terça-feira, 5 de julho de 2022

Peter Von Kant(França, 2022)


No começo dos anos 2000, o realizador francês François Ozon mostrou sua devoção pelo mestre do Novo Cinema Alemão, Rainer W. Fassbinder, adaptando Gotas D’Água em Pedras Escaldantes, uma de suas peças nunca encenadas. Desta vez, Ozon celebra Fassbinder em uma versão livre de As Lágrimas Amargas de Petra Von Kant(1972), que funde a essência dos dois artistas.


O filme de Fassbinder se passa inteiramente no apartamento de uma estilista que tem um relacionamento emocionalmente abusivo com sua assistente, e então concebe um amor louco e desesperado por uma bela jovem que a trai abertamente. Ozon faz alguns desses personagens homens, mas apenas alguns.

Ao trocar o gênero e a profissão do protagonista, de estilista para cineasta, Ozon e o ator Denis Menochet, em uma performance tour de force, personificam o próprio Fassbinder, inclusive em maneirismos e compulsões. Peter von Kant é uma criatura fascinante e excêntrica, um homem condenado à autodestruição por sua próprio egocentrismo melancólico.

Em Colônia, da década de 1970, o filme  abre com Karl (Stéfan Crépon), o assistente submisso e humilhado de Peter Von Kant. Ambos coexistem em uma espécie de unidade complementar no microcosmo ornamentado que é o apartamento, praticamente a única locação do filme. Karl atende tudo e absolutamente tudo o que seu mestre manda.

Assim como na primeira versão, a dinâmica que crepita sob esse cotidiano do assistente, se baseia em uma lógica sadomasoquista, aqui desprovida de sensualidade e que, no entanto, é impossível conceber de outra forma.


Um dia a atriz e cantora Sidonie, maravilhosamente interpretada por Isabelle Adjani, em alusão à Ingrid Caven, apresenta seu amigo Peter ao jovem Amir(Khalil Gharbia), por quem o diretor se apaixona e sucumbe.

Amir, o inexperiente e tímido objeto de desejo, representa o reverso do perturbado Von Kant: um garoto atlético, sem instrução e órfão; banal e hedonista, mas faminto de ser, de existir na retina da lente, na memória coletiva. Von Kant promete o mundo a Amir, em troca de seu corpo e declara um amor histérico por ele.

Os dois se enredam, diante dos olhares indiscretos de Karl, em uma relação tórrida que oscila entre os papéis de pai-filho e mestre-aprendiz. O voraz Amir logo se rebela contra o status quo e condena o dominante Von Kant a uma espiral de loucura no meio da manhã. Cocaína e gim-tônica estão constantemente presentes, enquanto a delicadeza da câmera assiste, com recursos técnicos sofisticados, um desenvolvimento teatral, que possui belíssimos momentos musicais.

O jovem Amir, é uma alusão inconfundível a El Hedi Ben Salem, que não só interpretou o imigrante marroquino Ali, em O Medo Devora a Alma(1974), mas também foi amante e parceiro de Fassbinder. Hanna Schygulla, que vive a modelo Karin no original, de 1972, por quem Petra von Kant se apaixona perdidamente, aparece aqui lindamente como a mãe do diretor-estrela.

Von Kant é sua própria obra, que substitui o mundo feminino e perucas por enormes cartazes, fotos e mais fotos, câmaras e reinterpreta aquela estética decadente dos tons dourados de Gustav Klimt por uma tonalidade dos vermelhos POP saturados de Pedro Almodóvar.



Seu apartamento é riquíssimo em detalhes, cobertos de obras de arte, pôsteres e uma mítica devoção à São Sebastião. Ele vive um estilo de vida barroco que combina com suas origens bávaras. Entre anjos de Caravaggio e sofás exuberantes ele cede aos seus vícios e luxúrias.

A dinâmica é definitivamente diferente agora que há homens e mulheres na tela: é menos claustrofóbico, embora igualmente teatral. Von Kant sussurra, delira, blasfema, ruge e uiva, rola sobre camas e sofás, bebe dia e noite e se enfurece em seus aposentos. Neste personagem, o gênio e a loucura não estão apenas intimamente relacionados, eles dançam juntos ao som das canções.

Os traços cômicos e paródicos de Von Kant logo se deformam para uma conjunção autodestrutiva, uma histeria de copos contra a parede e destruição de móveis que nem mesmo a visita de sua filha (Aminthe Audiard), uma adolescente caricatural, nem a da própria mãe, podem parar.

Peter Von Kant ama a vida e o amor, e sofre de ambos igualmente. Assim como ele finge querer viver o amor como liberdade, ele se apega às pessoas ao seu redor. Ele desconta seu mau humor em Karl, uma presença impressionantemente encenada, usando apenas expressões faciais e gestos.


Com sua homenagem sempre divertida, François Ozon reverencia não só ao diretor alemão, mas também a cultura cinematográfica. Amantes do cinema vão adorar as inúmeras alusões à clássicos da história da sétima arte que percorrem o longa. Ao mesmo tempo, Peter Von Kant não é uma reverência cega à Fassbinder, mas um tributo irônico.




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