sábado, 12 de abril de 2025

Um Fio de Baba Escarlate (Portugal, 2020)

“Um Fio de Baba Escarlate”, de Carlos Conceição, é uma granada estilística disfarçada de fábula. Este segundo longa do cineasta português, após o introspectivo "Serpentário (2019)", mergulha no universo do giallo italiano com a ousadia de quem entra, sem bater. Sem diálogos, em 60 minutos, o filme constrói uma ode visual ao desejo, à morte e à idolatria, evocando mestres como Dario Argento e Mario Bava, mas com um pé firme na contemporaneidade. A citação inicial de Ted Bundy já avisa: aqui, beleza e horror são cúmplices. É um conto de fadas torto, que ri dos tabus enquanto seduz o espectador.

A fotografia de Vasco Viana, colaborador recorrente de Conceição, é o grande destaque do filme. Filmado em 4:3 com uma paleta que mistura neons e sombras, cada quadro parece uma pintura pré-rafaelita dopada de psicodelia. A câmera objetifica e venera, especialmente o corpo de Matthieu Charneau, transformando-o num ícone pop e num monstro ao mesmo tempo. É um exercício de estetização tão marcante que a narrativa quase vira coadjuvante, como nos melhores momentos de “Suspiria” (1977).


Matthieu Charneau, muso-fetiche de Conceição, encarna Cândido, um serial killer cuja beleza é tão letal quanto seus impulsos. Ele estrangula com cabos de celular e beija vítimas com uma ternura pervertida, numa dança de sedução e violência. Quando um vídeo viral de seu “ato de bondade” — um beijo dado a uma suicida (Joana Ribeiro) — o catapulta à fama, Cândido vira um Cristo de Instagram, cortejado por Balenciaga e Versace. Conceição subverte a iconografia religiosa, expondo como a sociedade fetichiza assassinos carismáticos, de Bundy a influencers modernos.


O filme presta homenagem ao giallo, mas não se curva a ele. A estrutura minimalista — sem diálogos, com mortes estilizadas e uma lógica onírica — ecoa “Seis Mulheres para o Assassino" (1964), de Mario Bava, mas Conceição injeta uma sátira afiada. A ascensão de Cândido como celebridade instantânea debocha da cultura de likes, enquanto as vítimas, todas mulheres interpretadas por Joana Ribeiro, questionam o lugar feminino no gênero. É como se o diretor dissesse: “Sim, amo Argento, mas vou virar essa fórmula do avesso”. O resultado é um neo-giallo que equilibra reverência e provocação, com um toque de ‘teatro de exagero’ que Conceição admite adorar.


A subversão de “Um Fio de Baba Escarlate" também passa por sua lente queer. A objetificação de Cândido, com closes que lambem seu corpo, inverte o olhar masculino típico do giallo, onde mulheres eram o alvo. Há uma tensão erótica em cada morte, cada beijo, cada selfie, que desafia normas de gênero e moralidade. Conceição, que já flertou com essas ideias em “Coelho Mau” (2017), aqui radicaliza, transformando o assassino num fetiche ambulante. O filme não julga, apenas expõe: somos nós, espectadores, que idolatramos o monstro, e essa cumplicidade é desconfortavelmente deliciosa.


No fim, “Um Fio de Baba Escarlate” é um soco estético que não se preocupa em explicar tudo, mas deixa um eco impossível de ignorar. Sua força está em evocar sensações — tesão, repulsa, fascínio — sem segurar a mão do público. Carlos Conceição, com sua trajetória de "Carne (2010)" a "Nação Valente (2022)", um mergulho alegórico na Guerra Colonial que brilhou em Locarno, firma-se como uma voz única no cinema português. Num cenário muitas vezes preso a narrativas tradicionais, ele é um respiro fresco, cravejado de audácia, que provoca e seduz o cinema com um romantismo queer e surrealista. Acharam que não ia trazer um Cristo subversivo nessa Páscoa? Conceição ri por último, e a gente aplaude.


sexta-feira, 11 de abril de 2025

Nação Valente (Portugal/França/Angola, 2022)


Nação Valente, dirigido por Carlos Conceição, é uma obra que transcende as convenções do cinema português, mergulhando em um terreno onde afrofuturismo, crítica colonial e exploração de identidades se entrelaçam. Ambientado em Angola, em 1974, às vésperas da independência, o filme usa o contexto da Guerra Colonial como pano de fundo para uma alegoria sobre os fantasmas do imperialismo. A narrativa acompanha um grupo de soldados portugueses isolados, barricados por um muro misterioso, e uma jovem angolana, Tchissola (Ulé Baldé), cujos caminhos cruzam o amor e a tragédia. Conceição, nascido em Angola, imprime uma visão pessoal, não apenas revisitando o passado, mas projetando-o em um futuro especulativo que ressoa com o presente. 

O afrofuturismo em Nação Valente não se limita a estética, mas reconfigura a narrativa colonial. Angola é retratada como um espaço liminar, onde o tempo parece suspenso e o passado irrompe — literalmente — na forma de zumbis que simbolizam a culpa portuguesa. A fotografia de Vasco Viana, com seus tons terrosos e iluminação noturna, cria uma atmosfera de pesadelo lúcido, remetendo a um futuro onde a história não resolvida exige justiça.


A dimensão de identidades fluidas permeia o filme, especialmente na dinâmica dos soldados. Conceição filma seus corpos com uma sensualidade crua, evocando o homoerotismo latente de Bom Trabalho. A caserna, um espaço machista e claustrofóbico, torna-se palco para desejos reprimidos e violências internalizadas. João Arrais, como o jovem soldado, entrega uma performance que captura essa dualidade: ele é ao mesmo tempo vítima e agente de um sistema opressivo. O filme não rotula essas tensões, mas as deixa respirar, permitindo que o espectador sinta o peso do não-dito.

