quinta-feira, 20 de novembro de 2025

Two Black Boys in the Paradise (Reino Unido, 2025)

“Two Black Boys in Paradise”, de Baz Sells, transforma um poema de Dean Atta em uma pequena epifania visual sobre amor negro e queer. Em nove minutos, a animação em stop motion reivindica a ternura como gesto político, construindo um romance entre Edan (19) e Dula (18) que se afirma no limiar entre o sensorial e o poético. O curta nasce como leitura cinematográfica do poema homônimo incluído na coletânea “There Is (Still) Love Here”, e preserva tanto sua cadência literária quanto sua pulsação política, traduzindo em textura, luz e movimento um desejo que recusa ser disciplinado pelo mundo exterior.


A trama acompanha Edan e Dula enquanto eles se aproximam, se tocam, se olham com a intimidade de quem descobre que o amor entre garotos negros também pode ser um lugar de alegria e orgulho. O “paraíso” do título não é uma geografia literal, mas um estado construído com a recusa da vergonha, onde homofobia e racismo perdem força diante do desejo de existir plenamente. Esse paraíso se revela no gesto simples de caminhar de mãos dadas em um mercado, uma cena que nasce de um episódio pessoal de Jackson e que se torna aqui um dos símbolos mais potentes de visibilidade pública.


Há fricção constante entre o mundo hostil e o espaço afetivo que eles criam, e o filme não suaviza essa tensão. A presença policial em uma das cenas reforça a vigilância direcionada a corpos negros queer, produzindo uma quebra de atmosfera que evidencia o peso dessas estruturas. Ainda assim, “Two Black Boys in Paradise” insiste em devolver a Edan e Dula o direito à sensualidade e ao prazer, incluindo uma cena sexual tratada com beleza e cuidado, fruto da decisão da equipe de não retirar dos personagens aquilo que tantos filmes ainda lhes negam.


A estética em stop motion é parte essencial dessa força. Tudo no curta parece pulsar com as marcas da mão que molda e anima, criando um espaço tátil e onírico onde o real se entrelaça à fantasia. Os corpos dos personagens carregam textura, peso e presença, e os cenários retomam a lógica do cinema-poema, alinhando visualidade artesanal com a dimensão lírica do texto original.

“Two Black Boys in Paradise” é uma celebração carregada de sensibilidade política, onde a animação stop motion emerge como linguagem para imaginar liberdades ainda negadas. Ao transformar o poema de Atta em imagem, o filme oferece a Edan e Dula um lugar que tantas histórias lhes tiraram, um espaço de sonho, desejo e beleza que afirma que existir em amor também é resistir. 

DRIVE COM O CURTA NOS COMENTÁRIOS

E Seu Corpo é Belo (Brasil, 2024)


"E Seu Corpo é Belo”, de Yuri Costa, é um curta que pulsa como um coração em brasa, vibrando entre terror, romance e musical. Ambientado nos bailes Black do subúrbio carioca nos anos 1970, o filme cria uma atmosfera hipnótica em que Carlos (João Pedro Oliveira) reencontra Tony (Paulo Guidelly). É um retorno tão íntimo quanto explosivo, marcado por mágoas antigas e por um desejo que insiste em sobreviver ao tempo. A narrativa, compacta, cria uma pequena cartografia afetiva de um período decisivo para a cultura Black brasileira, resgatando o espaço desses bailes como territórios de pertencimento e resistência.

A estética do filme é um mergulho direto no imaginário blaxploitation, evocando ícones como “Shaft” e “Foxy Brown” por meio da luz, do figurino e dos enquadramentos. É um cinema que carrega o corpo como afirmação cultural e política, ecoando também o afro-surrealismo que Yuri Costa mobiliza em sua filmografia. A trilha sonora reforça essa imersão com potência: Luiz Melodia em “Pérola Negra”, Milton Nascimento em “Pelo Amor de Deus” e Cassiano em “Onda” funcionam como guias emocionais que aproximam o público do calor e da melancolia desse universo. Nada é meramente decorativo, tudo é dramaturgia.


O filme abraça o terror como uma metáfora de fúria e ferida. Não se trata de monstros tradicionais, mas de espectros emocionais que se acumulam em corpos negros e queer historicamente marcados pelo apagamento. Ao transformar mágoa afetiva em atmosfera de horror, Costa se alinha a tradições politizadas do cinema negro, aproximando-se de obras de Marlon Riggs na forma como convoca estética e política como uma mesma força. O medo aqui é uma linguagem para tensões que nunca foram nomeadas, mas sempre estiveram presentes na experiência dessas comunidades.


