de cabaré infernal, tudo é calculadamente excessivo e delicioso de assistir. A fotografia brinca com filtros neon e iluminação dramática, evocando ao mesmo tempo o cinema de John Waters e os mundos mágicos e artificiais de Jacques Demy.


A atuação de Justine Langlois é a engrenagem desse caos: um misto de fragilidade e explosão emocional, como uma diva punk que recusa abaixar a voz. Ao lado dela, personagens grotescos e sedutores surgem como criaturas saídas de um pesadelo kitsch, verdadeiros “demônios” que podem tanto destruir quanto inspirar.

Narrativamente, o filme abraça a metalinguagem. Dorothy está presa num ciclo onde a indústria tenta podar a ousadia queer, e cada aparição demoníaca é como uma encarnação da censura, da normatividade e do autocontrole forçado. Mas Langlois não entrega um discurso frio: ele faz um show grotesco, divertido e libertador. Ao rir e se assustar, o espectador se reconhece nesse campo de batalha entre a arte autêntica e as expectativas limitantes.


O filme também flerta com o terror e o gore, mas nunca de maneira “realista”. O sangue é rosa, os gritos são caricatos, e a violência tem sabor de paródia, como se fosse um musical sangrento que não teme ser ao mesmo tempo infantil e erótico. É nesse exagero que reside sua potência política: mostrar que o queer não precisa se ajustar para ser levado a sério, que o bizarro e o belo podem coexistir sem pedir desculpas.


“The Demons of Dorothy” é um delírio punk-fada sobre perseverar como artista queer num mundo que tenta pasteurizar cada voz. Langlois transforma frustração em arte e nos lembra que, às vezes, para enfrentar a mediocridade, só mesmo convocando nossos demônios mais fabulosos.

sexta-feira, 15 de agosto de 2025

Terror, Sisters (França, 2019)

“Terror, Sisters” é uma ode anárquica à rebeldia queer em sua forma mais direta e explosiva. Aqui, Alexis Langlois imagina um grupo de garotas trans e travestis que decidem tomar para si a narrativa, armadas, literalmente, contra uma sociedade que as quer invisíveis. Entre os protagonistas está o magnético Felix Maritaud (“Sauvage”, “120 BPM”), que empresta ao filme sua energia crua e vulnerável, criando um personagem que transita entre o humor e o tesão

O filme é um ataque frontal à complacência: rápido, sujo e sem tempo para concessões. Langlois filma como se cada take fosse o último, com cortes abruptos, música alta e enquadramentos que alternam entre a frontalidade teatral e closes sufocantes. É como assistir a um híbrido de Gregg Araki com um noticiário pós-apocalíptico transmitido de uma boate underground.


A estética visual é tão marcante quanto o enredo: cabelos coloridos, lábios metálicos, jaquetas de vinil e uma paleta cromática que pisca como um letreiro neon prestes a estourar. As ruas por onde as “irmãs do terror” passam parecem cenários de videogame, e o caos urbano vira pista de desfile para uma revolução performática. 


O elenco inteiro entende que está numa ópera punk: as atuações são carregadas de humor ácido, olhar desafiador e entrega física. Há um prazer evidente em destruir símbolos normativos, seja pela palavra, pelo figurino ou pela encenação. Maritaud, especialmente, injeta uma camada de humanidade que impede o filme de ser apenas uma colagem de fúria, há dor real e desejo de conexão sob o verniz da anarquia.


O ritmo, embora caótico, é coreografado como um número musical que se recusa a acabar. Langlois sabe que o impacto vem do acúmulo: cada cor, cada grito, cada olhar para a câmera reforça a sensação de que estamos participando de um levante queer, mais do que assistindo a um filme. E é exatamente essa fusão entre estética e militância que torna “Terror, Sisters” tão necessário.


Ao final, ficamos com a certeza de que Langlois está criando não apenas filmes, mas pequenas bombas estéticas e políticas. “Terror, Sisters” é mais do que uma ficção: é um grito coletivo, um convite para que a arte queer abrace seu lado perigoso e incendiário.