A influência de Claire Denis é mais clara na mise-en-scène. Como em Bom Trabalho, onde a Legião Francesa é filmada com uma coreografia quase erótica.  No entanto, Nação Valente vai além de Denis ao incorporar elementos de gênero — o horror zumbi — para externalizar o trauma colonial. Essa fusão de estilos desafia o espectador a abandonar leituras lineares, exigindo uma imersão sensorial e intelectual. O muro, metáfora central, não é apenas físico, mas um símbolo das barreiras psicológicas e históricas que Portugal ainda enfrenta ao lidar com seu passado.


A crítica ao colonialismo é feroz, mas nunca panfletária. Conceição, como luso-angolano, navega a complexidade de sua própria identidade, questionando narrativas oficiais sem cair em simplismos. O filme expõe a “nação valente” do título — uma referência irônica ao hino português — como uma ilusão sustentada por violência e ignorância. A revolta dos mortos-vivos, que emergem para confrontar os soldados, é uma poderosa alegoria do retorno do reprimido.



quarta-feira, 9 de abril de 2025

Lilies Not for Me (Reino Unido/França/África do Sul/EUA, 2024)

Lilies Not for Me, estreia de Will Seefried como diretor de longas, é uma carta de amor agridoce ao passado queer, ambientada na Inglaterra dos anos 1920. O filme mergulha em um capítulo sombrio da história, quando a homossexualidade era tratada como doença a ser "curada" por práticas médicas bárbaras. Fionn O’Shea brilha como Owen, um romancista preso entre a expressão de sua identidade e a repressão imposta por uma sociedade asfixiante.

O coração do filme pulsa na relação entre Owen e Philip (Robert Aramayo), um médico atormentado que acredita poder "salvar" ambos de seus desejos. A química entre os dois é elétrica, mas carregada de tensão autodestrutiva, reminiscente de clássicos como Maurice ou até do peso emocional de Giovanni’s Room, de James Baldwin. Seefried acerta ao não romantizar demais essa paixão – ela é crua, imperfeita e, por vezes, sufocante. No entanto, a introdução de Charles (Louis Hofmann) como um terceiro elemento desestabiliza a trama. Embora traga um simbolismo interessante sobre liberdade e tentação, sua presença carece de desenvolvimento, deixando o triângulo amoroso mais como esboço do que como algo plenamente realizado.


A outra camada narrativa, centrada na amizade entre Owen e a enfermeira Dorothy (Erin Kellyman), é onde o filme encontra seu tom mais humano. Dorothy, inicialmente parte do sistema opressor, evolui de cúmplice a aliada, um arco que reflete as histórias reais de enfermeiras que desafiaram os horrores da terapia de conversão. Kellyman entrega uma atuação contida, mas poderosa, equilibrando a frieza institucional com uma empatia crescente.


Como estreia, o filme revela um diretor com visão clara e uma paixão evidente por narrativas queer históricas. Seefried não tem medo de confrontar o público com a brutalidade do passado – cenas de procedimentos médicos são sutilmente horrendas, mais sugeridas do que mostradas, o que amplifica seu impacto. Contudo, há uma sensação de que ele tenta abarcar demais: o romance, a crítica social, a celebração da arte como resistência. 


Visualmente, Lilies Not for Me é poderoso. A fotografia de Cory Fraiman-Lott capta a dualidade da narrativa com maestria: os tons quentes e dourados dos flashbacks contrastam com a paleta fria e estéril do hospital, quase como se o filme respirasse em duas épocas distintas. A direção de arte e os figurinos reforçam essa sensação de pintura viva, evocando Maurice (1987), de James Ivory, mas com uma textura mais crua e menos envernizada. 


No fim, Lilies Not for Me é um sussurro carregado de revolta e delicadeza, um lembrete de que o amor, mesmo esmagado pela repressão, teima em florescer. Não é impecável, mas seu peso emocional é inegável. Para quem respira cinema queer, há um gostinho nostálgico que remete aos tempos que esses filmes tinham um sabor de proibido, entrelaçado com uma urgência bem atual. Seefried estreia com um filme que cutuca e acolhe na mesma medida, plantando a semente de que seu próximo trabalho pode vir ainda mais afiado.

O Rito da Dança (Fancy Dance, EUA, 2023)

 

Fancy Dance, estreia de Erica Tremblay na direção de longas, é um mergulho visceral nas vidas de mulheres indígenas nos EUA, com um toque LGBTIQA+ que pulsa na protagonista. O filme segue Jax (Lily Gladstone), uma mulher Seneca-Cayuga abertamente queer que vive na reserva em Oklahoma, cuidando da sobrinha Roki (Isabel Deroy-Olson) após o desaparecimento da irmã Tawi. Tremblay, coautora do roteiro com Miciana Alise, entrega um drama familiar com tons de road movie e thriller, mas é na conexão entre tia e sobrinha — e na identidade de Jax — que o filme encontra sua força. Aqui, o descaso com mulheres indígenas desaparecidas ganha um rosto resistente e complexo.

Lily Gladstone, indicada ao Oscar por Killers of the Flower Moon, faz de Jax uma figura magnética: durona, vulnerável e inegavelmente queer. Sua sexualidade não é um “plot point”, mas uma parte orgânica de quem ela é — vista nos olhares trocados com uma ex-amante na reserva ou na forma como desafia normas de gênero com sua postura de quem não pede permissão para existir. Gladstone carrega o filme com silêncios que dizem tudo, enquanto Isabel Deroy-Olson brilha como Roki. A relação das duas, pontuada por falas em Cayuga, é um ato de resistência cultural e pessoal, com Jax sendo um farol queer pra sobrinha num mundo que tenta apagá-las.