A dimensão queer é estruturante e irredutível. O reencontro entre Carlos e Tony não é apenas uma história de amor interrompido, mas uma reencenação da violência simbólica que cerca corpos dissidentes dentro da própria cultura Black da época. O curta cria um romance que nunca escorrega para o melodrama fácil, priorizando camadas de desejo, culpa e sobrevivência.


O elenco sustenta essa densidade com força. João Pedro Oliveira constrói um Carlos inquieto, preso entre orgulho e ferida, enquanto Paulo Guidelly dá a Tony uma mistura de charme e melancolia, compondo um personagem dividido entre o que viveu e o que teme revisitar. Dandara Lorena, em participação de apoio, amplia o universo musical e espiritual que envolve a narrativa.


“E Seu Corpo é Belo” condensa em 24 minutos uma estética vibrante, uma crítica social contundente e um gesto de memória que devolve centralidade à vivência Black e queer. É um curta que afirma beleza como resistência e terror como linguagem política, criando uma obra que ecoa muito depois de suas últimas imagens.


quarta-feira, 19 de novembro de 2025

O Filho de Mil Homens (Brasil, 2025)

 

“O Filho de Mil Homens” é uma adaptação do romance de Valter Hugo Mãe dirigida por Daniel Rezende, cuja sensibilidade visual e narrativa delimita o filme como uma fábula poética que revisita e expande conceitos profundos de família, identidade e afeto. A seu modo, Rezende costura contos paralelos não lineares que se entrelaçam para formar um panorama humano repleto de dor, resistência e ternura,  e é nessa teia que brota uma narrativa queer essencial.


No centro da história está Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador de 40 anos, solitário e imerso em sua própria culpa por não ter filhos. Seu desejo de paternidade não nasce de uma ambição social ou de legado, mas de algo visceral: ele sonha alto. A relação entre Crisóstomo e Camilo (Miguel Martines), um garoto órfão, é o fio condutor mais claramente queer do filme: um vínculo escolhido, não biológico, baseado no cuidado, no amor e na construção mútua. Esse laço desmonta expectativas tradicionais de paternidade, mostrando uma masculinidade sensível e transformadora, não autoritária, mas vulnerável. 


Além desse núcleo, o longa introduz outros personagens que enriquecem esse universo de margens. Há Antonino (Johnny Massaro), um jovem homossexual amplamente oprimido pela mãe religiosa e pela violência machista da vila. Sua presença revela, por meio de flashbacks e tensões silenciosas, as múltiplas pressões que sustentam a masculinidade tóxica e a homofobia internalizada. É notável como o filme maneja o erotismo queer. Há cenas de contemplação de corpos masculinos e até uma simbólica masturbação de Antonino representada por borboletas , uma escolha poética que articula desejo, repressão e liberdade de forma delicada, sem se render ao choque fácil.



Também merece destaque Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher marcada pela reprovação social e familiar, empurrada para um casamento de conveniência, com Antonino, vivendo em reclusão emocional. Sua trajetória de dor, abandono e recomeço dialoga com a do marido, mostrando que exclusão social, repressão sexual e crueldade moral afetam diferentes corpos e identidades. Por fim, há Francisca, mulher com nanismo, vivida por Inez Viana, um personagem que sofre com o capacitismo da comunidade, servindo como microcosmo para refletir discriminações sociais mais amplas.

Esteticamente, o filme conjuga realismo mágico com sensibilidade quase garciamarquiana. A natureza (o mar, as rochas, as paisagens da Chapada Diamantina) é fotografada por Azul Serra com uma beleza austera, evocando tanto força quanto vulnerabilidade. A narrativa sugere elementos fantásticos, como luzes etéreas ou uma “conexão extraordinária” entre Crisóstomo e os segredos enterrados da vila. Essa poética visual reforça a natureza fabulosa da história, transformando o cenário em personagem, e fazendo da água,  o mar, a pesca,  um elemento metafórico e transformador, símbolo de mudança, de ciclo e de purificação.


Narrativamente, apesar de contornos antológicos, “O Filho de Mil Homens” converge para um clímax comum, desafiando o espectador a lembrar que essas vidas fragmentadas são, na verdade, interligadas. Há sofrimento e violência,  machismo, homofobia, exclusão, , mas também um gesto de resistência: Crisóstomo, Antonino, Isaura, Camilo, Francisca, juntos, mostram que a reconexão é possível, que a família pode ser feita de muitas coisas, e que o amor pode nascer de uma escolha continuada.

