quinta-feira, 6 de novembro de 2025

A Forma da Água (The Shape of Water, EUA/México, 2017)

O cinema de Guillermo del Toro sempre encontrou beleza no que a norma rejeita. Em “A Forma da Água” , essa sensibilidade se transforma em manifesto: a fantasia deixa de ser fuga e se torna lugar de revolução. No coração da América moralista dos anos 1960, o diretor constrói uma fábula onde a ‘monstruosidade’ é sinônimo de verdade. É o amor, líquido, híbrido, indisciplinado, que desestabiliza as fronteiras de corpo, gênero e humanidade.

A protagonista Elisa (Sally Hawkins), mulher muda e invisível, encarna a delicadeza e a força dos que sobrevivem à margem. Sua atração pelo Homem-Anfíbio é mais que um gesto romântico: é uma recusa a aceitar o amor como privilégio dos “normais”. A criatura, corpo híbrido entre o humano e o mítico, representa a alteridade radical, o queer em sua forma mais pura, que existe apesar das categorias. Ao unir-se a ele, Elisa afirma que o afeto não depende da semelhança, mas da coragem de ver o outro em sua diferença absoluta.

Em vez de ser salva, Elisa salva. Ao contrário das princesas que esperam o beijo, ela age, transgride, reivindica sua própria narrativa. Sua mudez não é ausência, é linguagem, cada gesto, cada sinal é poder. Ela não busca cura, busca comunhão. E ao final, ao se aproximar fisicamente da criatura, assume a própria mutação, um gesto simbólico de libertação dos limites impostos pela humanidade normativa. O filme propõe, assim, um novo arquétipo de heroína:: aquela que encontra felicidade não na transformação do outro, mas na aceitação mútua do que é estranho, fluido e indomável.

Del Toro reforça essa dimensão através da estética: o vermelho da faixa e dos sapatos de Elisa contrasta com o verde frio do laboratório, o desejo se insurge contra o confinamento. A câmera se move como a água, sinuosa, envolvente, quase carnal. Tudo flui, nada se fixa. A água aqui é mais que elemento, é metáfora da identidade queer, que escapa, adapta-se, resiste à forma imposta. O diretor traduz o prazer como um ato político: a masturbação de Elisa e sua relação com a criatura são retratadas sem pudor, como afirmação de uma sexualidade própria, legítima e viva.

Os coadjuvantes reforçam a rede de solidariedade entre marginalizados. Giles, Richard Jenkins, indicado ao Oscar, o artista gay envelhecido, rompe com a tradição do homem queer condenado à tragédia, e sua ternura se converte em coragem. Zelda (Octavia Spencer), mulher negra e trabalhadora, soma-se à resistência silenciosa de Elisa. Juntos, formam uma comunidade de outsiders que enfrentam o patriarcado branco, hétero e militarizado com empatia, humor e cumplicidade. Nesse trio improvável, o filme encontra seu gesto mais político: a sobrevivência coletiva dos que o sistema tenta apagar.

Vencedor de 4 Oscars, incluindo Melhor Filme e Melhor Diretor, “A Forma da Água” é uma ode à diferença, uma fábula erótica e política onde o amor é revolta e a monstruosidade é redenção. Del Toro não romantiza a exclusão, ele a transforma em força estética e moral.. É amar com escamas, com feridas, com desejo. É deixar que o corpo encontre sua própria forma, líquida, mutante, libertadora.

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