quarta-feira, 16 de abril de 2025

Filhas da Noite (Brasil, 2024)

“Filhas da Noite”, dirigido por Henrique Arruda e Sylara Silvério, é uma carta de amor às rainhas da noite recifense, um documentário híbrido que pulsa com plumas, paetês e memórias de resistência. Vencedor do Troféu Candango de Melhor Filme na Mostra Caleidoscópio do 57º Festival de Brasília (2024), o longa, produzido pela Filmes de Marte, acompanha seis performers trans veteranas de Recife — Sharlene Esse, Raquel Simpson, Márcia Vogue, Christiane Falcão, Suelanny Tigresa e Paloma Pitt, todas acima dos 50 anos. Com um globo espelhado como símbolo de uma era dourada, o filme entrelaça depoimentos, arquivos de VHS e performances viscerais, como a de Raquel interpretando “Mudanças”, de Vanusa, para revisitar décadas de glória e luta na cena LGBTQIA+ pernambucana. É uma celebração nostálgica, mas nunca piegas, que exalta essas pioneiras como forças da natureza.

A narrativa, construída ao longo de três anos de filmagens com apoio do Funcultura e da Prefeitura do Recife, nasceu como um curta e cresceu para um longa que transcende o pessoal. Arruda, pernambucano com raízes no jornalismo, e Silvério, potiguar com formação em Rádio e TV, trazem uma abordagem autoral que mistura documentário e ficção, equilibrando memórias íntimas com reflexões universais sobre envelhecimento, preconceito e legado. A pesquisa de Arruda sobre a comunidade queer nordestina, aliada aos ensaios fotográficos de Silvério (disponíveis em filhasdanoite.com), dá profundidade às histórias. O filme não apenas resgata o passado, mas conecta essas mulheres às novas gerações, mostrando como suas lutas pavimentaram o caminho para a visibilidade drag mainstream de hoje.

A estética é um dos grandes trunfos de “Filhas da Noite”. A fotografia de Sylara Silvério banha Recife em tons de neon e nostalgia, com texturas de VHS que evocam uma era de ruído e glamour. Clipes de Márcia Vogue no Show de Calouros do SBT, granulados e cheios de vida, contrastam com a sobriedade do presente, criando um diálogo entre o luxo dos palcos e as dores de bastidores. A direção de arte de Arruda, com figurinos cheios de plumas e paetês, transforma cada frame num manifesto visual. A trilha sonora, ancorada no brega nordestino, eleva momentos musicais a atos de resistência, com o gênero servindo como espinha dorsal da identidade cultural dessas artistas. É como se o filme dançasse ao som de Nubia Lafayette, com a mesma rebeldia e coração.

As protagonistas são o pulso do filme, e Raquel Simpson, em especial, brilha como uma força indomável. Suas memórias, entre risos e lágrimas, revelam o peso de ser trans num Recife conservador, mas também a alegria de construir um legado. Cada performer traz uma camada única: Sharlene Esse, com sua elegância serena; Márcia Vogue, com o carisma de diva; Suelanny Tigresa, com sua energia feroz. O filme as apresenta sem filtros, mostrando rugas, cicatrizes e orgulho, num gesto que desafia a obsessão etária da sociedade. A direção de Arruda e Silvério dá espaço para que elas sejam autoras de suas próprias histórias, com o roteiro coescrito por Sharlene Esse garantindo autenticidade. É um retrato que celebra a individualidade e a coletividade, com ecos de Paris is Burning, mas com sabor de brega e cachaça.

O longa é um achado imperdível: uma ode às pioneiras que transformaram a noite em revolução. Arruda e Silvério entregam um trabalho que é, ao mesmo tempo, um resgate histórico e um grito de celebração, com um pé na purpurina e outro na luta. Como as próprias performers dizem, elas são “Filhas da Noite” — e o brilho delas, mesmo em meio à nostalgia, nunca se apaga. Num mundo que tenta silenciá-las, este filme é um globo espelhado girando, refletindo luz onde havia sombra. E, como canta Raquel em “Mudanças”, é dançando, resistindo e existindo que se faz a revolução.


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