Ao fim o sentimento que persiste é de esperança com delicadeza. A fábula de Rezende não promete que o mundo vai mudar magicamente, mas afirma que transformações íntimas são possíveis, que laços inventados têm tanta força quanto os biológicos, e que a família queer, comunitária e sensível pode ser uma resposta para a exclusão social. “O Filho de Mil Homens” é uma ode àqueles que resistem, que se acolhem, que sonham e reinventam e isso faz dele, no cenário do cinema queer contemporâneo brasileiro, uma obra de grande significância estética e política.


O Fim das Primeiras Vezes (El Fin de las Primeras Veces, México, 2025)


 “El Fin de las Primeras Veces” apresenta a chegada de Eduardo (Alejandro Quinta) a Guadalajara como um rito de passagem que mistura descoberta, desejo e uma juventude que começa a se ver livre das fronteiras da vigilância familiar. Aos 18 anos, vindo de uma pequena comunidade de Jalisco, ele se lança à cidade para prestar o exame da universidade, mas encontra algo muito maior que qualquer teste acadêmico, um repertório de experiências que inaugura sua vida adulta com suavidade e curiosidade.

Rafael Ruiz Espejo constrói sua estreia com uma atenção rara ao gesto e ao instante, permitindo que a improvisação guie a criação de personagens e atmosferas. Eduardo atravessa a metrópole como quem entra em um mundo paralelo, em um percurso que ecoa “Alice no País das Maravilhas”, encontrando figuras que lhe abrem portas para afetos, prazeres e pequenos abismos que fazem parte da formação de qualquer identidade que está germinando. Nada é grandioso, tudo é transformador. Mario (Carlos E. López Cervantes) surge como uma espécie de anfitrião improvável desse rito de passagem, alguém que descortina para Eduardo um território de liberdade que ele apenas intuía. Do encontro casual no banheiro nasce uma convivência imediata e calorosa, que o conduz para dentro de outra casa, outra família, outra forma de estar no mundo. Em poucas horas, Eduardo se vê aceitando convites que jamais faria em seu cotidiano rígido, movido por uma curiosidade que desgruda seu corpo das regras aprendidas e o empurra para experiências de prazer, afeto e pertencimento que ele mal sabia nomear.

O filme respira uma estética mutável que acompanha o próprio protagonista, começando pela inocência cálida da festa familiar, passando por espaços alucinantes como a loja de tatuagem e a boate, até alcançar tons de nostalgia que assinalam o fim desse ciclo iniciático. Essa variação cria um mosaico sensorial que traduz o modo como um jovem queer percebe o mundo quando está prestes a se reinventar, entre fascínio, confusão e encanto.

Ao escolher focar na leveza, Espejo se distancia de narrativas punitivas e apresenta uma identidade queer que floresce sem necessidade de justificativas. Eduardo se move pela cidade com uma curiosidade livre, descobrindo o desejo como algo natural e acessível, sem que o filme abandone a consciência dos riscos, mas sem transformar esses riscos em punição. O resultado é um retrato que transita entre o íntimo e o universal, permitindo que espectadores de diferentes contextos reconheçam essa travessia para o desconhecido.

“El Fin de las Primeras Veces” encerra seu percurso com uma sensação de retorno possível, como se cada encontro, cada toque, cada escolha vacilante tivesse reorganizado a forma como Eduardo se percebe no mundo. A jornada que começa como deslocamento geográfico se torna um processo de expansão interior, e o filme encontra sua força justamente ao acompanhar esse movimento com delicadeza, deixando que cada primeira vez reverbere no corpo e na memória do protagonista.


A Sapatona Galáctica (Lesbian Space Princess, Austrália, 2024)


“A Sapatona Galáctica” chega como um ar fresco e colorido no universo da animação adulta, escrita e dirigida por Leela Varghese e Emma Hough Hobbs, e protagonizada pela tímida mas determinada Saira (Shabana Azeez), que precisa atravessar a própria insegurança para resgatar a ex, Kiki (Bernie Van Tiel), das garras dos Straight White Maliens. O filme combina comédia, sci-fi e romance em 2D pop, e já se consagrou no circuito de festivais ao ser exibido em Berlim e ser a primeira animação a receber o Teddy Award, enquanto constrói um cânone queer que prefere a alegria à tragédia.

O roteiro abraça a lógica da magia e a reescreve em chave sáfica transformando a labrys real,  arma simbólica do universo do filme, em herança afetiva e política de Saira. A aventura tem gags visuais, referências a animes de "magical girls" como “Sailor Moon” e “Utena”, e uma vontade explícita de celebrar códigos queer, ao mesmo tempo em que discute autoestima e pertencimento.