Tremblay equilibra o intimismo com crítica social, e o queer de Jax amplifica essa tensão. Ela navega a reserva com uma energia que mistura masculinidade e ternura, sobrevivendo com pequenos crimes e enfrentando a indiferença da polícia tribal e do FBI diante do sumiço de Tawi. O filme não grita sua mensagem, mas deixa claro o abandono sistêmico — e Jax, como mulher indígena encarna essa luta dupla. Há leveza também: a celebração do primeiro “moon” de Roki, guiada por Jax com orgulho cultural, é um respiro que reforça seu papel de guardiã fora dos padrões, contrastando com o olhar perdido da garçonete branca no diner.

Fancy Dance não é impecável — falta ousadia em alguns momentos e um foco mais firme nas suas ambições narrativas. Mesmo assim, é um retrato autêntico e comovente, guiado por uma protagonista queer que desafia estereótipos. Tremblay, Gladstone e Deroy-Olson criam um filme que honra a cultura Seneca-Cayuga, cutuca o descaso sistêmico e celebra os laços que sustentam quem fica. Não é um thriller eletrizante, mas um drama que ecoa — um grito dançante de uma mulher que sabe que a sobrevivência é sua maior vitória.



terça-feira, 8 de abril de 2025

Seré Breve Al Momento de Morir (México, 2024)

 

Seré Breve al Momento de Morir, longa de estreia do mexicano Juan Briseño, é uma obra que vibra com a intensidade de um coração exposto. Ambientado no universo competitivo de uma companhia de dança, o filme acompanha Sebastián (Martín Saracho), um jovem bailarino que, ao ser aceito em uma prestigiada academia, deixa sua família para trás e mergulha em um mundo de sonhos e tensões. É lá que ele conhece Arsenio (Joan Kuri), um dançarino carismático com quem inicia um romance ardente. Briseño, com sua formação em balé clássico, traz uma autenticidade visceral às cenas de dança, transformando cada movimento em uma metáfora para o desejo e a luta interna dos personagens.

A narrativa, no entanto, toma um rumo sombrio com a chegada de Mikael (Mikael Lacko), o novo coreógrafo, que impõe uma competição brutal entre os bailarinos. Aqui, o filme se aprofunda em temas como rivalidade, inveja e desumanização, expondo as camadas mais cruas das relações humanas. Quando Sebastián é nomeado primeiro bailarino, a inveja de Arsenio o consome, levando-o a tramar, junto com outros membros da companhia, um plano sádico que culmina em uma tragédia avassaladora. Briseño não poupa o espectador: a violência emocional e o bullying são retratados com uma crueza que incomoda, mas também provoca reflexão sobre até onde a busca por validação pode nos levar.

Visualmente, o filme é um primor. A direção de fotografia de Ingmar Montes e Consuelo Saldaña utiliza closes intensos nos rostos dos protagonistas, capturando cada nuance de emoção — dos sorrisos tímidos de Sebastián e Arsenio à frieza calculada de Mikael —, enquanto o foco nos corpos dançando exalta a potência e a fragilidade de cada movimento, como se a câmera dançasse junto, hipnotizada. A trilha sonora de Carlo Ayhllón, com suas notas que oscilam entre a delicadeza e a tensão, complementa perfeitamente a narrativa, criando uma atmosfera que é ao mesmo tempo etérea e sufocante. É impossível não se sentir imerso nesse universo onde a beleza da dança contrasta com a brutalidade das relações interpessoais.

Apesar de seus méritos, Seré Breve al Momento de Morir não escapa de alguns tropeços. A transição do romance para o conflito central parece abrupta em certos momentos, e o desenvolvimento de personagens secundários, como os outros bailarinos da companhia, deixa a desejar — eles acabam servindo mais como ferramentas narrativas do que como figuras tridimensionais. Além disso, a intensidade da tragédia final, embora impactante, pode parecer exagerada para alguns, beirando o melodramático, mas afinal é um filme mexicano. Ainda assim, a força do longa está na sua coragem de abordar temas difíceis, como o acoso laboral e a violência emocional em relações queer, sem romantizar ou suavizar as dores que acompanham essas experiências.



segunda-feira, 7 de abril de 2025

Bizarros Peixes das Fossas Abissais (Brasil, 2024)

Bizarros Peixes das Fossas Abissais, dirigido por Marcelo Fabri Marão, é uma animação nacional que acompanha uma protagonista excêntrica, capaz de transformar partes do corpo em animais com simples frases evocativas, ao lado de uma tartaruga com TOC e uma nuvem com incontinência pluviométrica. Juntos, esse trio improvável embarca numa jornada rumo às profundezas do oceano em busca de uma planta medicinal para curar o Alzheimer do avô da heroína. Com vozes de Natália Lage, Rodrigo Santoro e Guilherme Briggs, o filme mistura humor nonsense, surrealismo e uma brasilidade pulsante, desafiando convenções narrativas e estéticas.

Olhando por uma lente queer, os protagonistas escapam de qualquer normatividade imposta. A protagonista, em especial, subverte expectativas ao transformar seu corpo – e sua bunda, especificamente – ao gritar “MINHA BUNDA É UM GORILA!”. Esse ato de metamorfose verbal e física é uma celebração da fluidez, da recusa às amarras do corpo normativo e da liberdade de ser absurdamente único. Seus companheiros, uma tartaruga neurótica e uma nuvem tímida, reforçam essa fuga do padrão, formando uma família escolhida que rejeita o binarismo e a sobriedade em favor de uma existência caótica e autêntica.


