Releitura sombria de um clássico “A Meia-Irmã Feia” é uma reimaginação visceral do conto da Cinderela, dirigida por Emilie Blichfeldt. Fugindo do puritanismo açucarado das versões tradicionais, o filme adentra em uma atmosfera sombria que ressoa com o horror corporal de gêneros como os contos originais dos Irmãos Grimm. A paleta visual dessaturada, combinada com cenários opressivos e claustrofóbicos, contribui para transformar o reino encantado em um espaço de decadência moral e brutalidade estética.
A narrativa acompanha Elvira (Lea Myren), uma jovem submetida a transformações dolorosas e grotescas para se adequar ao ideal de beleza. Através de procedimentos como a costura de cílios, deformações faciais e o consumo de ovos de tênia, o filme usa o horror corporal para expor a crueldade dos padrões estéticos impostos às mulheres. Essas cenas perturbadoras não são gratuitas: funcionam como metáforas viscerais para a autodestruição interior provocada pela pressão social.
Blichfeldt subverte o arquétipo da Cinderela ao reconfigurar a identidade da protagonista e desafiar a divisão moral entre "boa" e "má". A linda e convencional Agnes, figura que representa o padrão dominante, assume o papel de antagonista silenciosa. Já Elvira, mesmo enquanto se submete a torturas físicas, emerge como a verdadeira vítima. Essa inversão questiona diretamente a ideia de que beleza é virtude, e feiúra, condenação.
A estética é um dos pontos mais contundentes do filme. A cinematografia de Marcel Zyskind, que pode ser comparada a uma pintura impressionista sombria, combina iluminação dramática e enquadramentos obsessivos que ressaltam as deformidades e torturas corporais com elegante precisão. Os efeitos práticos, muitas vezes desconfortáveis de assistir, aumentam o realismo grotesco da narrativa e criam um pacto silencioso com o público: "eu sei que não é real, mas eu sinto toda a dor" .
Embora o filme não se apresente explicitamente como queer, sua desconstrução radical dos papéis de gênero e dos padrões de beleza abre uma via crítica relevante para narrativas queer. Ao humanizar a figura tradicionalmente vilã da meia-irmã, “A Meia-Irmã Feia” devolve complexidade à personagem excluída, demonstrando empatia por quem não se encaixa nos padrões. Essa reviravolta cabe com interpretações queer de identidade, rejeição e autonomia frente à normatividade estética.
“A Meia-Irmã Feia” é, sem dúvida, uma experiência perturbadora. Com toques de humor ácido, body horror e crítica social afiada, Blichfeldt cria uma fábula tragicômica que corta fundo. O filme não busca agradar, ele quer confrontar. E, nesse sentido, é uma das releituras mais corajosas e memoráveis do conto da Cinderela em anos recentes.
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