Bizarros Peixes das Fossas Abissais, dirigido por Marcelo Fabri Marão, é uma animação nacional que acompanha uma protagonista excêntrica, capaz de transformar partes do corpo em animais com simples frases evocativas, ao lado de uma tartaruga com TOC e uma nuvem com incontinência pluviométrica. Juntos, esse trio improvável embarca numa jornada rumo às profundezas do oceano em busca de uma planta medicinal para curar o Alzheimer do avô da heroína. Com vozes de Natália Lage, Rodrigo Santoro e Guilherme Briggs, o filme mistura humor nonsense, surrealismo e uma brasilidade pulsante, desafiando convenções narrativas e estéticas.
Olhando por uma lente queer, os protagonistas escapam de qualquer normatividade imposta. A protagonista, em especial, subverte expectativas ao transformar seu corpo – e sua bunda, especificamente – ao gritar “MINHA BUNDA É UM GORILA!”. Esse ato de metamorfose verbal e física é uma celebração da fluidez, da recusa às amarras do corpo normativo e da liberdade de ser absurdamente único. Seus companheiros, uma tartaruga neurótica e uma nuvem tímida, reforçam essa fuga do padrão, formando uma família escolhida que rejeita o binarismo e a sobriedade em favor de uma existência caótica e autêntica.
A direção de Marão é um destaque à parte, carregada de personalidade e ousadia. Com uma equipe reduzida – apenas ele, Rosaria e Fernando Miller na animação –, o filme abraça a técnica 2D tradicional em full animation, com movimentos fluidos que dão vida às transformações bizarras e às sequências de ação. Os traços variam entre o rudimentar e o detalhado, com cenários que oscilam de monocromáticos a explosões de cor, refletindo a improvisação teatral que guia o processo criativo do diretor. É uma animação que não teme a imperfeição, usando-a para lembrar que há mãos humanas por trás de cada quadro.
A memória é um fio condutor sutil, mas poderoso. A busca da protagonista pela planta curativa não é só uma aventura física, mas uma tentativa de resgatar o avô do esquecimento imposto pelo Alzheimer. O filme costura essa narrativa íntima ao caos surreal, usando a jornada como metáfora para o que se perde e o que se luta para reter. Os cacos de vaso que formam o mapa simbolizam fragmentos de lembranças, e Marão os entrelaça com humor e leveza, sem nunca deixar o peso emocional se dissipar por completo.
O clímax nas fossas abissais é um mergulho lisérgico que amplifica a estética fora da curva. As criaturas marinhas, guardiãs da planta, surgem em traços que evocam formas fálicas e vúlvicas, desafiando representações tradicionais da natureza. Essa viagem ao fundo do oceano é um balé de cores e formas mutantes, quase psicodélico, onde o absurdo se torna um espelho da imaginação sem freios. São seres que, como os protagonistas, existem fora de qualquer norma, reforçando a identidade subversiva do filme.
Bizarros Peixes das Fossas Abissais é um marco no cinema nacional por sua coragem de ser irreverente e autoral num cenário dominado por fórmulas seguras. Num país onde a animação ainda luta por espaço, Marão entrega uma obra que não se curva ao comercial ou ao infantilizado, mas abraça o estranho, o diferente e o profundamente humano. É um grito de liberdade criativa, um lembrete de que o cinema pode – e deve – ser um espaço para o inusitado, especialmente quando carrega raízes tão brasileiras quanto universais.
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