quarta-feira, 27 de dezembro de 2023

Temporada de Furacões(Temporada de Hurracanes, México, 2023)

No longa, um assassinato horrível é cometido no período que antecede a temporada de furacões, que é conhecido por levar as pessoas à loucura. Embora isso só seja mencionado uma vez no filme, um calor opressivo como a calmaria antes da tempestade domina toda a história. A tensão opressiva que se segue torna o filme cativante e difícil de assistir.

Baseado no best-seller, de Fernanda Melchor, considerado impossível de adaptar devido à complexidade de suas descrições detalhadas e ao fio da consciência narrativa, o filme dirigido por Elisa Miller nos leva à cidade de Veracruz cheia de segredos, violência e morte.


Em um dos canais nos arredores de Veracruz, um grupo de adolescentes encontra o cadáver de La Bruja (Edgar Treviño). Esse fato marca a comunidade e desencadeia fofocas por parte dos vizinhos ávidos por saber a verdade, mas poucos sabem os reais motivos por trás do crime, os segredos da cidade e a realidade de seus habitantes.


Como uma pessoa transgênero, La Bruja teve que lidar com muita homofobia e transfobia. Além de bruxa, ela também é chamada de bicha e cadela. Como na vida real, muitos desses homofóbicos são totalmente hipócritas.

A vida noturna escondida na pequena vila mexicana está vindo à tona cada vez mais devido ao assassinato e à busca pelo autor. O roteiro, adaptado pela diretora junto com Daniela Gómez, faz uso particular do efeito Rashomon (popularizado por Akira Kurosawa em seu filme de mesmo nome) para adicionar camadas de profundidade à história com o testemunho de cada personagem. 




Essencialmente, a Temporada de Furacões é dividida em segmentos onde a mesma história é contada a partir da perspectiva de uma nova pessoa. Num momento é da visão de mundo de uma menina grávida de 14 anos, no outro é um jovem que se sente no direito a uma vida melhor e roubado da liberdade.


Por outro lado, cada uma dessas histórias nos apresenta problemas complexos da realidade mexicana: abandono familiar, abuso infantil, gravidez na adolescência, prostituição, crime organizado, machismo, violência doméstica, repressão sexual, homofobia.


O filme impressiona pela parte técnica: a cinematografia, de María Secco, ajuda a transmitir a decadência e a pobreza da cidade através de uma câmara em constante movimento que recorre a tomadas longas e sem cortes, não para exibir a maestria por detrás das lentes, mas para privilegiar as atuações do elenco. 


Com Temporada de Furacões, Elisa Miller nos convida a contemplar um microcosmo da realidade de milhões de mexicanos através de seu engenhoso roteiro. Suas imagens não usam filtros românticos: são cruas e sórdidas. 


No final, o filme apresenta a família, o machismo e a crença no sobrenatural como nuvens negras flutuando sobre o território, sempre esperando o momento certo para desencadear a tempestade.


terça-feira, 26 de dezembro de 2023

Days of Happiness(Les Jours heureux, Canadá, 2023)

Dirigido por Chloé Robichaud, Days of Happiness acompanha uma ambiciosa maestrina de música clássica, Emma(Sophie Desmarais), enquanto ela enfrenta uma série de obstáculos pessoais e profissionais. 


A busca pela perfeição, inevitavelmente comparada à Tár, de Todd Field, pode ser atribuída a Patrick (Sylvain Marcel), agente de Emma, que também é seu pai.  Desde a infância, ela tem um relacionamento tóxico Patrick devido à violência intrafamiliar. Emma está romanticamente envolvida com Naelle (Nour Belkhiria), uma violoncelista da orquestra e mãe solteira com seu filho Jad (Rayan Benmoussa).


Ironicamente, esse romance complicado lhe proporciona uma fonte de felicidade que ela não poderia obter de seu pai. No entanto, isso também desencadeia a insegurança de Emma de tempos em tempos; ela e Naëlle não veem olho no olho em termos de tornar seu relacionamento público, e Naëlle ainda não resolveu seus casos com seu ex-marido.


O roteiro é construído em torno de três músicas de Mozart, Schoenberg e Mahler de naturezas muito diferentes e que servem como espelhos da evolução da protagonista.