A direção de Marão é um destaque à parte, carregada de personalidade e ousadia. Com uma equipe reduzida – apenas ele, Rosaria e Fernando Miller na animação –, o filme abraça a técnica 2D tradicional em full animation, com movimentos fluidos que dão vida às transformações bizarras e às sequências de ação. Os traços variam entre o rudimentar e o detalhado, com cenários que oscilam de monocromáticos a explosões de cor, refletindo a improvisação teatral que guia o processo criativo do diretor. É uma animação que não teme a imperfeição, usando-a para lembrar que há mãos humanas por trás de cada quadro.


A memória é um fio condutor sutil, mas poderoso. A busca da protagonista pela planta curativa não é só uma aventura física, mas uma tentativa de resgatar o avô do esquecimento imposto pelo Alzheimer. O filme costura essa narrativa íntima ao caos surreal, usando a jornada como metáfora para o que se perde e o que se luta para reter. Os cacos de vaso que formam o mapa simbolizam fragmentos de lembranças, e Marão os entrelaça com humor e leveza, sem nunca deixar o peso emocional se dissipar por completo.


O clímax nas fossas abissais é um mergulho lisérgico que amplifica a estética fora da curva. As criaturas marinhas, guardiãs da planta, surgem em traços que evocam formas fálicas e vúlvicas, desafiando representações tradicionais da natureza. Essa viagem ao fundo do oceano é um balé de cores e formas mutantes, quase psicodélico, onde o absurdo se torna um espelho da imaginação sem freios. São seres que, como os protagonistas, existem fora de qualquer norma, reforçando a identidade subversiva do filme.


Bizarros Peixes das Fossas Abissais é um marco no cinema nacional por sua coragem de ser irreverente e autoral num cenário dominado por fórmulas seguras. Num país onde a animação ainda luta por espaço, Marão entrega uma obra que não se curva ao comercial ou ao infantilizado, mas abraça o estranho, o diferente e o profundamente humano. É um grito de liberdade criativa, um lembrete de que o cinema pode – e deve – ser um espaço para o inusitado, especialmente quando carrega raízes tão brasileiras quanto universais.



sexta-feira, 4 de abril de 2025

Rumo a Uma Terra Desconhecida (To a Land Unknow, Reino Unido/Grécia/Países Baixos/Arábia Saudita/Dinamarca/Alemanha/Catar, 2024)


 Mahdi Fleifel, com seu “To a Land Unknown”, entrega um murro no estômago disfarçado de cinema. A trama segue Chatila (Mahmoud Bakri) e Reda (Aram Sabbagh), primos palestinos largados em Atenas como restos de um mundo que não os quer, lutando pra comprar passaportes falsos e alcançar a Alemanha. O que poderia ser só mais um drama de refugiados vira um estudo brutal de desespero, com uma câmera que não pisca diante da miséria. Fleifel, vindo do documentário, injeta uma autenticidade que faz você sentir o cheiro de suor e podridão nas ruas gregas. É um filme que não te deixa confortável — nem quer. E é nesse desconforto que começam a brotar os pontos queer, sutis como rachaduras numa parede prestes a ruir.

A relação entre Chatila e Reda é o fio condutor, e ela carrega uma eletricidade que não se explica só por laços de sangue. São dois homens presos num limbo, dependentes um do outro de um jeito que transcende a camaradagem hétero padrão. Chatila, com sua determinação quase maníaca, e Reda, afundado no vício e na fragilidade, formam um par que desafia as caixinhas da masculinidade tradicional. Não é amor romântico escancarado — Fleifel não é tão óbvio —, mas há uma intimidade crua, forjada na necessidade e na traição, que borra as linhas do que se espera de "primos" ou "irmãos de luta". É queer no sentido de ser fora da norma, um vínculo que não cabe em moldes prontos.

E tem mais: o próprio estado de exílio já é uma condição queer. Viver sem nação, sem raízes, é existir num espaço que a sociedade rejeita, um não-lugar onde as regras do "normal" se dissolvem. Chatila e Reda, como tantos outros na margem, criam seus próprios códigos de sobrevivência. O filme não romantiza isso — a vida deles é um inferno —, mas expõe como essa marginalidade força afetos e escolhas que desafiam o script hétero-patriarcal. Quando Reda se prostitui num parque pra juntar grana, não é só um ato de desespero; é um eco de práticas queer históricas, onde o corpo vira resistência e moeda num sistema que te cospe.

A estética de Fleifel reforça essa leitura. A câmera, quase voyeurística, captura os corpos de Chatila e Reda em closes que são ao mesmo tempo invasivos e ternos. Há uma fisicalidade na maneira como eles se movem juntos — um toque no ombro, um olhar que pesa — que sugere mais do que diz, carregando uma tensão sexual sutil, um homoerotismo que não precisa de palavras. Não é um filme que grita "representação LGBTQ+", mas também não precisa. O queer aqui está nas entrelinhas, na tensão não resolvida, na forma como a vulnerabilidade masculina é exposta sem filtro. É sutil, mas cortante como uma navalha.

“To a Land Unknown” não é perfeito. A narrativa às vezes se perde no próprio peso, e o ritmo pode parecer um soco atrás do outro sem pausa pra respirar. Mas é exatamente essa asfixia que dá força ao filme — e que abre espaço pra essas leituras queer. Não é sobre bandeiras arco-íris; é sobre o que acontece quando o mundo te arranca tudo e você só tem o outro pra segurar. Chatila e Reda não são heróis, nem mártires; são sobreviventes num jogo que já perdeu a graça. E nisso, Fleifel acha beleza, mesmo que torta.