Antes que me Esqueçam, meu Nome é Edy Star (Brasil, 2024)

Edy Star não foi apenas pioneiro do glam no Brasil, foi um caleidoscópio de expressões artísticas e representatividade baiana. O documentário, de Fernando Moraes,  traça sua história com estrutura clássica, que mescla imagens de arquivo, fotos e a voz do próprio artista, além de depoimentos potentes de Rogéria, Jane Di Castro, DJ Zé Pedro, Caetano Veloso, Zeca Baleiro e Maria Alcina, formando um retrato íntimo e coletivo. 

A naturalidade com que Edy aborda sua sexualidade, abrindo até mesmo seu arquivo pessoal de fotos de homens, expõe o quanto ele foi à frente do seu tempo. Caetano, ao recordar, comenta com humor: “Era como um gay assumido, só que em 1958” , e ri. Essa sinceridade transborda nas telas, tornando visível a Bahia como berço de coragem e arte queer desde cedo.

A montagem inteligente conecta seu rock’n’roll irreverente à explosão tropicalista e à força iconoclasta de Raul Seixas, além de evidenciar sua rara presença na indústria fonográfica e consistência nos palcos noturnos. Edy transitou do sucesso público na Praça Mauá e Ipanema até sua consagração em boates como a Gayfieira, firmando-se como artista da noite. 


O filme celebra performances emblemáticas, como Edy cantando com Zeca Baleiro no estúdio, e exibe sua presença em “The Rocky Horror Picture Show" e programas da Globo. Mas não se permite romantizar: aborda também o impacto devastador da epidemia de AIDS no declínio de sua carreira, compondo um retrato em que brilho e tragédia se entrelaçam.

Mesmo sem citar temas como o uso de drogas, o documentário pulsa com ecos de suas experiências internacionais, sua temporada na Espanha, palcos e fotos ao lado de Almodóvar e Rossy de Palma , que ele mesmo referencia no filme ao interpretar “Soy lo Prohibido”. A retomada com Cabaré Star (2017) reafirma sua vitalidade e a justiça de sua reinvenção como artista queer rarefeito. 


“Antes que me esqueçam, meu nome é Edy Star” é mais do que uma homenagem: é uma aula de música, uma lição de vida e um passeio enérgico pela contracultura brasileira. O filme celebra uma era underground marcada por irreverência, que vai da Bahia ao mundo, reafirmando Edy como arquétipo queer brilhante e resistente. Ao abraçar sua própria história com irreverência e gerar memória, o documentário resgata sua presença em tempo real, em vida. O artista faleceu em abril de 2025, após o lançamento do filme no Festival Mix Brasil.



quinta-feira, 14 de agosto de 2025

O Mar (El Mar, Espanha, 2000)


"El mar" abre em meio à Guerra Civil Espanhola, quando três crianças testemunham um massacre brutal em Mallorca. Esse trauma inaugural não apenas marca o destino de cada um, mas também serve como espinha dorsal da narrativa, moldando os conflitos emocionais e morais que se seguirão. Augsti Villaronga constrói essa abertura com violência frontal, mas sem exploração gratuita, estabelecendo desde o início que seu cinema não teme confrontar o espectador com a crueza dos horrores históricos.

A trama principal se desenvolve anos depois, em um sanatório para tuberculosos, espaço que condensa tensões sociais, religiosas e sexuais. A enfermidade física se torna metáfora da deterioração espiritual, e o isolamento geográfico funciona como uma prisão que amplifica os desejos e as culpas dos personagens. A fotografia de Jaume Peracaula, com paleta fria e iluminação claustrofóbica, reforça a sensação de enclausuramento.


Ramallo (Roger Casamajor), Manuel (Bruno Bergonzini) e Francisca (Antònia Torrens) formam o núcleo dramático. Ramallo é carnal e desafiador, Manuel é devoto e reprimido, e Francisca transita entre a devoção religiosa e a empatia humana. Villaronga não os trata como arquétipos planos, mas como seres em constante fricção, cada encontro entre eles é uma colisão de mundos internos, movidos por lembranças e feridas que não cicatrizaram desde a infância.

A relação entre Ramallo e Manuel carrega uma tensão homoerótica intensa, marcada pelo contraste entre desejo e repulsa. Villaronga apresenta essa dimensão queer sem romantização fácil, colocando-a sob o peso da moral católica e das feridas de guerra. O desejo masculino, aqui, não é libertador, mas um território minado por culpa e medo, onde cada gesto de aproximação parece arriscar a implosão emocional dos personagens.