A participação cúmplice e completa da Orchestre Metropolitain permite, através de ensaios e concertos, saborear as atuações do conjunto e sua líder em interpretações em que os redemoinhos de música se combinam harmoniosamente com os gestos e as instruções precisas de Emma.

A cinematografia, de Alex Méthot, luminosa mesmo nos momentos mais sombrios, acompanha Emma pelos corredores de sua vida e obra enquanto abraça a beleza do mundo ao seu redor. 


Usando a música como metáfora para explorar as maneiras como a história pode se repetir de diferentes maneiras – às vezes silenciosa, às vezes contundente, às vezes lenta, às vezes rápida – Days of Happiness tem tudo a ver com as maneiras como somos tratados e podemos reverberar na maneira como tratamos os outros.


Mas tudo isso depende da atuação convincente de Sophie Desmarais como Emma. Há algo em seu olhar poderoso que dá vida – e quase trai – às emoções enterradas profundamente na personagem. E ela encarna a alma torturada de alguém que está apenas começando a perceber que pode ter a vida que merece, se lutar por isso.



TOP 10 FILMES LGBTQIA+ 2023

 

Chegou a hora do ‘eu não concordo com você’ e ‘está faltando esse’. É o momento da tão aguardada lista dos Melhores Filmes LGBTQIA+ do ano. E 2023 mais uma vez, foi lindo para o cinema queer, com narrativas transbordando para (quase) todos os lados da sigla. Foi um ano de grande representatividade feminina na direção(há quatro mulheres na lista), e também de pessoas trans. Os Festivais trouxeram o que há de melhor, enquanto alguns títulos chegavam com exclusividade em streamings, como a Mubi e a Prime Video. Muitos longas também ocuparam as salas dos cinemas, embora a distribuição ainda seja limitada, o que deixou a página inacessível a alguns títulos por questões geográficas, como o tão bem comentado Monster, de Hirokazu Koreeda. Por isso a lista inclui filmes de 2022 e 2023, majoritariamente lançados esse ano e alguns ainda inéditos em circuito.



Blue Jean é o longa de estreia da roteirista e diretora britânica Georgia Oakley. 1988, a Inglaterra e o governo conservador de Margaret Thatcher estão prestes a aprovar uma nova legislação controversa que estigmatizará a comunidade gay e lésbica. A infame seção 28 tornava ilegal que as escolas ‘propagassem’ a homossexualidade.


09 - Nimona(EUA, 2023)


Nimona é um filme animado desenvolvido a partir de uma história em quadrinhos queer escrita por um autor trans. É importante entender que a maneira como a alegoria transgênero é expressa, impressionante e autêntica, claramente enraizada nas próprias experiências do criador ND Stevenson.


Mutt é uma representação trans masculina como poucas vezes vista. No filme, de Vuk Lungulov-Klotz, Feña(Lio Mehiel), um jovem transgênero, tenta manter sua vida estável durante uma noite e um dia caóticos, em Nova York, em que o passado continua se afastando dele enquanto o presente lança novos obstáculos.


07 - Saltburn(Reino Unido/EUA, 2023)

AME OU ODEIE! Saltburn, de Emerald Fennel, é uma obra magistral e opulenta, que começa como um romance de amadurecimento com uma atmosfera acadêmica sombria, mas logo a diretora decide mudar o ritmo e usa o aristocracia inerente ao motor de sua história como uma máscara por trás da qual se esconde a descida à violência ditada pela oposição entre sexo e poder.

06 - Le Paradis(Bélgica/França, 2023)


Le Paradis, de Zeno Graton, é muito mais do que uma variação do amor LGBTQIA+, porque é além de um filme de amor prisional e confinamento é uma relíquia cinéfila. O longa deliciosamente homenageia uma cena clássica de Un Chant D’Amour, obra prima e único filme realizado por Jean Genet, em 1950.



O filme, de Christophe Honoré é regado por um tom biográfico e  portanto, uma história cheia de dureza e devoção, entre o retraimento e a autoexposição, comovente, avassaladora, poderosamente devastadora, e de fácil identificação, principalmente por quem já passou pelo processo do luto.

04 - Monster(Kaibutsu, Japão, 2023)


O caminho escolhido por Hirozaku Kore-Eda para contar a relação entre os meninos Minato e Eri se desdobra, em três atos diferentes, que apresentam a história primeiro do ponto de vista dos adultos e depois das crianças. A versão adulta dos acontecimentos é parcial, falaciosa, obscurecida pela necessidade de proteger aqueles que são percebidos como os mais fracos, mas também pela necessidade de se conformar a certas normas sociais. 