O filme é um tapa na cara de quem espera redenção fácil. Não tem final feliz, só a promessa de um "talvez" que nunca chega. Mas entre os escombros dessa jornada, os pontos queer brilham como fagulhas: na relação ambígua dos primos, na marginalidade que os une, nos corpos que negociam sobrevivência. Fleifel não te dá respostas, mas te força a olhar pras perguntas. E, puta merda, como isso fica na cabeça.



quinta-feira, 3 de abril de 2025

Oscar Wilde About America (EUA, 2025)

Imagine Oscar Wilde, o rei do sarcasmo vitoriano, largando os leques e as xícaras de chá pra pilotar um conversível coberto de poeira, cortando os EUA da atualidade, como um profeta queer que trocou os salões por selfies e Wi-Fi de posto de gasolina. "Oscar Wilde About America", sob o comando de James Andrew Walsh, pega a turnê histórica de Wilde em 1882 — quando ele desembarcou na América pra dar palestras e ensinar os yankees a segurar um garfo com estilo — e a transforma numa road trip alucinada de Nova York a Hollywood. O que sai disso é uma comédia biográfica que joga purpurina na cara dos EUA, entre um tapa satírico e um brinde à liberdade de ser quem você bem entender.

Oscar Conlon-Morrey, saído direto do West End, veste Wilde com um misto de pose teatral e veneno contemporâneo — dá pra senti-lo soltando pérolas como “muitos carecem da originalidade de carecer de originalidade” enquanto faz pose pra um TikTok no Grand Canyon ou morde um cachorro quente na Times Square.

O elenco de apoio é um banquete de divas que não brincam em serviço: Rosemary Harris como Lady Bracknell, destilando sarcasmo como se fosse o GPS mandão da viagem, e Kate Burton como Sara Bernhardt, serve conselhos enquanto Wilde tenta entender o que é um podcast. A trama joga Wilde num 2025, cheio de glitter e caos, onde os grilhões de 1882 viraram correntes invisíveis de likes e cancelamentos — e o trânsito da I-95 é o verdadeiro teste de santidade.


"Oscar Wilde About America" dança na linha tênue entre o deboche e uma alma vibrante. E se o lendário autor estivesse em Pool Parties e Paradas LGBTQIA+? É uma festa de inclusão, com a canção “Be Yourself, Everyone Else Is Taken” (inspirada numa famosa citação de Wilde) ecoando como um grito de guerra pra quem já mandou as convenções para longe. Mas não se engane: o filme também crava os dentes na América que Wilde chamou de “barbarismo direto pra decadência, sem escala na civilização”. 


Não espere a gravitas de "Wilde", com Stephen Fry eternizando o gênio, em 1997. "Oscar Wilde About America" é outra coisa: é o dândi com bronzeado, mapa amassado e uma playlist que vai de Chopin a Chappell Roan, rindo da América enquanto descobre que ela, no fundo, é um circo que ele adoraria comandar. É provocação com alma, um lembrete de que ser autêntico é o maior dedo do meio que você pode mostrar pro mundo. Walsh entrega uma sátira  que não só sobrevive à road trip, mas a transforma num manifesto  e, se o filme tropeçar, pelo menos vai ser com estilo, e um elegante sotaque britânico.



quarta-feira, 2 de abril de 2025

Glitter & Doom (EUA/México, 2023)

 

"Glitter & Doom", dirigido por Tom Gustafson, é uma celebração vibrante da identidade queer que se destaca no cenário muitas vezes homogêneo dos musicais cinematográficos. Longe de ser uma obra-prima técnica, o filme conquista pela autenticidade e pela ousadia de colocar um romance gay no centro de um jukebox musical. A premissa simples – dois jovens sonhadores, Glitter (Alex Diaz) e Doom (Alan Mandujano), se apaixonam enquanto buscam seus caminhos – é elevada por uma energia despretensiosa que transborda sinceridade.

A grande força de "Glitter & Doom" está em sua trilha sonora, composta por 25 releituras de canções das Indigo Girls, como "Closer to Fine" e "Galileo", rearranjadas com maestria por Michelle Chamuel. Essas faixas, originalmente folk e introspectivas, ganham nova vida com arranjos pop vibrantes e coreografias coloridas que injetam vitalidade em cada cena musical. A escolha das Indigo Girls, ícones da música queer, reforça a conexão emocional com o público e dá ao filme uma camada de autenticidade cultural que ressoa profundamente.

Visualmente, o filme é um deleite. Gustafson aposta em uma estética saturada de cores, com figurinos extravagantes e cenários que evocam um sonho pop-art. Essa direção artística não só reflete a personalidade excêntrica de Glitter, um aspirante a performer de circo, como também cria um contraste interessante com a melancolia introspectiva de Doom, um compositor em crise. A participação de Peppermint, conhecida por "RuPaul’s Drag Race", como a mãe de Glitter, adiciona um brilho extra. É um mundo que parece feito para abrigar esses outsiders, e a câmera os abraça com carinho.

A narrativa de "Glitter & Doom" é outro ponto alto, especialmente por evitar os desfechos trágicos tão comuns em histórias LGBTQIA+ no cinema. Aqui, o amor entre Glitter e Doom não é definido por sofrimento ou rejeição, mas por uma busca mútua por aceitação e felicidade. O filme celebra a possibilidade de finais felizes sem forçar melodramas desnecessários.

Os números musicais são a alma vibrante do filme, e alguns deles, como os duetos entre os protagonistas, são genuinamente emocionantes. A química entre Alex Diaz e Alan Mandujano é palpável, trazendo uma ternura que compensa qualquer falta de polimento na atuação ou no roteiro. Há momentos em que o filme parece mais um videoclipe estendido do que uma narrativa coesa, mas isso não chega a ser um defeito – é parte do seu charme descontraído. A direção de Gustafson sabe quando deixar a música falar mais alto, e isso funciona a favor da experiência.