“A Sapatona Galáctica” é um deleite cromático, com uma paleta que prefere o néon e o candy pop à paleta sóbria do realismo. A animação brinca com formas cartunescas e planos que reforçam o lirismo das cenas íntimas, sem perder o ritmo das sequências de ação. A direção de arte funciona em diálogo com a trilha, assinada em parte por Varghese, que intercala momentos folks e adesões pop, dando ao filme uma textura emocional que equilibra o riso e a melancolia.

Política e riso convivem de forma propositalmente desacomodada em “A Sapatona Galáctica”. Os antagonistas, chamados Straight White Maliens e encarnando uma crítica ao incelismo e ao ressentimento misógino, são tratados com uma mistura de demência cômica e diagnóstico social. A opção do filme por remediar agressões com conselhos queer e comédia é deliberada, e aponta para uma estética curativa que prefere reabilitar o universo narrativo do que transformar tudo em tragédia.


Há, claro, momentos em que a fórmula parece recorrer ao conforto, resolvendo conflitos com soluções narrativas relativamente fáceis, e essa doçura pode incomodar quem espera um ataque mais ácido às estruturas de poder. Ainda assim, a proposta de Hobbs e Varghese é outra: criar um refúgio lúdico que funcione como alternativa afetiva à escassez de representações alegres, e nesse exercício o filme acerta ao priorizar a reparação através do brilho, do humor, da animação e da solidariedade.


“A Sapatona Galáctica” se firma como uma fábula queer repleta de calor, uma obra que lembra que a visibilidade pode ser também festa, e que a revolução emocional pode começar com um gesto pequeno, uma risada compartilhada, um número musical. É um filme que sorri enquanto aponta feridas, que convida à celebração sem esquecer o trabalho de cura, e que expande o repertório de como se conta um amor lésbico heroico sem sacrificar o prazer.

terça-feira, 18 de novembro de 2025

Apolo (Brasil, 2025)


 “Apolo” nasce do encontro entre intimidade e urgência política. No longa que marca a estreia de Tainá Müller na direção, em parceria com Isis Broken, o cinema se aproxima da vida para acompanhar a gestação de uma criança e, ao mesmo tempo, a afirmação de uma família transcentrada que insiste em existir apesar das pressões externas. A câmera se aproxima de Isis e Lourenzo Gabriel, casal trans que enfrenta desde barreiras institucionais até os impactos cotidianos da transfobia.

É a partir da gestação de Apolo que o filme contorna debates ainda pouco representados na produção brasileira: paternidades trans, corpos grávidos que fogem da expectativa cisgênera e as dinâmicas familiares que emergem quando o mundo decide não reconhecer a legitimidade do outro.


Müller retorna às raízes audiovisuais que antecederam sua trajetória como atriz, recuperando uma sensibilidade poética que se mistura à observação documental em momentos de depoimento casualmente lembrando um videoclipe. Há algo de artesanal na maneira como o filme se constrói, acolhendo hesitações, pausas e momentos de intimidade com o mesmo cuidado com que registra os embates sociais que atravessam o casal. “Apolo” não se organiza em torno de um conflito dramático central, mas de um processo contínuo de afirmação,  um gesto político que passa pelo afeto, pela rotina e pelo desejo de construir um futuro possível.


Isis Broken, que divide a direção enquanto protagoniza sua própria história, costura o filme com um olhar de dentro. Sua presença articula a vulnerabilidade e a força de expor uma vivência que ainda sofre apagamento sistemático. Ao relembrar as dificuldades e o preconceito enfrentado pela família durante as filmagens, Isis reforça a dimensão coletiva do projeto: é um filme que assume a responsabilidade de visibilizar pautas urgentes, como maternidades e paternidades trans, e de ampliar o repertório de representações disponíveis no debate público.


A parceria com Lourenzo Gabriel, cujo corpo grávido é um dos núcleos simbólicos da narrativa, funciona como contraponto ao imaginário normativo construído historicamente em torno da gestação. “O pai está dando à luz e a sociedade não está preparada para isso” não é apenas uma premissa, mas o convite que o filme faz ao público: observar como um modelo familiar pode existir plenamente, mesmo quando tudo ao redor tenta questionar sua legitimidade.