03 - Anhell69(Colômbia/Polônia/França/Alemanha, 2022)


Em torno de um making of documental, Theo Montoya constrói uma exploração cinematográfica em estrutura arbórea. Uma obra criativa e ousada, cuja monstruosidade de uma sociedade empurrada para suas margens é apresentada como um ressurgimento do despertar das consciências.


02 - 20.000 Espécies de Abelhas(20.000 Especies de Abejas, Espanha, 2023)


20.000 espécies de abelhas, de Estibaliz Urresola Solaguren, conta a história de um verão catalão e a busca de uma criança por identidade. Ele também fala de mulheres de três gerações que precisam se unir pelo bem da criança. Como as abelhas homônimas que a tia de Lucía mantém como apicultora, cada mulher assume um papel específico na estrutura familiar. Em um feito inédito, a pequena Sofia Otero, com então 8 anos, ganhou o Urso de Prata, no Festival de Berlim.

01- Pedágio(Brasil/Portugal, 2023)


Nada mais coeso para ocupar o topo da lista do que um filme sobre nossa realidade social e vivências retrógradas. Em seu segundo longa-metragem, a roteirista e diretora Carolina Markowicz , explora a desconcertante dualidade da existência humana em um conto de amor de uma mãe sendo guiada ao contrário, para custear a ‘cura gay’ do filho, influenciada por uma direita ultrapassada.


ATUALIZADO EM 07/01/2024


GOSTOU? QUE FILME FICOU FALTANDO? LÁ NO LETTERBOXD, DA PÁGINA, ESTENDEMOS PARA UM TOP 20.




quinta-feira, 21 de dezembro de 2023

Úsvit(República Tcheca/Eslováquia, 2023)

Helena (Eliška Křenková) vive uma vida aparentemente ideal como esposa de Alois (Miloslav König), um jovem e promissor diretor de uma fábrica nascente e de uma cidade operária adjacente em algum lugar da Primeira República da Eslováquia. Esta é uma era de rápida modernização, e o jovem casal a incorpora em toda a sua extensão.

O entusiasmado Alois constrói uma nova sociedade envolta em torno de um modo de pensar capitalista predatório, seguindo o exemplo de Zlín, de Baa, e sua esposa grávida e educada mantém relações com os trabalhadores apesar de todas as dificuldades, cultivando-os, entre outras coisas.


No entanto, a utopia nascente é abalada pela descoberta do cadáver de um recém-nascido com ambos os órgãos genitais. Alois entende tudo como uma tentativa de sabotagem. Segundo ele, o que ele percebe como um monstro foi desenterrado em algum lugar de um cemitério e plantado em um canteiro de obras, a fim de criar rumores sobre a nocividade da fábrica e colocar investidores e vendedores de terras em seus calcanhares.


Helena não entende essa escalada porque, como médica que não concluiu os estudos, sabe que a criança deve ter nascido no local e morrido logo após o nascimento. Sua genética pode ser intersexo(o filme usa o termo ultrapassado hermafrodita), e por isso ela foi jogada fora.


Não se trata de uma conspiração ou sabotagem, mas de uma tragédia pessoal. Entre os trabalhadores, as pessoas sem instrução, que vêm em sua maioria de famílias religiosas que vivem à moda "antiquada", é necessário encontrar uma pessoa intersexo e ajudá-la. Helena confronta seus próprios preconceitos quando percebe que vem negando o arbítrio a um indivíduo capaz de se autodeterminar. O filme navega em direção a um drama socialmente consciente e de gênero através de uma subtrama queer estrelada pelo ator trans Richard Langdon.


O roteirista,Miro Šifra, e Matej Chlupáček, o diretor, tecem uma história contemporânea dentro do tecido de conjuntos e convenções sociais de uma época passada, os anos 30, mergulhando em temas de diversidade e normas. Helena, uma mulher inteligente, sarcástica e independente, desafia a noção padrão do período de uma esposa de troféus obediente, e sua descoberta igualmente desafia o tema tabu do(na época) hermafroditismo.


O filme contém várias passagens animadas, da talentosa Diana Cam Van Nguyen, que não se encaixam necessariamente com o resto da obra. São animações adultas que servem de didatismo para o público sobre a formação genital de pessoas intersexo.