"Glitter & Doom" merece aplausos por sua ambição de ser abertamente queer num formato acessível e divertido. Não é um filme perfeito – o ritmo vacila, e a profundidade dos personagens secundários deixa a desejar –, mas sua essência é encantadora. Ele prova que narrativas queer podem brilhar em musicais sem precisar de justificativas ou tragédias, e a presença das Indigo Girls na trilha sonora, e também num cameo, só amplifica essa conquista. 



terça-feira, 1 de abril de 2025

Love (Kjærlighet, Noruega, 2024)

"Love", segundo capítulo da trilogia "Sex, Love, Dreams "de Dag Johan Haugerud, é uma obra que se debruça sobre as complexidades da intimidade e do desejo em um mundo contemporâneo saturado por convenções e novas possibilidades. Ambientado em Oslo, o filme acompanha Marianne (Andrea Bræin Hovig), uma médica urologista na casa dos 40 anos, e Tor (Tayo Cittadella Jacobsen), um enfermeiro gay, ambos colegas de hospital que navegam suas próprias buscas por conexão sexual e emocional.

Haugerud, conhecido por sua abordagem discursiva e sensível, constrói um drama que é leve e profundamente introspectivo, utilizando longas conversas para desvelar as tensões internas de seus personagens. A direção de fotografia de Cecilie Semec, com sua luz suave e tons quentes, confere ao filme uma aura acolhedora que contrasta com a inquietação emocional de seus protagonistas.


A perspectiva queer é central em "Love", especialmente na jornada de Tor, que encarna uma visão de sexualidade fluida e descomplicada. Ele frequenta o píer de Oslo em busca de encontros casuais com homens, uma prática que descreve com franqueza e sem culpa, desafiando as expectativas de monogamia e romantismo. Haugerud, que já declarou que todos os seus trabalhos partem de uma lente queer, utiliza Tor para explorar uma forma de intimidade que não depende de laços emocionais profundos, mas que ainda assim é válida e gratificante. 


Além da ótica queer, Love também se aprofunda nas contradições humanas, especialmente através de Marianne. Como urologista, ela lida com a biologia masculina de forma clínica, mas demonstra uma desconexão emocional em suas interações pessoais, algo que Tor a fará repensar.


A cidade de Oslo desempenha um papel quase como personagem em Love, refletindo a dualidade entre tradição e modernidade que permeia a narrativa. Haugerud, que não é nativo da capital norueguesa, traz um olhar nostálgico para locais como a prefeitura de Oslo, que ele associa à sua infância, mas também captura a efervescência de uma cidade que se transformou em um centro cosmopolita. 


No fim, Love é uma obra que celebra a complexidade do desejo humano, mas também reconhece suas contradições e limitações. Haugerud entrega um filme que é, acima de tudo, um convite ao diálogo — não apenas entre os personagens, mas também com o público. Como parte de uma trilogia que explora sexualidade, intimidade e identidade, o filme se destaca por sua abordagem empática e não julgadora, mas deixa uma sensação de que poderia ter ido ainda mais fundo nas emoções de seus personagens. 


segunda-feira, 31 de março de 2025

The Writer (Lituânia/EUA/Alemanha, 2023)

"The Writer", segundo capítulo da trilogia queer de Romas Zabarauskas iniciada com "The Lawyer" (2020) e que será concluída com "The Activist", aprofunda a exploração de relações LGBTQIA+ com uma perspectiva madura e necessária, focando em dois homens na faixa dos 60 anos, Kostas (Bruce Ross) e Dima (Jamie Day), que se reencontram em Nova York após décadas separados. Eles se conheceram no exército soviético nos anos 1980, apaixonaram-se, mas a vida os levou por caminhos distintos: Kostas, um lituano-americano, seguiu para Nova York, enquanto Dima, russo-lituano, ficou na Lituânia pós-independência. O reencontro é o palco para um diálogo intenso sobre política, homofobia e escolhas pessoais, refletindo as cicatrizes de um passado soviético e as tensões do presente. Zabarauskas, um ativista LGBTQIA+ declarado, usa o filme para dar voz a uma geração que enfrentou a repressão em múltiplas frentes, trazendo uma representatividade rara no cinema.

A narrativa, quase toda ambientada em um único espaço — o apartamento de Kostas —, funciona como uma peça de teatro, com ecos de My Dinner with Andre (1981), de Louis Malle, uma das inspirações do diretor. A troca entre os protagonistas é densa, alternando entre debates intelectuais e confissões emocionais, com Kostas adotando um tom mais acadêmico sobre mudanças estruturais e Dima enfatizando escolhas individuais. A atuação de Bruce Ross e Jamie Day é o coração do filme: Ross traz uma melancolia contida a Kostas, enquanto Day injeta uma energia passional a Dima.

Visualmente, "The Writer" impressiona com sua estética cuidadosa, uma marca de Zabarauskas desde "The Lawyer". Embora grande parte do filme se passe em Nova York, as cenas externas e os flashbacks que remetem à Lituânia foram filmados em Vilnius, a capital lituana, que já serviu de pano de fundo para outros trabalhos do diretor. A cidade, com sua arquitetura que mistura o pós-soviético e o contemporâneo, aparece em planos abertos que capturam uma melancolia nostálgica, contrastando com o intimismo do apartamento. A fotografia de Narvydas Naujalis, colaborador recorrente de Zabarauskas, usa uma paleta de cores suaves, com tons de azul e dourado, que dá ao filme uma aura onírica.

O filme também se destaca por sua abordagem política, um traço característico do cinema de Zabarauskas. A discussão entre Kostas e Dima toca em temas como o colonialismo intelectual, a homofobia estrutural (a homossexualidade só foi descriminalizada na Lituânia em 1993) e as diferenças entre capitalismo e comunismo, tudo isso entremeado por reflexões sobre o impacto do regime soviético em suas identidades queer. 