Ao acompanhar a gestação de Apolo, o filme acompanha também o próprio parto de uma nova sensibilidade no audiovisual brasileiro. Uma sensibilidade que reconhece o afeto como parte da luta política e que enxerga na experiência trans não exceção, mas uma entre as múltiplas possibilidades de viver, criar e amar. Em seu todo “Apolo” é um documento importante, um filme que olha para o presente com franqueza e para o futuro com a coragem de quem sabe que família não é território de vigilância, mas de liberdade.

segunda-feira, 17 de novembro de 2025

Trago seu Amor (Brasil, 2025)


Em “Trago Seu Amor”, Claudia Castro mistura comédia romântica e fantasia de forma deliciosa e moderna, trazendo uma bruxa egocêntrica, Mia (Giovanna Grigio) que tem um poder inusitado: quem a beija se apaixona por ela, ou volta a amar a última pessoa por quem foi apaixonado. Essa premissa mágica se entrelaça com dramas afetivos reais quando Mia conhece Yuri (João Manoel), que ainda sente as dores do término com sua ex, Renê (Jê Soares). O conflito se intensifica quando Mia, em seu exercício de feitiçaria, acaba se apaixonando por Renê  e é aí que a história ganha camadas de desejo, ego e poder emocional.

A roteirista Letícia Fudissaku acerta ao tecer uma narrativa tanto leve quanto reflexiva. A magia não é apenas um artifício para criar situações cômicas: ela é metáfora para o poder do afeto e para a ambiguidade no desejo. Mia usa seu dom para se conectar com os outros, mas também para exercer controle emocional, o que revela muito sobre seu ego e suas próprias inseguranças. A relação entre Mia, Yuri e Renê se torna um triângulo amoroso menos tradicional, mais vulnerável e cheio de escolhas.

Além disso, há um arco gay bastante pintoso por meio de Ariel (Diego Martins), o que adiciona diversidade afetiva à trama. Sua presença, cheia de glamour e pinta, é um ato de visibilidade pop que insere a comunidade LGBTQIA+ no mainstream. Ele representa o valor da amizade não-romântica e da família escolhida como pilares de apoio, e é um componente essencial da "alma camp", fugindo do clichê do melhor amigo gay ao ter sua função validada pela estética e afeto, e não apenas pelo romance.


A estética do filme é pop, solar e moderna, exatamente o que se espera de uma comédia romântica com elementos de fantasia. A luz, o figurino e a direção de arte valorizam cores vibrantes e um clima místico sem exagerar no sombrio. A fotografia leve combina com o tom leve e ao mesmo tempo profundo da trama, reforçando a sensação de que estamos em um mundo real, mas com pequenas fissuras mágicas.


No elenco, Giovanna Grigio entrega uma Mia poderosa, mas também frágil por trás de visuais fabulosos, cativando quando está manipulando corações e quando se descobre presa aos próprios encantamentos. Jê Soares como Renê traz o interesse romântico. João Manoel como Yuri consegue transmitir a melancolia de quem ainda ama e teme se curar. A participação de Diego Martins amplia a narrativa, e um cameo de Cauã Reymond traz um toque folhetinesco à trama.


O tema do autoconhecimento corre em paralelo ao poder mágico: Mia aprende que feitiço não resolve tudo e que mexer com sentimentos alheios tem consequências. O filme usa a bruxaria como uma lente para explorar poder, apego emocional e responsabilidade afetiva  tudo isso de maneira lúdica, mas sem perder a profundidade. É uma reflexão sobre desejo, escolha e o que significa amar de verdade.


“Trago Seu Amor” dialoga com um momento interessante do cinema nacional, em que a fantasia ganha espaço para representar afetos diversos sem cair no exagero ou em estereótipos. Castro apresenta uma comédia romântica acessível, divertida e politicamente relevante, mostrando que o amor não convencional não é feitiçaria, mas uma verdade legítima.

domingo, 16 de novembro de 2025

Blue Moon (EUA/Irlanda, 2025)

Em “Blue Moon", Richard Linklater entrega uma meditação noturna sobre a dor de um gênio: o letrista Lorenz Hart (Ethan Hawke), numa noite decisiva,  31 de março de 1943, na festa de estreia de “Oklahoma!” revisita seus fantasmas no bar Sardi’s em Nova York. A narrativa se desenrola quase em tempo real: Hart, alcoolista, vulnerável, enfrenta a queda de sua parceria criativa com Richard Rodgers (Andrew Scott) enquanto lida com sua autoestima abalada e os demônios internos. 

A ambientação minimalista, grande parte do filme se passa dentro de Sardi’s, reforça a sensação de clausura emocional. Hart, assombrado pela auto estima, pelo alcoolismo e pelo abandono, observa com amargura o sucesso de Rodgers, incapaz de compartilhar plenamente daquela celebração. A direção de Linklater explora esse palco teatral como um confessionário melancólico, onde cada diálogo ecoa como uma canção não cantada.