A narrativa muda rapidamente do crime para o drama da emancipação, à medida que Helena confronta o conservadorismo social, particularmente em relação ao gênero, enquanto lida com sua própria identidade e papel social. Úsvit aborda questões atuais dentro de um contexto de período para ressaltar o quão pouco mudou.




quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Our Son(EUA, 2023)

Gabriel (Billy Porter) e Nicky (Luke Evans) são casados há 13 anos e têm um filho de oito, Owen (Christopher Woodley). Gabriel é o principal cuidador – amoroso e atencioso, talvez até demais. Nicky, um editor de livros workaholic, tende a engarrafar seus sentimentos.

Depois de uma breve introdução de brigas conjugais típicas e menores, como permitir que Owen durma em sua cama à noite, Gabriel anuncia que tem um amante e não está feliz. Nicky é cego, mas disposto a lidar com isso, mas Gabriel é obstinado. Ele quer o divórcio.


Embora ele certamente nunca se arrependa de sua escolha, ele se ressente de Nicky por não ter um relacionamento melhor com seu filho e por colocar seu próprio relacionamento em segundo plano. Ao encontrar amor e afeto em outro lugar, ele também determina que o casamento acabou, pedindo o divórcio. Agora, o desafio passa a ser estabelecer novas rotinas que tirem todos da zona de conforto, e como fazê-lo no melhor interesse do filho

O diretor Bill Oliver (que co-escreve com Peter Nickowitz) criou um filme que fala para muitos que tiveram que passar pelas dificuldades do divórcio e da custódia. O longa captura a angústia e o desgosto de um rompimento e como as coisas podem se tornar desagradáveis tão rapidamente em meio ao estresse dessa mudança monumental.


Também explora como o fim do relacionamento afeta aqueles ao redor do casal, não apenas Owen, mas seus amigos que sentem que precisam se manter neutros e tentam evitar "escolher lados".


Our Son cobre todas as principais batidas de um divórcio. O conflito inicial que leva ao rompimento, as discussões sobre quem deve ter o quê, contando aos respectivos familiares, e a eventual resolução chegando a um acordo com esse evento da vida


Há algo impactante em Our Son que não apenas destaca como passar anos com alguém pode mudar uma pessoa, como ter um filho pode mudar uma dinâmica ou não ter um diálogo aberto ao longo de um relacionamento pode levar a um ponto de ebulição que vai mudar o cenário do relacionamento para o futuro. 


Esta é uma história tão rara e tocante, vangloriada por duas performances incrivelmente fundamentadas e comoventes que levam Our Son para o próximo nível, deixando-o brilhar e mostrar que mesmo algo tão forte como o amor não impedirá que as pessoas sejam hediondas se forem jogadas contra a parede.


Friends & Family Christmas(EUA, 2023)

Em uma reviravolta inesperada, Daniella(Humberly González) e Amelia(Ali Liebert) se veem enroladas em uma farsa natalina orquestrada por seus pais bem-intencionados. A premissa é simples: elas concordam em fingir um relacionamento amoroso para trazer alegria para suas famílias durante a época das festas. Mal sabem elas que essa parceria simulada evoluirá para algo muito mais profundo.

À medida que o filme, de Anne Wheeler, para o canal Hallmark, avança, Dani, que é fotógrafa, num aceno para Carol, e Amelia embarcam nesse romance falso e o motivo inicial de apaziguar seus pais gradualmente fica em segundo plano para a conexão genuína que floresce entre elas.

Passar mais tempo juntas permite que elas descubram camadas de compatibilidade e compreensão que vão além da superficialidade do acordo inicial. A pretensão de um romance natalino inesperadamente se transforma em uma jornada de autodescoberta e na formação de um vínculo.


Tendo como pano de fundo o Natal e as expectativas familiares, Daniella e Amelia navegam pelas complexidades de seu relacionamento em evolução. O que começa como uma farsa se torna um conto emocionante de duas mulheres descobrindo interesses, valores e risos compartilhados. 


Elas fazem coisas de Final de Ano que são típicas da Hallmark, como compras de árvore de Natal e creme de hortelã-pimenta. Se vestem com roupas típicas e andam por cenárias iluminados e com neve. Elas inclusive pegam uma van emprestada e carregam um enorme urso de pelúcia de Natal.

