Por Bruno Weber O "lugar de fala" é muito mais do que uma questão de ocupação de espaços ou da importância de se ouvir opiniões diversificadas. É uma oportunidade de questionamento daquilo que sempre foi tratado como certeza, da versão "oficial" dos fatos, contada e recontada sem a participação de seus atores principais. A quem serve essa versão? Por que a inserção de novas vozes narrando suas próprias experiências e pontos de vista encontra tantos obstáculos? Até mesmo dos ditos "aliados"? Essas perguntas ocupam a mente de João, uma atriz portuguesa que aceitou participar de um filme sobre outra João, uma personagem histórica conhecida como João Liberada, que foi perseguida pela Inquisição Portuguesa pelo crime de "sodomia". E seus atritos com o diretor do filme surgem exatamente dessa hipocrisia entre querer contar histórias de pessoas LGBT e ao mesmo tempo se recusar a escutá-las.
Paula Tomás Marques dirige "Duas Vezes João Liberada" aplicando camadas de metalinguagem para criar uma narrativa que se aprofunda no próprio ato de contar histórias. Ao mesmo tempo que é o primeiro longa da diretora, o filme recria bem o estilo de produção de baixo orçamento feito por talentos estreantes, categoria da qual ele próprio faz parte. Assim como a escalação da atriz June João para o papel principal, refletindo a conexão que a personagem-atriz sente com a figura histórica que interpreta. Ela, que também assina o roteiro em parceria com a diretora, fala ao público sobre seu cansaço em ter que sempre lidar com o lado trágico e sombrio da experiência queer em todo projeto de que participa - são sempre histórias focadas em tristeza e abuso, invariavelmente terminando em morte. E mesmo que ela se sinta atraída por interpretar um papel feito especificamente para uma mulher trans ou pela chance de trabalhar com uma equipe composta apenas por pessoas LGBT, isso não impede que ela se sinta destratada ou ignorada. São falas que se confundem entre a June João roteirista e a João personagem. O uso da narração em voz off que ocupa boa parte do filme também serve como comentário. Se o diretor do filme sobre Liberada se recusa a ouvir as opiniões de João e a trata com descaso em vários momentos, o filme que nós estamos vendo é guiado unicamente pela sua voz.
Mas o principal elemento de metalinguagem se manifesta quando João começa a perceber que as filmagens estão sendo assombradas pelo fantasma da "verdadeira" João Liberada. A personagem - que na realidade não existiu e foi criada pelas roteiristas baseando-se em documentos históricos sobre o Santo Ofício - ressente a forma que está sendo retratada na história. Suas manifestações surgem em cena como estática e falhas na projeção, que na realidade dentro do filme parecem aos personagens como falhas de equipamento, sons e luzes estranhas ou paralisias inexplicáveis. Ela também surge como uma imagem translúcida que visita o apartamento de João enquanto ela dorme, a observando com um ponto de vista que parece o de uma câmera de visão noturna. E em certo momento decide se dirigir diretamente a ela, com uma voz distorcida de áudio estourado (mas acompanhada de legendas).
A escolha de retratar um fantasma dessa forma traz uma reflexão sobre essa estranha magia que o cinema possui. Um show de luzes conjurando espíritos do passado, forçando verdade e ficção a coexistir. Ao mesmo tempo, o fato de Liberada ser uma distorção atrapalhando a projeção indica que essa coexistência pode não ser tão pacífica, e precisa ser apaziguada. Tanto que a partir do momento que Liberada fala com João, o filme que estamos vendo se confunde com o "filme dentro do filme". E ele vai aos poucos se transformando num atestado sobre como as dívidas históricas devem ser pagas no presente. Mesmo que seja através da insistência da possibilidade de um final feliz na história de uma mulher trans vivendo na Idade Média.
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