"The Writer" é, acima de tudo, uma celebração da resiliência queer em um mundo que nem sempre acolhe. A escolha de focar em homens maduros, cujas vidas foram moldadas por décadas de luta e transformação, é um acerto, oferecendo uma perspectiva que raramente vemos no cinema mainstream. A narrativa também reflete a própria jornada de Zabarauskas, que, como um cineasta lituano abertamente gay, enfrentou resistência em um país onde os direitos LGBTQIA+ ainda são limitados.


O ritmo mais pausado e teatral de "The Writer" pode lembrar peças como Dois Perdidos Numa Noite Suja, de Plínio Marcos, com sua ênfase em diálogos crus e intimistas. No entanto, a universalidade do tema — o amor que resiste ao tempo e às adversidades — faz do filme uma experiência acessível e tocante. O longa é um lembrete de que o passado molda quem somos, mas o presente nos dá a chance de reescrever nossas histórias.



domingo, 30 de março de 2025

Sex Love Venice (EUA, 2024)

“Sex Love Venice” te pega desprevenido logo de cara (talvez não no melhor sentido). Michael (Daniel Bateman) acorda e já entra em uma sequência de sexo que quer normalizar as tantas outras que virão, o que acaba sempre soando meio déjà-vu. Steve Balderson tenta nos jogar no vazio existencial de um cara recém-solteiro, que irá vagar por Veneza com os amigos em busca de uma reinvenção, Mas a cidade que deveria ser encantadora, aqui parece só um cenário de Instagram. Michael transa, encara o horizonte, transa de novo, e você fica esperando o momento em que o filme vai dizer algo além de "olha, ele tá perdido"

O que poderia ser um estudo interessante sobre solidão e desejo se perde em uma execução que não sabe se quer provocar, emocionar ou apenas exibir corpos bonitos. Michael, como centro da narrativa, é um protagonista que pede empatia, mas não dá muito em troca. Daniel Bateman até tenta carregar o peso do silêncio e dos olhares vagos, mas o roteiro não o ajuda a ir além de um estereótipo de "homem quebrado buscando redenção no amor".

Veneza é quase um personagem coadjuvante que merecia mais atenção. A cidade, com seus canais e aura romântica, poderia ter sido o contraponto perfeito ao vazio de Michael, mas Balderson a reduz a um pano de fundo bonito, sem alma. Há momentos em que a fotografia tenta capturar essa melancolia — um reflexo na água, uma luz dourada —, mas eles são raros e não sustentam a narrativa. O sexo, que abre o filme com tanta ênfase, logo vira um ruído de fundo, repetitivo e desprovido de significado, como se o diretor tivesse medo de deixar o silêncio falar mais alto.

Quando o amor entra em cena, com a chegada de um novo interesse romântico (Alexander Ananasso), o filme tenta mudar de tom. A promessa é que Michael vai despertar, que seu coração vai se expandir, como diz a sinopse. Mas a transição é abrupta, quase ingênua, e o romance não convence. Falta química, falta tempo pra respirar essa relação.

Mas dá pra ver o esforço por trás da obra. Balderson claramente ama seus personagens e tem um olhar estético que, em momentos pontuais, brilha — como na cena da livraria Libreria Acqua Alta, que é um respiro visual. A presença de Mink Stole, uma lenda do cinema alternativo, musa de John Waters, também traz um charme nostálgico, mesmo que subaproveitado. Não é um filme sem intenções; ele quer falar de cura, de desejo, de redescoberta. Só que tropeça na própria ambição.

No fim, “Sex Love Venice” é como um affair de uma noite: começa quente, mas logo deixa você querendo mais — não de sexo, mas de substância. Michael merecia um arco mais bem construído, e Veneza, um papel mais significativo. É um filme para quem gosta de cenas de sexo quente, com um elenco bonito, mas é difícil não sentir que o filme prometeu uma viagem profunda e entregou só uma passadinha rápida.

sábado, 29 de março de 2025

Modernos de Meia Idade (Mid-Century Modern, EUA, 2025)

“Mid-Century Modern”, nova sitcom dos criadores de “Will & Grace", Max Mutchnick e David Kohan, estreou na Disney+, trazendo uma ode à comédia, só que com um toque contemporâneo, os protagonistas são todos gays. A série segue três amigos de meia-idade — Bunny Schneiderman (Nathan Lane), Jerry Frank (Matt Bomer) e Arthur Brooks (Nathan Lee Graham) — que, após a morte inesperada de um colega, decidem morar juntos em Palm Springs, na luxuosa casa de Bunny, acompanhados pela mãe dele, Sybil (Linda Lavin). Gravada ao vivo com plateia, a sitcom ecoa a vibe das produções dos anos 80 e 90, como The Golden Girls, com cenários coloridos e um humor que mistura shade afiado e coração quentinho. Em 10 episódios, a série resgata a essência de “Will & Grace”, mas com um olhar mais maduro sobre a experiência LGBTQIA+, celebrando a amizade e a resiliência em tempos de mudança.

O humor de “Mid-Century Modern” carrega o timing característico das sitcoms americanas, que pode soar diferente para o público brasileiro, acostumado a um ritmo mais físico e espontâneo, como em "Vai que Cola". Aqui, as piadas dependem de trocadilhos rápidos, referências culturais e pausas calculadas para as risadas da plateia ao vivo, criando uma energia quase teatral. Nathan Lane, um veterano da Broadway, como o excêntrico Bunny, é o mestre desse timing, arrancando gargalhadas com suas tiradas exageradas e seu jeito de drama queen. Matt Bomer, recém saído do sucesso "Companheiros de Viagem (2023)", como o romântico Jerry, e Nathan Lee Graham, como o sarcástico Arthur, complementam a dinâmica com suas próprias nuances, enquanto a plateia ao vivo amplifica a energia cômica, remetendo à era de ouro das sitcoms.