Ethan Hawke entrega uma performance comovente. Ele se transformou fisicamente e adotou uma postura que o faz parecer  mais baixo, capturando a insegurança física e emocional do letrista. Sua entrega dialoga bem com o texto de Robert Kaplow, dando voz à agonia, ao humor cortante e à obsessão de Hart. 


“Blue Moon” aborda a identidade de Hart de forma sutil, mas significativa. Historicamente gay, ele é retratado com uma ambiguidade delicada: sua obsessão por Elizabeth Weiland (Margaret Qualley) aparece como parte de sua vida interior, mas não apaga sua atração e suas angústias mais profundas. A solidão, o auto-ódio e a repressão são tratados com empatia: Hart não é reduzido ao estigma, mas humanizado em toda sua complexidade.


Não raro o filme parece mais uma peça teatral em respeito à estrutura: há muito diálogo e introspecção, apoiados por uma cinematografia que privilegia enquadramentos íntimos e iluminação contida. Em momentos, a sensação de estar assistindo a um monólogo com acompanhamento musical reforça a ideia de que Hart vive em sua própria canção triste, uma melodia de gênio e desespero.


“Blue Moon" é uma obra comovente e honesta sobre talento, rejeição e identidade. Richard Linklater captura não só o declínio de um artista, mas também a solidão de um homem cuja vida pessoal não teve o mesmo sucesso de sua arte. A performance de Hawke, aliada ao estilo cinematográfico contido de Linklater, transforma a história de Lorenz Hart em uma reflexão universal sobre o custo emocional da genialidade, um tributo melancólico e luminoso à enigmática alma queer por trás de muitas canções inesquecíveis.

sexta-feira, 14 de novembro de 2025

A Keller Christmas Vacation (EUA, 2025)

Em “A Keller Christmas Vacation”, o diretor Nick Marck insere a tradição natalina da Hallmark em novos mares, literalmente. A bordo de um cruzeiro pelo rio Danúbio, três irmãos adultos, Cal (Brandon Routh), Dylan (Jonathan Bennett) e Emory (Eden Sher, aceitam o convite dos pais para uma viagem que promete reconciliação, mas começa marcada por silêncios e distâncias. Entre mercados de Natal e paisagens que deslizam pela janela, a travessia se transforma em uma jornada emocional sobre o que significa pertencer, perdoar e recomeçar.

O cenário europeu, captado em Viena, traz frescor aos filmes sazonais da emissora. O olhar turístico e aconchegante típico do canal funciona como uma amostra de afeto em trânsito. A cada parada, o filme se abre a novas experiências e revisita antigas feridas, equilibrando humor e melancolia com a leveza de quem entende o Natal não como milagre, mas como pausa possível. É ali, entre jantares em família e segredos compartilhados, que a narrativa revela o que há de mais humano nos personagens: a vulnerabilidade.


O ponto de virada está na presença de Dylan, vivido por Jonathan Bennett, o rei do Natal queer da Hallmark. Gay e em um relacionamento que se desfaz logo no início, ele carrega um dos arcos mais sensíveis da trama ao lado de William (Anand Desai-Barochia). Seu pedido de casamento recusado, acompanhado de um “não agora”, não é um gesto de rejeição espetacular, mas o início de um processo íntimo de autodescoberta. Ao longo do cruzeiro, o casal adiciona diversidade de forma natural, sem didatismo, reforçando que o amor LGBTQIA+ é tão universal quanto qualquer outro.


Marck encontra equilíbrio entre o sentimentalismo habitual da Hallmark e uma sinceridade visual que aproxima o público. A trilha sonora, o ritmo leve e as atuações de Routh, Desai-Barochia, Bennett e Sher constroem uma dinâmica familiar orgânica, em que convivência e redescoberta se misturam com doçura.


Em meio à neve, às luzes e às confissões, “A Keller Christmas Vacation” é uma farofa natalina que reafirma que o verdadeiro espírito do feriado não está nas decorações perfeitas, mas nas imperfeições que nos unem. É sobre reconhecer a fragilidade como força e entender que o amor, em todas as suas formas, continua sendo o gesto mais revolucionário da temporada.

quinta-feira, 13 de novembro de 2025

#300Cartas (Argentina/Reino Unido/Alemanha, 2025)

 

Em “300 Cartas”, o cineasta argentino Lucas Santa Ana propõe um mergulho íntimo nas ruínas do amor contemporâneo. A história acompanha Jero (Cristian Mariani) e Tom (Gastón Frías), um casal admirado por todos, até que, no aniversário de um ano de relacionamento, Jero retorna para casa e encontra apenas uma caixa com trezentas cartas. Tom desapareceu, sem explicações, sem despedidas, apenas deixando atrás de si um rastro de papel e silêncio. O gesto do ghosting, tão cotidiano e cruel, é aqui elevado à dimensão do trauma, da violência emocional e da autodescoberta.

