segunda-feira, 20 de dezembro de 2021

Deserto Particular(Brasil/Portugal, 2021)



A melhor maneira de abordar Deserto Particular, de Aly Muritiba, é revelar o mínimo possível sobre seus detalhes ou mesmo seu elenco. Cada batida, torção e volta são magnificamente montadas para criar uma experiência transformadora. Este é um filme surpreendente e requintado que compensa muito com uma explosão de calor e um sutil erotismo.

A história segue Daniel, Antonio Saboia, numa performance impressionante, um policial que perdeu o emprego após um ataque de violência. O vazio em sua vida, ocupado apenas por cuidar de seu pai demente, só é preenchido quando ele envia uma mensagem de texto para Sara, uma mulher que conheceu online. Quando suas mensagens de repente param de receber respostas, ele decide ignorar um encontro que está por vir com a justiça local e viajar de Curitiba para Sobradinho, na Bahia, cidade natal de Sara, para procurá-la.

O que Deserto Particular oferece é inesperado e gratificante: quando Daniel finalmente conhece Sara, o filme desperta com uma paixão ardente. Mudamos protagonistas e estrutura. E esse enredo transformacional leva a um pico inesquecível de emoção.


Aly Muritiba, o diretor e roteirista do filme, usa uma abordagem lenta para estabelecer personagens multidimensionais complexos que parecem ser opostos completos um do outro. Um não compreende seus próprios desejos e o outro está completamente seguro sobre eles, mas é pressionado por seu entorno para sufocá-los. Porém, ambos se sentem perseguidos, ou mesmo cativos, pela sociedade. Essa relação é reforçada ainda mais pela excelente transição do mundo repleto de testosterona de policiais e violência que Daniel habita para uma paisagem de cidade pequena em que Sara está fazendo experiências com sua identidade e o fará questionar e desconstruir o seu padrão de masculinidade.


Muritiba constrói com maestria o personagem de Daniel. Ele usa seu longo primeiro ato para mostrar que, apesar de seu exterior áspero e reações preconceituosas, há empatia e vulnerabilidade em algum lugar lá: você pode ter alguns vislumbres disso enquanto ele cuida de seu pai ou quando tenta se conectar com sua irmã, que se assume lésbica. O aspecto físico traz um toque de perigo para a trama também: seu corpo grande, olhar duro e dicas violentas do passado de que um súbito ataque de raiva pode destruir a vida dele e de Sara a qualquer momento.


Mas as resoluções da Deserto Particular não são derivadas da violência, mas sim de longos silêncios, confusão e compreensão. A evolução emocional de Daniel bate ainda mais forte do que qualquer explosão poderia ter permitido. Aqui temos este enorme policial do sul com um legado familiar militarista, abraçando seus desejos internos com gosto, o que permite que a construção sutil de erotismo venha à tona com uma força inesperada. Todo o seu arco parece o desabrochar de uma flor e, apenas nos últimos cinco minutos, você será capaz de apreciar toda a beleza.

O promissor Thomas Aquino é Fernando, o amigo de Sara e também oferece uma performance bastante convincente como um gay contemporâneo. Enquanto isso, Pedro Fasanaro, o Robson,  deleita um desempenho poderoso; ele é uma presença magnética tranquila, cuja autoconfiança inabalável o atrai para sua luta pelo amor.


O pano de fundo documental de Muritiba brilha enquanto ele cria uma imersão naturalista na cidade de Juazeiro, onde parte do filme foi rodado. O diretor de fotografia Luis Arteaga ilustra a curiosidade de Daniel quando ele chega a este novo mundo e usa as vastas paisagens para realçar as ideologias e modos de vida contrastantes entre os dois personagens principais. A cada cena, sua câmera o aproxima dos personagens, aliada ao uso inteligentíssimo da trilha que inclui uma cena, icônica e memorável, ao som de Total Eclipse of the Heart, de Bonnie Tyler.


De muitas maneiras, Deserto Particular parece uma ferramenta de compreensão cujo objetivo é reparar uma nação fraturada. Não é à toa que a jornada de Daniel vai do Paraná à Bahia, do Sul ao Nordeste. A história transporta percepções rígidas para uma calma e terrenos mais ternos onde a sensibilidade pode ser capaz de superar o preconceito. O filme é uma batalha de ideologias que, no fundo, se conciliam pela força do amor através de uma experiência sensorial cujo fogo escapa da tela para abraçar o seu coração.


Premiado nos Festivais de Veneza, Merlinka, Huelva, Recife e grande vencedor do Mix Brasil 2021, Deserto Particular foi o candidato do Brasil à corrida para o Oscar de Melhor Filme Internacional de 2022, infelizmente não selecionado.


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