A série também explora o choque geracional entre os protagonistas e a Gen Z, representada pela personagem Chloe (Billie Lourd), que chega com suas ideias de modernidade. Bunny, Jerry e Arthur, homens maduros que viveram a epidemia de HIV/AIDS e a luta por direitos LGBTQIA+ nos anos 80 e 90, precisam se adaptar a novas percepções de sexo, tecnologia e moda. A narrativa aborda sempre com leveza a necessidade de adaptação, mas também mostra a sabedoria dos protagonistas, que ensinam aos mais jovens o valor da autenticidade e da história que carregam, criando um diálogo intergeracional que ressoa com a experiência queer de hoje.


Um dos pilares emocionais da série é Sybil, a mãe de Bunny, interpretada pela lendária Linda Lavin, que faleceu em dezembro de 2024, aos 87 anos, durante a produção. Sybil é quase uma quarta “melhor amiga”, com suas tiradas ácidas e seu amor sarcástico pelo filho e seus amigos, trazendo camadas de humor e ternura à casa de Palm Springs. Sua saída é um dos momentos mais marcantes da série, um misto de riso e choro que reflete a perda real da atriz. A última cena de Sybil, em que ela aconselha o trio a “não deixarem de se amar, porque o mundo não vai facilitar”, é de uma emoção crua, com a voz rouca de Lavin ecoando o peso de uma despedida que transcende a ficção.

As participações especiais são outro destaque, trazendo frescor e energia à narrativa. Billie Lourd, como Chloe, injeta caos millennial com sua tentativa de “modernizar” os Golden Gays, enquanto Zane Phillips explode com sua energia sexual num ensaio de romance com Jerry. Donna Mills, interpretando a irmã de Bunny, aparece com um humor afiado que rivaliza com o do irmão, com sua energia caótica contrastando com o sarcasmo do trio.

“Mid-Century Modern” é, acima de tudo, uma celebração do poder da amizade, que sobrevive às situações mais difíceis, como a pandemia de COVID-19 e o luto pela perda de Sybil. A série nos lembra da importância de gargalhar, especialmente em tempos em que vozes LGBTQIA+ ainda lutam para não serem caladas, seja pela opressão política ou pelo peso da história. Bunny, Jerry e Arthur, com suas imperfeições e seu amor incondicional, mostram que a comunidade queer sempre encontrou força na união, transformando o caos em risadas e o luto em esperança. Em um mundo que nem sempre acolhe, a atração nos faz refletir de que o riso e mais do que a amizade, a família escolhida, são atos de resistência, e que, como Sybil diria, o melhor desastre é aquele que se vive junto.



sexta-feira, 28 de março de 2025

Meu Nome é Maria (Maria, França, 2024)

 Meu Nome é Maria, dirigido pela francesa Jessica Palud, é um mergulho intenso na vida de Maria Schneider, a atriz que ficou marcada pelo trauma de O Último Tango em Paris. Anamaria Vartolomei entrega uma performance devastadora como Schneider, capturando sua fragilidade e fúria com uma precisão que atravessa a tela. O filme traça a jornada de Maria desde a infância, com um pai ausente e uma mãe distante, até sua ascensão meteórica e queda trágica na indústria cinematográfica.

A fotografia de Sébastien Buchmann é um dos pontos altos da produção, com closes sufocantes que refletem o estado emocional de Maria. A paleta de cores alterna entre tons frios, que evocam sua solidão, e vermelhos intensos, que simbolizam tanto a paixão quanto a violência que permeiam sua vida. A edição de Thomas Marchand, por sua vez, cria um ritmo que oscila entre momentos de silêncio contemplativo e cortes abruptos, espelhando a desorientação de Schneider diante de um mundo que a explora sem piedade.

Um respiro queer emerge na relação de Maria com Noor (Céleste Brunnquell), sua amante que representa um raro oásis de ternura em meio ao caos. As cenas entre as duas, filmadas com uma delicadeza que contrasta com a brutalidade do set de O Último Tango em Paris, sugerem uma busca por liberdade e autenticidade. A sexualidade de Maria, que na vida real era fluida e desafiadora para os padrões da época, aparece aqui como um refúgio potencial contra as imposições patriarcais da indústria. No entanto, Palud não aprofunda essa narrativa, deixando a relação como um esboço de algo que poderia ter sido mais significativo.

As rodagens de O Último Tango em Paris são o eixo central de Meu Nome é Maria, e Palud as retrata com uma honestidade que beira o desconforto. A infame cena da manteiga, na qual Schneider foi manipulada por Bertolucci e Marlon Brando (interpretado por Matt Dillon) sem consentimento, é recriada com um olhar que prioriza a perspectiva da atriz: vemos sua humilhação, o silêncio cúmplice da equipe e o peso de um “não” ignorado. O filme expõe como O Último Tango, hoje considerado um clássico maldito, foi construído às custas da dignidade de sua protagonista, ecoando outros casos de abuso em sets de filmagem.

Além de expor os bastidores de O Último Tango, Meu Nome é Maria também reflete sobre o impacto duradouro desse trauma na vida de Schneider. Após o filme, ela enfrentou o estigma de ser vista apenas como um objeto sexual, enquanto lutava contra a depressão e o vício. Palud acerta ao mostrar como a indústria, que a elevou ao estrelato, também a descartou sem cerimônia, um padrão que se repete com tantas mulheres no cinema. A relação de Maria com Bertolucci, marcada por uma mistura de admiração e ressentimento, é retratada com nuances, mas o filme não explora o suficiente o papel de Brando, que, como veterano, também teve responsabilidade no que aconteceu. Essa omissão enfraquece a crítica, deixando uma sensação de que a história de Schneider ainda não foi totalmente contada.