No espírito natalino, o romance de Dani e Amélia se torna um testemunho da magia que pode se desenrolar quando as pessoas se abrem para possibilidades inesperadas. À medida que circulam pelas nuances de seus sentimentos em evolução, as festividades de fim de ano se tornam um pano de fundo para uma história de amor que transcende a sexualidade.




segunda-feira, 18 de dezembro de 2023

Shoulder Dance(EUA, 2023)


S
houlder Dance tece uma exploração cativante da sexualidade, relacionamentos abertos e bissexualidade. Na conexão humana, a dança do desejo emerge como uma coreografia fluida e em constante mudança.

Os ritmos de nossos interesses e identidades sexuais ondulam, criando uma tela dinâmica que captura a essência da autodescoberta. Em Shoulder Dance, vemos personagens navegando pelo delicado equilíbrio entre amizade e emaranhamentos românticos. O filme torna-se um reflexo da natureza multifacetada das relações interpessoais.


Ao mergulhar na vida de dois casais, um gay e um hétero, o filme se torna um testemunho da natureza universal das relações. Enquanto os personagens lidam com jogos sedutores, indulgência e revelações desvendadas, Shoulder Dance toma uma narrativa comovente que explora as profundezas de nossos próprios corações .


O filme segue Ira(Mat Dallas) e seu namorado de longa data Josh(Taylor Frey), enquanto seu pacífico esconderijo é interrompido. Eles são surpreendidos pela chegada repentina do ex-melhor amigo de colégio de Ira, e eterno crush, Roger(Rick Cosnett), e sua namorada, Lilly(Maggie Geha). O que  segue é um fim de semana repleto de vinho, jacuzzi e risadas repletas de novas diversões arriscadas introduzidas por Roger e Lilly.


As linhas escorregadias entre amigos, amantes e parceiros ameaçam tropeçar. O diretor Jay Arnold, cria um conto refrescantemente romântico e brutalmente honesto. Tudo a partir de um fim de semana quase perdido de libertinagem sexy, confissões verdadeiras e realizações inesperada


O cineasta mostra a dinâmica do que acontece quando emoções há muito suprimidas ressurgem e quando o delicado equilíbrio dos relacionamentos é colocado à prova.


retrospeQUEERtiva 2023


Chegou a hora daquele balanço anual. Dessa vez, por uma questão de praticidade e engajamento, a retrospeQUEERtiva será no formato THREAD, no X/TWITTER, por isso reduzida, e não será dividida por temas,, como no ano passado, mas sim por meses. Então bora embarcar nessa breve viagem do tempo e conferir o que 2023 nos trouxe de melhor(e pior) no audiovisual LGBTQIA+.

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sexta-feira, 15 de dezembro de 2023

Bodyshop(Hong Kong, 2022)

O diretor de Hong Kong, Scud, possui um trabalho único. Em Bodyshop, combina sexo extremo, nudez e cenas de estupro com entrevistas do tipo documentário, referências de suicídio, até mesmo clipes de seus filmes anteriores.

Perturbado por dois estupros, um jovem comete suicídio. Ele se torna um fantasma nu e comparece ao seu próprio funeral. Ele também desenvolve o poder de possuir outras pessoas. Após seu enterro, ele decide visitar sua irmã trans em Hong Kong.

Sua viagem o leva por Taiwan, Espanha, Tailândia e Japão. Ao passar por cada país, ele possui os corpos de outras pessoas, principalmente homens gays bonitos, causando orgia e caos em suas vidas sexuais. 


Scud está interessado na sobreposição entre formas tradicionais e modernas, espirituais e tecnológicas. Os personagens, fantasmas e humanos, carregam suas histórias e, nelas, vemos uma declaração poderosa sobre os efeitos persistentes de traumas pessoais, sociais e políticos.


Uma subtrama intrigante é a Bodyshop do título do filme. Este é um estabelecimento em Hong Kong onde os cadáveres podem ser levados e esculpidos, entre outras coisas duvidosas.