À medida que lê as cartas, Jero revisita os escombros de um amor idealizado. Cada texto revela não apenas um Tom diferente, mas também as dinâmicas de controle e desigualdade que sempre estiveram ali, escondidas sob o verniz da paixão. Santa Ana transforma o romance em uma investigação sobre o poder, o abuso psicológico e a fragilidade afetiva, mostrando como a romantização pode mascarar relações profundamente tóxicas. O chamado “projeto Jero”, que dá título a uma das seções do filme, torna-se símbolo dessa obsessão pelo outro  e da maneira como o desejo, às vezes, se confunde com a necessidade de ser reconhecido.


A fotografia aposta em enquadramentos claustrofóbicos e numa paleta fria, quase asséptica, refletindo a solidão de Jero em meio a uma Buenos Aires contemporânea, onde a comunicação parece abundante, mas o afeto é rarefeito. A montagem, assinada pelo próprio Santa Ana, alterna presente e passado com fluidez, utilizando as cartas como gatilhos de memória e confissão. O resultado é um fluxo de lembranças que se sobrepõem, revelando um amor construído mais por idealizações do que por presença.


O elenco conduz a narrativa com sensibilidade. Cristian Mariani entrega um desempenho contido, em que o desespero se traduz em gestos mínimos, enquanto Gastón Frías encarna o mistério de Tom com carisma e desconforto na medida certa. Ao redor deles, Bruno Giganti e Nancy Meijide completam o elenco com presenças discretas, mas fundamentais para articular os ecos da perda e da reconstrução.

“300 Cartas” é uma reflexão sobre o luto e o autoconhecimento. Santa Ana utiliza o desaparecimento de Tom como metáfora da perda de si dentro de uma relação abusiva. Ao enfrentar o vazio, Jero precisa não apenas entender o outro, mas reencontrar-se, e nessa travessia o filme propõe uma cura lenta e dolorosa. O que começa como a leitura das cartas de um amor que partiu transforma-se em um processo de libertação, da idealização, da culpa, do medo de ficar só.


O longa também dialoga sutilmente com questões sociais. O filme denuncia as assimetrias afetivas que atravessam casais queer, as violências sutis que nem sempre deixam marcas visíveis e o impacto psicológico do abandono em uma era de vínculos descartáveis. Ao mesmo tempo, evita qualquer tom panfletário, preferindo o caminho da intimidade e da observação.


quarta-feira, 12 de novembro de 2025

Queens of the Dead (EUA, 2025)


No longa-metragem de estreia como diretora, Tina Romero (filha do lendário George A. Romero) assina uma comédia-terror que se desenrola num galpão no Brooklyn, durante uma megafesta em que drag queens, club kids e “frenemies” são forçados a unir talentos para sobreviver a um apocalipse zumbi. O enredo combina o legado dos mortos-vivos herdado do pai com uma lente queer contemporânea, empurrando o gênero para fora dos espaços tradicionais da sobrevivência e do horror genérico.

Romero transforma os mortos-vivos em metáfora direta para a cultura queer: zumbis banhados de glitter e figurinos fabulosos, arrastados pelo vício em apps e redes sociais. A festa se torna arca de salvação, e as drag queens reaproveitam cada habilidade, da maquiagem e unhas afiadas às perucas, saltos altos e coreografias, convertendo tudo em arma. O resultado é um espetáculo de “glam-gore”, onde lente metálica, sangue e batom se misturam para afirmar que a diferença encontra força no coletivo e no exagero.

O filme não apenas representa personagens LGBTQIA+ num terror, mas apresenta um elenco majoritariamente queer que cobre boa parte da sigla, com nomes como Cheyenne Jackson, Margaret Cho, Dominique Jackson (“Pose”), Katy O’Brian e Nina West (“Drag Race”), cada um explorando seus talentos em papéis de destaque. Essa presença visível transforma “Queens of the Dead” em um rito de passagem para o horror queer mainstream, onde sobreviver não é só escapar dos mortos-vivos, mas afirmar identidade, solidariedade e família escolhida.

