quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Leme do Destino (Brasil, 2023)

Com quase 80 anos e na ativa desde a década de 1960, Júlio Bressane volta a abordar o amor sáfico, com uma vitalidade artística, imersa no contemporâneo, divagando sobre as relações, seus conceitos, e desequilíbrios físicos e emocionais.

Duas amigas de longa data, vividas por Simone Spoladore e Josi Antello, vivem uma história de amor. Ambas são escritoras que não querem publicar, mas fazer da escrita uma forma de experiência. Suas conversas, seus desejos, sua existência arriscada e seus fantasmas. As feridas da condenação permeiam o discurso: torna-se uma confissão.

O filme segue essa tonalidade, esse coração errante; aquela linha de fogo que separa os afetos. Bressane mais uma vez coloca em jogo sua concepção plural de cinema, compondo uma narrativa e estética peculiares que embelezam a tela com vários movimentos artísticos.

A imagem do filme é experimental, emulando teatro chinês, texturas, danças eróticas, e uma fotografia apurada por Pablo Baião.  É sobre estas  imagens que o diretor reflete e experimenta uma linguagem que às vezes é lisérgica e outras é contida.

É através da ruptura narrativa que o filme é levado a sua segunda parte ,focada no delírio amoroso desses dois seres humanos observados no meio da jornada de suas vidas: a paixão transborda, quebra padrões e barreiras, toda lei física perde seu sentido. 


É um filme literário com uma sensualidade poderosa, com duas mulheres em todo o seu esplendor cuja atração mútua. Uma das mulheres é então apaixonada por um homem e as coisas ficam complicadas, pois sempre que há amor há drama. As cenas ao ar livre na Praia do Leme, no Rio de Janeiro, são particularmente bonitas e tranquilas. Bressane confia tanto em seu filme, que não parece ter feito para nenhum tipo específico de público.



quarta-feira, 28 de agosto de 2024

Skunk (Bélgica/Países Baixos, 2023)

O diretor belga Koen Mortier mergulha no mundo turbulento de um adolescente negligenciado lutando com as cicatrizes de uma educação abusiva em seu último filme, Skunk. Adaptado de um livro de memórias, do psiquiatra infantil Geert Taghon, Mortier apresenta um olhar cru e inabalável sobre a vida de um menino arrancado de um lar caótico, apenas para enfrentar novos tormentos em uma instituição para jovens. 

Liam(Thibaud Dooms) é um garoto cujos pais não lhe deram um lar adequado. Eles organizam encontros sexuais coletivos, estão bêbados e drogados metade do tempo e o espancam sempre que querem. Quando assistentes sociais descobrem que sua situação doméstica não é mais sustentável. Liam é levado para um abrigo para adolescentes.


Depois de ser libertado do abuso por seus pais, Liam acaba sob os cuidados do Estado. Então em uma instituição de vida assistida para adolescentes traumatizados e difíceis, sua vida só se torna mais cruel. E Mortier inicialmente mostra essa própria instituição, encarnada por três assistentes sociais comprometidos, com um olhar totalmente benevolente, principalmente a psiquiatra.

A decisão de filmar em 16mm com o diretor de fotografia Nicolas Karakatsanis fundamenta ainda mais o longa em uma realidade corajosa. Thibaud Dooms, em seu papel de estreia como o protagonista, oferece uma performance que captura a dor e a fúria explosiva de um jovem lutando para navegar em um sistema que sempre falhou com ele.


Mortier, que também escreveu a adaptação, usa uma narrativa não linear e anacrônica com flashbacks para descascar as camadas do passado traumático de Liam. Essa narrativa fragmentada reflete a realidade desconexa dos sobreviventes de traumas, imergindo o público na miséria, na violência, na feiura e na sujeira da vida marginal.


Da casa de seus pais ao alojamento dos jovens traumatizados e, finalmente, ao tentar se reintegrar à escola, Liam é sempre pego em novos ciclos de violência. E o ódio alimentado por suas próprias experiências de brutalidade, que fervilha profundamente dentro dele, certamente não ajuda a desacelerá-lo. Quando uma agressão sexual brutal ocorre na instituição, uma escalada final torna-se cada vez mais aparente.



O Inquilino (Le locataire, França, 1976)

Esta adaptação cinematográfica de Le Locataire Chimérique, de Roland Topor, é o terceiro filme do que ficou conhecido como a trilogia do apartamento de Roman Polanski. Os outros dois são Repulsa ao Sexo(1965) e O Bebê de Rosemary(1968). Além do medo crescente no personagem principal, a outra semelhança é que esses três longas são em grande parte ambientados em um ambiente claustrofóbico. Polanski sempre negou que quisesse fazer uma trilogia, mas as semelhanças são inconfundíveis: paranoia, alienação, sexo, psicose, realidade subjetiva e moradias apertadas.