A figura de Manuel encarna a luta entre fé e carne, absorvendo a doutrina católica como lente para interpretar seu desejo. Villaronga explora a religiosidade como força tanto opressora quanto estruturante, e não poupa o espectador de imagens que confrontam diretamente o dogma,  crucifixos, confissões e punições corporais se entrelaçam em um imaginário de culpa persistente. O filme sugere que, para alguns, a salvação e a destruição podem vir da mesma fonte.
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"El mar" é um filme difícil, não apenas pelo conteúdo gráfico, mas pela intensidade com que expõe fragilidades humanas. Villaronga equilibra poesia e brutalidade, criando um trabalho que exige do público mais do que simples contemplação: requer envolvimento e disposição para atravessar zonas de desconforto. Ao completar 25 anos, a obra se mantém como um testemunho poderoso de como o cinema pode tratar a memória histórica, a sexualidade e a morte com honestidade dolorosa e, paradoxalmente, beleza visual.

Solids by the Seahorse (Tailândia, 2023)

“Solids by the Seashore" marca a estreia em longa-metragem de Patiparn Boontarig. Ambientado em uma cidade costeira do sul da Tailândia, o filme constrói um universo sensorial onde o contraste entre estruturas rígidas, como os muros de contenção contra a erosão, e a fluidez da natureza refletem os dilemas dos personagens. A direção de Boontarig se dedica ao minimalismo emocional e ao lirismo visual em prol de uma narrativa contemplativa e atmosférica 

 A metáfora do muro, tanto físico quanto psicológico, é central na narrativa, a construção do mar, destinada a proteger, causa erosão em outro ponto, de forma semelhante, os muros internos que erguemos para nos proteger podem nos corroer por dentro. Essa analogia contínua entre meio ambiente e vida emocional confere ao filme uma dimensão universal, mesmo inserido em um contexto cultural específico.


Shati, interpretada por Ilada Pitsuwan, é uma jovem muçulmana de um contexto conservador, que se vê dividida entre os valores que herdou e os desejos emergentes . Já Fon, vivida por Rawipa Srisanguan, é uma artista urbana que retorna ao litoral para montar uma exposição. A química entre elas é sutil e potente, não se trata de uma figura caricatural, mas de uma mulher complexa que, tanto quanto Shati, tem suas próprias batalhas internas.

O filme explora o enlace entre duas mulheres dentro de um ambiente tradicionalmente hostil a relações entre pessoas do mesmo sexo. A escolha de Boontarig de equilibrar esse tema delicadamente, “sem criticar, sem tornar tudo confortável demais”, faz parte de um esforço consciente de respeitar a subjetividade e o contexto, trazendo autenticidade ao conflito de Shati.

Na parte final, os contos fantásticos da avó de Shati começam a se manifestar no mundo real, seja através de fenômenos estranhos, seja como uma presença onírica, diluindo a linha entre sonho e realidade . O filme se fecha com uma ambiguidade proposital no destino de Shati, se ela se entrega a uma vida que busca segurança ou avança rumo à seu caminho.

"Solids by the Seashore" é um estudo delicado sobre restrições, pessoais, culturais, ambientais, e sobre os gestos que tentamos fazer para nos libertar. Com um ritmo contido, atua mais como uma memória poética do que como uma trama tradicional, e suas imagens persistem na mente como uma brisa que sussurra a necessidade de quebrar muros, de engolir ondas, de buscar sentido naquilo que nos une à natureza e aos desejos mais profundos.

quarta-feira, 13 de agosto de 2025

Odd Fish (Ljósvíkingar, Islândia, 2024)

 

"Odd Fish", de Snævar Sölvason, reflete uma evolução positiva ao focar em comunidades menores, como os Fiordes Ocidentais da Islândia. Em vez de centros urbanos, o filme integra a experiência trans de Birna (Arna Magnea Danks) à vida cotidiana, sem torná-la o único foco, promovendo uma representação mais natural e inclusiva.

Hjalti (Björn Jörundur Friðbjörnsson) e Björn, que transiciona para Birna, são amigos de infância que gerenciam um restaurante de frutos do mar. Hjalti, rústico e tradicional, contrasta com o reservado Björn. A decisão de manter o restaurante aberto no inverno coincide com a transição de Björn para Birna, desafiando a dinâmica da amizade.

