O cinema raramente concede protagonismo a personagens intersexo, e é justamente nessa fresta que “Ponyboi”, de Esteban Arango, explode como um sopro de vida. Escrita e estrelada por River Gallo, pessoa intersexo não-binária, a narrativa nos leva por uma noite caótica em Nova Jersey, onde crime, romance e identidade se entrelaçam sob o brilho de luzes de neon. O filme, extensão de um curta de 2019, parte de um terreno conhecido, o thriller policial de erros, mas logo subverte o esperado ao centrar sua força em uma vivência que o cinema tradicional insiste em invisibilizar.
Gallo interpreta Ponyboi, balconista de lavanderia e trabalhadora do sexo, que sobrevive entre a marginalidade e o desejo de afeto real. Seu chefe abusivo, Vinny (Dylan O’Brien), controla tanto o espaço físico quanto a vida dos que o cercam, incluindo Angel (Victoria Pedretti), grávida e constantemente negligenciada. Quando uma transação de drogas dá errado e um mafioso morre em circunstâncias comprometedoras, Ponyboi se vê obrigade a fugir, levando consigo não apenas uma mala de dinheiro, mas também as marcas de um passado de rejeição e violência familiar.
O que diferencia “Ponyboy" de outros neo-noirs é a forma como a estética se coloca a serviço da subjetividade do protagonista. A fotografia de Ed Wu, saturada de néons e brilhos oníricos, traduz o choque entre dureza e desejo, entre a realidade cruel das ruas e os lampejos de romantismo que insistem em sobreviver. Em meio à perseguição surge Bruce (Murray Bartlett), um encontro breve mas que ilumina a possibilidade de ternura em um mundo marcado pelo desprezo. A cena do dueto improvisado é um instante de suspensão, em que Ponyboi vislumbra uma vida diferente, e o público também.
A atuação de River Gallo é o eixo central do filme. Alternando firmeza e fragilidade, elu entrega um retrato multifacetado de uma pessoa intersexo que negocia sua identidade a cada gesto, a cada olhar. Ponyboi responde por diferentes pronomes dependendo do interlocutor, e essa fluidez nunca é usada como piada ou estranhamento, mas como afirmação de autenticidade.
O elenco de apoio contribui para a densidade da narrativa. Dylan O’Brien se reinventa como vilão patético e ameaçador, Victoria Pedretti empresta calor e resiliência à amizade de Angel, e Indya Moore, de “Pose”, aparece como figura de acolhimento e inspiração, lembrando que outros mundos são possíveis. Todos orbitam ao redor de Ponyboi, mas é Gallo quem dita o ritmo, transformando cada cena em uma reivindicação política e emocional.
Mais que um thriller estiloso, “Ponyboy" é uma afirmação de existência. Ao dar espaço a uma voz intersexo em primeira pessoa, o filme se torna também manifesto, contra os rótulos, contra o apagamento, contra a violência de ser reduzido ao que os outros querem. É uma obra que mescla espetáculo visual com um grito íntimo por autodefinição. Cru, romântico e intensamente queer, o longa surge como marco, lembrando de que o cinema pode ser tão ousado quanto terno quando ousa olhar para quem sempre esteve à margem.
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