Em “Vermelho Sangue”, o Cerrado mineiro se torna o palco de uma fantasia sombria e deliciosamente brasileira. A nova aposta do Globoplay mistura lobisomens, vampiros e paixões proibidas sob o luar de Guarambá, uma cidade fictícia que parece pulsar entre a lenda e o concreto. Criada por Cláudia Sardinha e Rosane Svartman, com direção artística de Patrícia Pedrosa, a série parte do imaginário do terror adolescente, mas o refaz com sotaque, paisagem e pulsação nacionais.
Letícia Vieira, vinda de um papel menor na novela “Vale Tudo”, protagoniza como Luna, uma lobimoça-guará, que vive sob o peso de uma herança monstruosa, transformar-se a cada lua cheia, sem controle sobre o próprio corpo. Seu encontro com Flora (Alanis Guillen), uma humana curiosa e inquieta, deflagra uma narrativa que é tanto uma história de amor quanto um rito de passagem. O romance entre as duas nasce no lugar do medo e do desejo, desafiando os códigos do gênero e abraçando a delicadeza de um amor que se transforma junto com as feras.
“Vermelho Sangue” prefere, na verdade, transformar o mito. O que poderia ser uma história de monstros vira um ensaio sobre identidade, aceitação e poder. Vampiros centenários, Michel ( Pedro Alves), com quem Luna forma um triângulo amoroso, e Celina (Laura Dutra), a mean girl com sotaque de Portugal, surgem como uma elite parasitária infiltrada na cidade, usando o verniz da tecnologia e da ciência para dominar o que resta de natureza e misticismo. A fantasia aqui é também crítica social, uma metáfora para exploração e controle, tanto do corpo quanto da terra, embalada por uma trilha sonora original etérea.
O olhar brasileiro é o sangue que corre nas veias da série. A escolha do lobo-guará, o maior canídeo das Américas, símbolo de resistência e beleza singular, ancora a narrativa em uma fauna própria, longe dos clichês europeus, pelo contrário lembra o realismo fantástico de Aguinaldo Silva e Dias Gomes. O Cerrado filmado com lente mística e calor mineral, o Santuário do Caraça, e os tons avermelhados que permeiam cada frame reforçam essa identidade. Há uma estética lunar e selvagem em “Vermelho Sangue”, como se o horror brotasse da própria terra, um visual que dialoga com “As Boas Maneiras”, de Juliana Rojas e Marco Dutra, mas num encontro como a saga “Crepúsculo”.
Mas a maior força de “Vermelho Sangue" está em sua camada simbólica: a licantropia como espelho da experiência queer. A transformação de Luna é, em essência, a metamorfose de quem precisa esconder, conter ou negociar sua própria natureza. O corpo que muda, o desejo que ameaça e a sociedade que teme tudo se entrelaça numa fábula brasileira sobre ser “demais” para o mundo e, ainda assim, reivindicar o direito de existir.
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