“O Filho de Mil Homens” é uma adaptação do romance de Valter Hugo Mãe dirigida por Daniel Rezende, cuja sensibilidade visual e narrativa delimita o filme como uma fábula poética que revisita e expande conceitos profundos de família, identidade e afeto. A seu modo, Rezende costura contos paralelos não lineares que se entrelaçam para formar um panorama humano repleto de dor, resistência e ternura, e é nessa teia que brota uma narrativa queer essencial.
No centro da história está Crisóstomo (Rodrigo Santoro), um pescador de 40 anos, solitário e imerso em sua própria culpa por não ter filhos. Seu desejo de paternidade não nasce de uma ambição social ou de legado, mas de algo visceral: ele sonha alto. A relação entre Crisóstomo e Camilo (Miguel Martines), um garoto órfão, é o fio condutor mais claramente queer do filme: um vínculo escolhido, não biológico, baseado no cuidado, no amor e na construção mútua. Esse laço desmonta expectativas tradicionais de paternidade, mostrando uma masculinidade sensível e transformadora, não autoritária, mas vulnerável.
Além desse núcleo, o longa introduz outros personagens que enriquecem esse universo de margens. Há Antonino (Johnny Massaro), um jovem homossexual amplamente oprimido pela mãe religiosa e pela violência machista da vila. Sua presença revela, por meio de flashbacks e tensões silenciosas, as múltiplas pressões que sustentam a masculinidade tóxica e a homofobia internalizada. É notável como o filme maneja o erotismo queer. Há cenas de contemplação de corpos masculinos e até uma simbólica masturbação de Antonino representada por borboletas , uma escolha poética que articula desejo, repressão e liberdade de forma delicada, sem se render ao choque fácil.
Também merece destaque Isaura (Rebeca Jamir), uma mulher marcada pela reprovação social e familiar, empurrada para um casamento de conveniência, com Antonino, vivendo em reclusão emocional. Sua trajetória de dor, abandono e recomeço dialoga com a do marido, mostrando que exclusão social, repressão sexual e crueldade moral afetam diferentes corpos e identidades. Por fim, há Francisca, mulher com nanismo, vivida por Inez Viana, um personagem que sofre com o capacitismo da comunidade, servindo como microcosmo para refletir discriminações sociais mais amplas.
Esteticamente, o filme conjuga realismo mágico com sensibilidade quase garciamarquiana. A natureza (o mar, as rochas, as paisagens da Chapada Diamantina) é fotografada por Azul Serra com uma beleza austera, evocando tanto força quanto vulnerabilidade. A narrativa sugere elementos fantásticos, como luzes etéreas ou uma “conexão extraordinária” entre Crisóstomo e os segredos enterrados da vila. Essa poética visual reforça a natureza fabulosa da história, transformando o cenário em personagem, e fazendo da água, o mar, a pesca, um elemento metafórico e transformador, símbolo de mudança, de ciclo e de purificação.
Ao fim o sentimento que persiste é de esperança com delicadeza. A fábula de Rezende não promete que o mundo vai mudar magicamente, mas afirma que transformações íntimas são possíveis, que laços inventados têm tanta força quanto os biológicos, e que a família queer, comunitária e sensível pode ser uma resposta para a exclusão social. “O Filho de Mil Homens” é uma ode àqueles que resistem, que se acolhem, que sonham e reinventam e isso faz dele, no cenário do cinema queer contemporâneo brasileiro, uma obra de grande significância estética e política.
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