Encharcada de nudez e erotismo, essa é uma obra subversiva que toma como ferramentas cenas de sexo desinibido ou interlúdios musicais para apontar questões sociais desde relações íntimas até um clamor político mais amplo.



quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

La Bête dans la Jungle(França/Bélgica/Áustria, 2023)

O filme, de Patric Chiha, começa em uma boate francesa sem nome, em 1979 e vai até 2004, evoluindo na música, na estética e no cenário social. A estudante de história da arte May (Anaïs Demoustier) passou pela severa e misteriosa hostess, interpretada por Béatrice Dalle, e está dançando com seus amigos quando seu olhar de repente para em John (Tom Mercier), que está observando os dançarinos da varanda.

Das danças ainda ao ritmo da febre disco, sob o céu estrelado da Sardenha, começa uma odisseia histórica, passando pela exuberante new wave e as batidas pesadas do techno, serpenteando como um passo de dança pelos fracassos e sucessos da humanidade.

O cenário do filme, lembra o clássico, O Baile(1983), do diretor Ettore Scola, e funciona bem como pano de fundo para dilemas existenciais e os sentimentos não consumados de um casal de frequentadores de um clube bizarro.

Chiha construiu um verdadeiro vulcão de energia, cujas explosões movem as placas tectônicas da sociedade, o que é ansiosamente notado por um sismógrafo histórico vestido com roupas de baile ou calças de couro cravejadas. O cineasta elevou o material de origem, o conto homônimo de Henry James, de 1903, a algo muito diferente.


Muitas coisas acontecem no mundo exterior: François Mitterrand torna-se presidente francês, Klaus Nomi morre, observa-se um eclipse lunar, cai o Muro de Berlim, a crise da AIDS, perpetram-se os atentados terroristas de 11 de Setembro. Mas tais eventos só aparecem de fundo numa tela de TV.


A mesma atração que o clube e John exercem em May  é transmitida com uma incrível jovialidade visual. Vampiros, os personagens parecem existir apenas nesse clube, que também parece estar completamente afastado do mundo em suas cenas superestetizadas. Cenas de dança, música alta, close-ups expressionistas e cores impressionantes dominam a obra.


O design de produção, de Eve Martin, e os figurinos, de Claire Dubien, traçam a trajetória do clube e as pessoas que o habitam. Tudo acontece lentamente, esse acúmulo de mudanças incrementais, a iluminação inebriante mudando de vermelho vibrante e exuberante para branco estridente e, de repente, John e May estão caídos em um sofá desgastado olhando da varanda de um quarto, uma cena, uma comunidade que eles não reconhecem mais.


Por mais que La Bête dans la Jungle seja sobre sonhos não realizados, também parece um alerta sobre a potência do amor jovem, a sensação abrangente de ser notado e totalmente compreendido por outra pessoa cada vez como se fosse a primeira.

  


Todos os Incêndios(Todos los Incendios, México, 2023)

Mauricio Calderón Rico constrói habilmente uma narrativa universal ancorada em uma realidade local: o caos da adolescência, a confusão de sentimentos e emoções, combinada com o luto, o despertar sexual, o medo do abandono, perguntas que (ainda) não têm respostas.

O filme se passa em 2008, os meios técnicos que ocupam os jovens já existiam sem vampirizá-los. Bruno(Sebastián Rojano), junto com seu melhor amigo Ian(Ari López), que já se identificou como gay, filma os pequenos incêndios que aos poucos vão se tornando maiores. Ele posta seus vídeos no YouTube e faz sucesso, onde conhece Daniela(Natália Quiróz). 


Sua mãe Inés (Ximena Ayala) não faz nenhum esforço para entender esse hábito; em vez de enviar o incendiário para um psicanalista, ela fala sobre como quanto mais se afasta de Deus, mais perto se aproxima das mãos do diabo. E quando ela traz outro homem para dentro de casa,  Gerardo (Héctor Illanes), isso só empurra seu filho a aprofundar seu hábito; interrompendo o aniversário de Gerardo ateando fogo em uma decoração. 


Bruno foge para encontrar Dani. Mal sabe ele que o mundo dela o mudará para sempre. Isso ajuda a impulsionar o lento despertar que Bruno faz de um mundo de ingenuidade para sua própria sexualidade e seu esquecimento para a vida ao seu redor. 

Há, desde o início, uma química distinta entre Bruno e Ian. Quando eles estão apenas sentados conversando, algo sobre sua linguagem corporal os faz parecer um casal em vez de apenas amigos. Ian é abertamente gay, planejando se mudar para a Califórnia, onde imagina que achará mais fácil ser aceito do que no ambiente machista da Cidade do México. Bruno não desaprova isso, mas a vida lhe deu desafios suficientes, e é claro que ele quer muito ser hétero. 