Tecnicamente, a obra honra algumas regras do panteão Romero, zumbis cambaleando, bocas abertas, mordidas contagiosas , enquanto subverte outras, como os símbolos religiosos, com ironia. A festa que vira carnificina, os figurinos que brilham sob luz de néon e o cenário de clube underground transformado em campo de resistência reafirmam que o horror queer também é o palco da liberdade interrompida.

“Queens of the Dead” entrega o que promete: diversão visceral, inclusão e crítica submersa. A sátira é ácida, as analogias bem construídas, e o filme brilha sob a luz neon da fotografia de Shannon Madden. A trilha, com músicas pop de Kesha a Bizarre Inc, mantém o ritmo frenético, e, claro, se tem drag e apocalipse, há um lipsync pela vida.

“Queens of the Dead” se ergue como uma zumbi glamourosa: um filme que não abre mão do espetáculo e não se esquiva do riso, do caos e da reivindicação. Em um mundo onde a comunidade queer enfrenta perigos reais e invisíveis, Tina Romero cria uma festa morta-viva onde sobreviver é dançar sob o sangue, gritar sob o glitter e amar sob a luz dos corpos que insistem em brilhar.


terça-feira, 11 de novembro de 2025

LAR (Brasil, 2025)

 

Em “LAR”, Leandro Wenceslau transforma o gesto de filmar em um exercício de acolhimento. O documentário parte do cotidiano de três famílias LGBTQIA+ vistas pelo olhar de seus filhos, mas rapidamente transcende a estrutura observacional para se tornar uma investigação íntima sobre o que significa habitar um espaço de afeto, mesmo em meio ao preconceito e à burocracia do reconhecimento legal.

A escolha de filmar a partir da perspectiva das crianças nasceu de uma inquietação pessoal que, com o tempo, se tornou necessidade artística. “Quando eu ia pesquisar sobre essas famílias, eu não encontrava o ponto de vista dos filhos”, contou o diretor. “Sempre havia uma voz de autoridade, mas raramente o olhar dessas pessoas que também constroem o cotidiano desses lares.” É a partir desse gesto, o de devolver a palavra a quem costuma ser apenas objeto de discurso,  que o filme encontra sua potência política.

Wenceslau confessa que iniciou o projeto movido por um desejo íntimo de formar sua própria família, mas o processo o levou a desconstruir idealizações. “Eu tinha uma visão quase romântica da adoção, e o filme me mostrou outra realidade, mais complexa e mais humana”, afirmou. Essa percepção atravessa cada quadro do documentário, que retrata as famílias sem romantização, deixando que o afeto surja em meio a conflitos, dúvidas e momentos de dúvida.

A fotografia de Ícaro Moreno e a montagem de Armando Mendz foram essenciais para construir essa intimidade sem invadir. “Filmávamos dentro das casas, com uma equipe muito reduzida, e a câmera foi se aproximando aos poucos, conforme a confiança crescia”, explicou o diretor. Essa evolução técnica reflete também o vínculo emocional criado durante os dois anos de convivência com as famílias, um processo de escuta e troca que se traduz em uma linguagem visual cada vez mais viva, mais próxima, mais cúmplice.

“LAR” evita qualquer tom panfletário. Para Wenceslau, “o maior ato político era tentar encontrar a humanidade como forma de construir a narrativa”. Em vez de responder a questões sociais, o filme as apresenta com delicadeza, deixando que os próprios personagens conduzam a reflexão. Isso se alinha ao desejo consciente de fugir do arquétipo trágico que por tanto tempo marcou o cinema queer. “Queria mostrar que a gente vive, que a alegria, o prazer e o desejo também fazem parte das nossas vidas”, contou, citando influências que vão de Gus Van Sant e Apichatpong a Eduardo Coutinho.


O resultado é um retrato que equilibra ternura e denúncia com rara sensibilidade. As tensões e desafios surgem naturalmente, sem imposição: “A maioria das situações de preconceito vieram das próprias famílias, quando elas se sentiram prontas para dividir aquilo”, explicou o diretor. A honestidade dessas partilhas faz com que cada cena tenha um peso emocional próprio, transformando o filme em uma experiência de reconhecimento mútuo, entre personagens, realizador e público.

Mais do que um documentário sobre novos arranjos familiares, “LAR” é uma reflexão sobre o pertencimento. “Essas pessoas são de carne e osso, com desejos, falhas e potências. Cabe todo mundo no mundo”, resume Wenceslau. Em um país que ainda insiste em negar legitimidade a determinadas formas de amor, “LAR” se afirma como gesto de resistência e celebração, um filme que convida a imaginar futuros, onde o cuidado é a linguagem comum e o afeto, finalmente, tem lugar de fala.