“Agua Salá”, estreia do colombiano Steven Morales Pineda, se inscreve no mapa do cinema queer latino-americano como um drama íntimo, árduo e perturbador. O reencontro entre Jacobo (Luis Mario Jiménez), um homem de 33 anos marcado por rachaduras invisíveis, e José Luis (Óscar Salazar), padre em processo de afastamento do clero após acusações de abuso, é a base de um filme que foge ao binarismo do vilão e da vítima. Mais do que confronto, Morales Pineda aposta em silêncios, olhares e tensões para explorar os nós entre trauma, paixões proibidas e afeto residual.
Filmado em Puerto ,Colômbia, o cenário costeiro se torna metáfora do estado interno de Jacobo: a oscilação entre calmaria e tormenta, a densidade da água salgada que envolve e sufoca. A fotografia de Andrés Sotomayor privilegia planos contemplativos, onde a ausência de diálogo força o espectador a habitar o desconforto. Cada pausa, cada respiração suspensa, revela mais do que as palavras poderiam.
O grande mérito de “Agua Salá” é não se satisfazer com a narrativa do trauma como ferida linear. Jacobo, adulto, sente não apenas ressentimento, mas também luxúria e um resquício de afeto pelo homem que o marcou na infância. Esse desejo contraditório, impregnado de culpa e repulsa, dialoga com a repressão religiosa e com a violência estrutural de uma sociedade católica. O filme se afasta do didatismo: em vez de apontar respostas, expõe as zonas cinzentas onde eros e dor se confundem.
Luis Mario Jiménez carrega o filme com uma performance de contenção magnética. Seu Jacobo é feito de gestos interrompidos, olhares que evitam e retornam, silêncios que pesam como monólogos. Já Óscar Salazar entrega um José Luis que não é pura monstruosidade, mas uma figura humana em ruína, entre vergonha, desejo e fragilidade. Juntos, os dois compõem um duelo íntimo que se desenrola menos em palavras do que na linguagem dos corpos.
Há coragem em “Agua Salá” ao tratar do abuso e do desejo queer de forma entrelaçada, recusando o conforto das soluções fáceis. Nesse sentido,se aproxima de obras como “Mysterious Skin”, de Gregg Araki, mas traz uma especificidade latino-americana: o peso da fé católica e a atmosfera litorânea da Colômbia. O caráter autobiográfico do projeto, Morales Pineda investiu suas próprias economias para realizá-lo e buscou inspiração em experiências pessoais, reforça a urgência e a verdade que perpassam cada cena.
Não há catarse em “Agua Salá”. O que resta é a inquietação: um filme que exige paciência e entrega, e que não teme colocar o espectador diante da contradição entre desejo e trauma. É uma obra que incomoda e resiste, marcada pela coragem de não oferecer respostas definitivas.
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