Em “300 Cartas”, o cineasta argentino Lucas Santa Ana propõe um mergulho íntimo nas ruínas do amor contemporâneo. A história acompanha Jero (Cristian Mariani) e Tom (Gastón Frías), um casal admirado por todos, até que, no aniversário de um ano de relacionamento, Jero retorna para casa e encontra apenas uma caixa com trezentas cartas. Tom desapareceu, sem explicações, sem despedidas, apenas deixando atrás de si um rastro de papel e silêncio. O gesto do ghosting, tão cotidiano e cruel, é aqui elevado à dimensão do trauma, da violência emocional e da autodescoberta.
À medida que lê as cartas, Jero revisita os escombros de um amor idealizado. Cada texto revela não apenas um Tom diferente, mas também as dinâmicas de controle e desigualdade que sempre estiveram ali, escondidas sob o verniz da paixão. Santa Ana transforma o romance em uma investigação sobre o poder, o abuso psicológico e a fragilidade afetiva, mostrando como a romantização pode mascarar relações profundamente tóxicas. O chamado “projeto Jero”, que dá título a uma das seções do filme, torna-se símbolo dessa obsessão pelo outro e da maneira como o desejo, às vezes, se confunde com a necessidade de ser reconhecido.
A fotografia aposta em enquadramentos claustrofóbicos e numa paleta fria, quase asséptica, refletindo a solidão de Jero em meio a uma Buenos Aires contemporânea, onde a comunicação parece abundante, mas o afeto é rarefeito. A montagem, assinada pelo próprio Santa Ana, alterna presente e passado com fluidez, utilizando as cartas como gatilhos de memória e confissão. O resultado é um fluxo de lembranças que se sobrepõem, revelando um amor construído mais por idealizações do que por presença.
O elenco conduz a narrativa com sensibilidade. Cristian Mariani entrega um desempenho contido, em que o desespero se traduz em gestos mínimos, enquanto Gastón Frías encarna o mistério de Tom com carisma e desconforto na medida certa. Ao redor deles, Bruno Giganti e Nancy Meijide completam o elenco com presenças discretas, mas fundamentais para articular os ecos da perda e da reconstrução.
“300 Cartas” é uma reflexão sobre o luto e o autoconhecimento. Santa Ana utiliza o desaparecimento de Tom como metáfora da perda de si dentro de uma relação abusiva. Ao enfrentar o vazio, Jero precisa não apenas entender o outro, mas reencontrar-se, e nessa travessia o filme propõe uma cura lenta e dolorosa. O que começa como a leitura das cartas de um amor que partiu transforma-se em um processo de libertação, da idealização, da culpa, do medo de ficar só.
O longa também dialoga sutilmente com questões sociais. O filme denuncia as assimetrias afetivas que atravessam casais queer, as violências sutis que nem sempre deixam marcas visíveis e o impacto psicológico do abandono em uma era de vínculos descartáveis. Ao mesmo tempo, evita qualquer tom panfletário, preferindo o caminho da intimidade e da observação.


https://drive.google.com/file/d/174GgxE63sMpVNSs8kicFvGBcvtdldIWH/view?usp=sharing
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