quinta-feira, 9 de outubro de 2025

Carrie: A Estranha (Carrie, EUA, 1976)


“Carrie, a Estranha”, de Brian De Palma, é  um pesadelo adolescente que, sob uma lente queer, se transforma em uma alegoria sobre repressão, performatividade e explosão identitária. Carrie White (Sissy Spacek) é a garota fora do padrão, não apenas social, mas existencial. Rejeitada por colegas e sufocada por uma mãe fundamentalista, ela encarna a figura do “monstro” moldado pela culpa e pela vergonha. De Palma filma Stephen King como terror é, em sua essência, a história de um corpo que desperta, e que o mundo insiste em castigar por existir.

A adolescência de Carrie é a metáfora perfeita da experiência queer: o medo de ser descoberta, o desejo de pertencer, a violência simbólica do olhar coletivo. Sua telecinese não é apenas um dom sobrenatural, mas o sintoma de um poder que tenta emergir sob o peso da repressão. É o corpo que não cabe no molde normativo, que acumula energia até transbordar.

A cena do baile é o epicentro da tragédia.  É ali que Carrie alcança, por um instante, o sonho da feminilidade idealizada, o vestido, a coroa, o príncipe. Ela performa o papel que o mundo exige: delicada, graciosa, normal. É o ápice da assimilação, o momento em que o “diferente” parece finalmente aceito. Mas esse instante é cruelmente interrompido pelo banho de sangue de porco, um outing forçado, uma revelação violenta que a expõe diante de todos. O sangue, símbolo de humilhação e de dor, torna-se também sinal de renascimento.

O massacre que se segue é a catarse queer em seu estado mais puro: o retorno do reprimido, a insurgência do corpo punido. Carrie não mata apenas seus agressores; ela destrói o próprio sistema que os produz, a escola, o baile, o espetáculo da normalidade. Sua fúria não é vingança, é libertação. Em chamas, ela encarna a potência da diferença quando não cabe mais dentro da norma. O fogo é sua última performance, e também seu batismo.

Há algo profundamente trágico e belo em sua queda. Como tantas narrativas queer, “Carrie” termina em isolamento, culpa e destruição, mas o filme permanece como um exemplo da diferença. De Palma filma a dor como um show, mas é impossível não sentir empatia pela heroína que o mundo quis transformar em monstro. O terror que ela provoca é o reflexo do medo social diante do desvio, da mulher que ousa ocupar o centro da cena e que, por isso, precisa ser aniquilada.

Rever “Carrie” hoje é reconhecer nela o eco de tantas existências queer silenciadas. É entender que o horror não está nos poderes de Carrie, mas nas violências que a moldaram. No sangue derramado está a marca da vergonha imposta  e também a promessa de libertação. De Palma constrói, talvez sem saber, uma tragédia sobre o custo de existir fora da norma: uma menina que sangra, arde e, no fim, ilumina o mundo que tentou apagá-la.


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