Escrito por Sölvason e Veiga Grétarsdóttir, uma mulher trans, o longa oferece um retrato sensível da transição de gênero. O roteiro destaca nuances culturais, como a falta de vocabulário trans em islandês, e equilibra humor seco com drama terno, capturando a jornada de aceitação em uma vila remota e machista.

As atuações em "Odd Fish" são notáveis. Friðbjörnsson brilha como Hjalti, cujas falhas de comunicação criam conflitos, mas revelam um coração genuíno. Danks entrega uma performance poderosa, especialmente quando Birna abraça sua identidade trans, trazendo autenticidade e vigor à narrativa.

Filmado nos cenários gélidos dos Fiordes Ocidentais, o filme usa a cinematografia de Birgit Guðjónsdóttir para evocar isolamento e beleza. A trilha sonora de Magnús Jóhann complementa o tom caloroso, enfatizando a necessidade de conexão em uma comunidade onde todos devem coexistir.

Apesar de sua força, "Odd Fish" tem um pequeno deslize: a transição de Birna ocorre de forma abrupta, e um desenvolvimento mais gradual teria enriquecido a narrativa. Ainda assim, o filme destaca o que une amigos e vizinhos, promovendo empatia e aceitação, com a jornada de Hjalti como foco transformador.


Invasão (Invasión, Espanha, 2024)

"Invasión", de David Martín Porras, é uma ficção científica espanhola com uma abordagem inovadora e minimalista ao gênero de invasões alienígenas. Adaptado da peça teatral homônima de Guillem Clua, autor de "Smiley", o filme entrelaça três histórias paralelas em um cenário apocalíptico, explorando temas profundos como confiança, vulnerabilidade e o amor como salvação em meio ao caos.

A trama se desenrola durante uma invasão extraterrestre que submete a Terra, focando em três núcleos distintos: dois prisioneiros de lados opostos presos em uma cela, três soldados espanhóis refugiados em uma fábrica abandonada e um casal de cientistas isolados com um alienígena cativo. Cada segmento constrói tensão através de diálogos intensos e interações claustrofóbicas, forçando os personagens a confrontar inimigos internos e externos. O roteiro de Clua, fiel à sua origem teatral, prioriza o desenvolvimento psicológico sobre efeitos especiais grandiosos.

A direção de David Martín Porras se entrega à elegância visual e pela economia de recursos, transformando limitações orçamentárias em forças estilísticas. A cinematografia de José Martín Rosete captura paisagens costeiras de Tenerife com uma luz luxuriante, evocando uma atmosfera de liberdade em meio ao confinamento

As performances são cativantes e elevam o filme a um patamar de excelência emocional. Claudia Salas e Fran Berenguer entregam interpretações hipnóticas como protagonistas de um dos segmentos, capturando interações complexas cheias de vitalidade. Sofía Oria, Álvaro Rico e Andrés Gertrúdix brilham como os soldados, transmitindo a efervescência cultural pós-invasão, enquanto María Adánez e Carlos Fuentes formam um casal de cientistas convincente, explorando temas de superação e criatividade

"Invasión" oferece uma camada sutil e alegórica de presença queer, alinhada ao histórico de Porras e Clua em narrativas LGBTQIA+. Embora haja dois personagens claramente gays na trama, os temas de "o outro" como inimigo e a necessidade para construir laços ressoam com experiências queer de marginalização e aceitação. David Martín Porras, diretor de obras como a rom-com gay "Smiley", infunde o filme com uma sensibilidade progressista, onde o confinamento forçado entre opostos pode ser lido como metáfora para dinâmicas de identidade e desejo reprimido, especialmente no segmento dos prisioneiros, que ecoa Un Chan’t D”amour (1950).

O filme se sobressai pela profundidade emocional e pela mensagem humanista de amor como saída para conflitos. É uma reflexão sofisticada sobre a efemeridade da vida e a importância da empatia. Através de um sci-fi introspectivo, Porras confirma seu talento em criar obras cheias de vitalidade e resistência cultural.

terça-feira, 12 de agosto de 2025

QUEER LION 2025

A 82ª edição do Festival Internacional de Cinema de Veneza, de 27 de agosto a 6 de setembro de 2025, sob a direção de Alberto Barbera, promete também destacar narrativas LGBTQIA + com o Queer Lion Award. São 10 filmes na competição principal, com o grade vencedor sendo anunciado em 05 de setembro.