Este conto se desenrola de forma enganosamente orgânica.  Há muito pouca expressão direta de homofobia. De fato, em muitos aspectos, a incerteza de Bruno sobre sua sexualidade fica em segundo plano em relação à outra grande questão de sua vida: lidar com a perda de seu pai e aprender a seguir em frente. Enquanto isso, outros personagens estão passando por dificuldades próprias, e seu eventual reconhecimento disso é essencial para que ele aprenda a mudar a forma como vive.

Rico entende muito bem a mentalidade do seu protagonista. A performance perfeitamente matizada e natural de Rojano transmite um personagem que ainda não está disciplinado, mas, talvez, queira ser, ou pelo menos esteja tentando encontrar um caminho para uma existência mais calma e estruturada. Mas isso requer autoaceitação e vontade de construir pontes em vez de apenas queimá-las.



segunda-feira, 11 de dezembro de 2023

Saltburn(EUA/Reino Unido, 2023)

Emerald Fennell ganhou o Oscar pelo roteiro de sua provocante estreia, Bela Vingança(2020), que foi viciosamente conflituosa, sóbria e maldosamente engraçada. Seu segundo longa, Saltburn, é selvagem, mordaz, lascivo e deliciosamente distorcido.

Barry Keoghan interpreta Oliver Quick, um  bolsista em seu primeiro ano na Universidade de Oxford em meados dos anos 2000. De longe, ele admira outro estudante, o sexy e privilegiado Félix (Jacob Elordi), cuja vida não poderia ser mais fácil. Quando Oliver se apaixona por Félix e sua vida, ele aceita ser convidado para um verão supostamente "relaxado" em Saltburn, a extensa e luxuosa propriedade rural da família aristocrática de Félix.

Lá, Oliver é recebido de braços abertos pela mãe de Félix, Elspeth (Rosamund Pike), e pelo pai, Sir James (Richard E. Grant). Há também a irmã elegante e eternamente bêbada , Venetia (Alison Oliver), que pode estar com Oliver mais do que seu comportamento vaidoso sugere, assim como seu primo queer gato e suspeito Farleigh (Archie Madekwe). 


O filme descasca as camadas de Oliver, que a princípio parece admirado e um tanto deslumbrado por estar na presença da riqueza da família Catton. Aos poucos, é revelado que há muito mais em Oliver do que parece. E há algumas coisas que ele faz no filme que podem  deixar os espectadores desconfortáveis.


Barry Keoghan, ao mesmo tempo perdido e implacável,  está, sem dúvida, diante da melhor performance de sua carreira. O espectador assiste a uma verdadeira descida infernal, a uma sucessão de violência, vingança, crueldade gratuita, em que Oliver é um espectador e um participante feliz, numa dicotomia entre luz e sombra que encontra no protagonista a sua marca.


Elordi também é muito bom em seu papel como Felix, que é superficial, mas é um membro menos tóxico da família Catton. Saltburn brinca com as expectativas dos espectadores sobre se Felix reconhecerá ou não a paixão óbvia de Oliver.

O longa tem uma cinematografia impressionante, de Linus Sandgren, que alterna entre tons brilhantes de luxo idílico e a escuridão sombria de segredos e decadência. O design de produção e figurino do filme também são suntuosos e a trilha icônica, inclui bandas como The Killers, MGMT, Ladytron, Bloc Party e The Arcade Fire.


Saltburn começa como um romance de amadurecimento com uma atmosfera acadêmica sombria, mas logo a diretora decide mudar o ritmo e usa o classismo inerente ao motor de sua história como uma máscara por trás da qual se esconde a descida à violência ditada pela oposição entre sexo e poder.


Há ecos de O Talentoso Ripley(1999), Segundas Intenções(1999), e todas aquelas histórias icônicas sobre riqueza obscena sendo vista através dos olhos de uma pessoa humilde, mas Fennell ressignifica o conto.

Armada com seu próprio estilo único e suprema habilidade cinematográfica, a diretora criou um filme magistral de fachadas perversas, uma obra hipnotizante que não se propõe a poupar os ricos. Neste mundo caleidoscópico, os abastados devoram-se.