“Um Fio de Baba Escarlate”, de Carlos Conceição, é uma granada estilística disfarçada de fábula. Este segundo longa do cineasta português, após o introspectivo "Serpentário (2019)", mergulha no universo do giallo italiano com a ousadia de quem entra, sem bater. Sem diálogos, em 60 minutos, o filme constrói uma ode visual ao desejo, à morte e à idolatria, evocando mestres como Dario Argento e Mario Bava, mas com um pé firme na contemporaneidade. A citação inicial de Ted Bundy já avisa: aqui, beleza e horror são cúmplices. É um conto de fadas torto, que ri dos tabus enquanto seduz o espectador.
A fotografia de Vasco Viana, colaborador recorrente de Conceição, é o grande destaque do filme. Filmado em 4:3 com uma paleta que mistura neons e sombras, cada quadro parece uma pintura pré-rafaelita dopada de psicodelia. A câmera objetifica e venera, especialmente o corpo de Matthieu Charneau, transformando-o num ícone pop e num monstro ao mesmo tempo. É um exercício de estetização tão marcante que a narrativa quase vira coadjuvante, como nos melhores momentos de “Suspiria” (1977).
Matthieu Charneau, muso-fetiche de Conceição, encarna Cândido, um serial killer cuja beleza é tão letal quanto seus impulsos. Ele estrangula com cabos de celular e beija vítimas com uma ternura pervertida, numa dança de sedução e violência. Quando um vídeo viral de seu “ato de bondade” — um beijo dado a uma suicida (Joana Ribeiro) — o catapulta à fama, Cândido vira um Cristo de Instagram, cortejado por Balenciaga e Versace. Conceição subverte a iconografia religiosa, expondo como a sociedade fetichiza assassinos carismáticos, de Bundy a influencers modernos.
O filme presta homenagem ao giallo, mas não se curva a ele. A estrutura minimalista — sem diálogos, com mortes estilizadas e uma lógica onírica — ecoa “Seis Mulheres para o Assassino" (1964), de Mario Bava, mas Conceição injeta uma sátira afiada. A ascensão de Cândido como celebridade instantânea debocha da cultura de likes, enquanto as vítimas, todas mulheres interpretadas por Joana Ribeiro, questionam o lugar feminino no gênero. É como se o diretor dissesse: “Sim, amo Argento, mas vou virar essa fórmula do avesso”. O resultado é um neo-giallo que equilibra reverência e provocação, com um toque de ‘teatro de exagero’ que Conceição admite adorar.
A subversão de “Um Fio de Baba Escarlate" também passa por sua lente queer. A objetificação de Cândido, com closes que lambem seu corpo, inverte o olhar masculino típico do giallo, onde mulheres eram o alvo. Há uma tensão erótica em cada morte, cada beijo, cada selfie, que desafia normas de gênero e moralidade. Conceição, que já flertou com essas ideias em “Coelho Mau” (2017), aqui radicaliza, transformando o assassino num fetiche ambulante. O filme não julga, apenas expõe: somos nós, espectadores, que idolatramos o monstro, e essa cumplicidade é desconfortavelmente deliciosa.
No fim, “Um Fio de Baba Escarlate” é um soco estético que não se preocupa em explicar tudo, mas deixa um eco impossível de ignorar. Sua força está em evocar sensações — tesão, repulsa, fascínio — sem segurar a mão do público. Carlos Conceição, com sua trajetória de "Carne (2010)" a "Nação Valente (2022)", um mergulho alegórico na Guerra Colonial que brilhou em Locarno, firma-se como uma voz única no cinema português. Num cenário muitas vezes preso a narrativas tradicionais, ele é um respiro fresco, cravejado de audácia, que provoca e seduz o cinema com um romantismo queer e surrealista. Acharam que não ia trazer um Cristo subversivo nessa Páscoa? Conceição ri por último, e a gente aplaude.