Estrany Riu

Filmes em Competição:

After the Hunt - Luca Guadagnino (EUA, 139'): Uma professora universitária enfrenta dilema ético e pessoal quando um aluno talentoso acusa um colega, desenterrando um segredo sombrio de seu passado. Com Julia Roberts, Ayo Edebiri e Andrew Garfield. (Exibição Especial)


En el Camino - David Pablos (México, 93'): Em um mundo dominado por transportadores mexicanos, dois homens desenvolvem um amor proibido, lutando contra um ambiente hostil e um estilo de vida árduo. Com Victor Prieto Simental e Osvaldo Sanchez Valenzuela.


Estrany riu - Jaume Claret Muxart (Espanha/Alemanha, 103'): Dídac, de 15 anos, pedala o Danúbio com a família e encontra Alexandre, cuja presença misteriosa transforma sua vida e abala os laços familiares, gerando dúvidas.


Dark Rooms - Mads Damsbo, Laurits Flensted Jensen, Anne Sofie Steen Sverdrup (Dinamarca/Alemanha/Taipei, 35'): Uma instalação imersiva explora a sexualidade humana em três espaços, revelando histórias íntimas de desejo, trauma e transformação. Venice Immersive.


Arkoudotrypa - Stergios Dinopoulos, Krysianna B. Papadakis (Grécia): Em uma vila grega, Argyro e Anneta enfrentam dilemas quando esta revela gravidez, levando a uma busca por uma caverna mítica e revelações pessoais.


La gioia - Nicolangelo Gelormini (Itália, 108'): Gioia, professora solitária, forma vínculo proibido com aluno Alessio, cuja busca por redenção ameaça destruir a relação. Com Valeria Golino, Jasmine Trinca e Saul Nanni.


En El Camino

Anoche Conquisté Tebas - Gabriel Azorín (Espanha/Portugal, 106'): António e Jota exploram banhos termais romanos, onde as águas misteriosas os levam a confessar sentimentos profundos e o medo de perder a amizade.


Gorgonà - Evi Kalogiropoulou (Grécia/França, 95'): Em cidade dominada por refinaria, Maria enfrenta poder masculino e sua história familiar com a chegada de Eleni, cantora que muda seu destino.


100 Nights of Hero - Julia Jackman (Reino Unido, 90'): Em um mundo opressivo, Cherry e Hero desenvolvem uma relação proibida, desafiando normas enquanto lutam contra um destino imposto por um regime tirânico. Com Emma Corrin.


Constantinopoliad - Sister Sylvester, Nadah El Shazly (Reino Unido/Grécia, 55'): Uma instalação sonora coletiva baseada no diário de Kavafis, explorando fantasmas eróticos e históricos em um livro artesanal.


Filmes Fora de Competição:

L'etranger


L'étranger - François Ozon (França, 120'): Adaptação de Camus sobre Meursault, um homem em crise moral, envolvido em dilemas pessoais e um evento trágico. Com Benjamin Voisin.


Marc by Sofia - Sofia Coppola (EUA, 97'): Documentário que revela a vida reservada e o trabalho criativo de Marc Jacobs, capturado entre Nova York e Paris.


Daroon-e-Amir (Inside Amir) - Amir Azizi (Irã, 103'): Um jovem em Teerã pondera emigrar, carregando memórias de uma tragédia familiar e a decisão de ficar ou partir.


Agon - Giulio Bertelli (Itália/EUA/França, 100'): Histórias de três atletas femininas nos Jogos Ludoj 2024, explorando os impactos de competição e tecnologia em suas vidas.


Além de shows de Drag, exposiçoes, djs o evento também exibe curtas e filmes restaurados na seção Venice Classics: “Matador”, de Pedro Almodóvar, “Aiqing wansui” de Tsai Ming-liang e” Kagi” de Kon Ichikawa são alguns deles. É com certeza um dos grandes radares da arte e da cinefilia!

After The Hunt

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