Trelkovsky, interpretado pelo próprio Polanski, é um funcionário de escritório nascido na Polônia que precisa constantemente lembrar às pessoas que ele é um cidadão francês. A escassez de moradias em Paris é enorme, então ele se sente muito agradecido por poder ter o apartamento em ruínas da egiptóloga Simone Choule, ainda não falecida, porque ela pulou da janela alguns dias antes.

O fim de seu coma marcaria o início de sua nova vida. Ele vai ao hospital e encontra Stella (Isabelle Adjani), uma amiga da garota. Como Stella é uma mulher atraente, Trelkovsky finge conhecer Simone, que está totalmente enfaixada, com a intenção de se aproximar de Stella. 


O filme estabelece um modo duplo de identificação. Primeiro, ele gradualmente assume as qualidades psicóticas da mulher que morava no apartamento e tentou suicídio. Então experimentamos sua lenta desintegração, observando impotentes as forças opressivas - seu amigo (Bernard Fresson), a concierge (Shelly Winters), o senhorio (Melvyn Douglas), a mulher do outro lado do corredor - intimando-o de maneiras abertas e sutis e fazendo com que ele se retire para outra identidade.


Mesmo que hoje sua abordagem fosse considerada problemática, a beleza de todo o horror gótico na obra de Polanski é que você sempre tem a sensação de que ele tenta rir disso. Aqui, é especialmente quando Trelkovsky começa a se vestir como Simone e descobre seu lado feminino, que a obra se torna ainda mais sombria.

O Inquilino é uma fantástica ilusão paranoica, é uma experiência crua e intensa, uma jornada de pesadelo para o inconsciente. Não há necessidade de terror físico, o verdadeiro horror é todo psicológico; a linha tênue entre realidade e loucura.




terça-feira, 27 de agosto de 2024

Os Vourdalak - Família de Vampiros (Le Vourdalak, França, 2023)

Dirigido por Adrien Beau, Le Vourdalak é um conto de vampiros adaptado do romance, de Aleksey Tolstoi, "A Família do Vourdalak" (que antecede Drácula, de Bram Stoker ). O filme apresenta um tipo muito diferente de história de vampiros. 

A história segue as desventuras de um marquês francês que busca refúgio com uma família peculiar, apenas para descobrir seu segredo obscuro: eles podem estar se transformando em vourdalaks! E a parte que realmente diferencia este filme dos outros é que o vampiro vilão é interpretado por um fantoche. 


Ao chegar na floresta perto da propriedade do Sr. Gorcha, o Marquês Jacques Antoine Saturnin D'Urfe (Kacey Mottet Klein) fica paralisado por uma bela mulher chamada Sdenka (Ariane Labed). Ele a segue na floresta antes de confundir com o seu irmão Piotr (Vassili Schneider, de Amores Imaginários) com ela e quase ser morto. Piotr gosta de usar roupas femininas de vez em quando. Depois de algumas desculpas, todas por parte do Marquês, Piotr traz esse estranho de volta à propriedade para conhecer o Gorcha. Piotr é um personagem masculino que reivindica sua feminilidade


Quando Jacques se instala na casa da família, ele encontra um elenco de personagens peculiares, incluindo Jegor (Gregoire Colin), que é casado com Anja (Claire Duburcq), e seu filho Vlad (Gabriel Pavie). 


 E em meio a esses personagens interessantes, um membro da família se destaca por razões óbvias: Gorcha, cujo retorno transforma a dinâmica familiar de uma forma arrepiante (mas exagerada). . O verdadeiro Vourdoulak não é um ator, mas um fantoche! Gorcha é interpretado por um boneco esquelético (dublado pelo diretor), que é como o Nosferatu, mas com uma rotina decente de cuidados com a pele. 


Com muitas referências à Jean Rollin, a Hammer e até A Dança dos Vampiros(1967), de Polanski, Le Vourdalak, é um filme sobre a prisão da masculinidade normativa e a polidez em seguir as normas sociais. O Marquês tem bom senso suficiente para saber que está em perigo, mas as regras sociais o impedem de tomar medidas eficazes. No meio do nada, ele ainda está usando maquiagem e penteando perucas, quando deveria sair correndo.


segunda-feira, 26 de agosto de 2024

Rei Charly (El Rey de los Machos, México, 2024)

Na cidade fictícia de San José de las Tunas, Charly(Luis Tirado), um jovem transgênero que passou recentemente por uma transição, participa do lendário concurso "El Rey de los Machos" para determinar quem é o jovem mais macho, num tradicional concurso do vilarejo.

Criada por Manolo Cohn e Gastón Duprat, a atração gira em torno de um concurso de ‘macheza’ em um povoado fictício que representa os valores conservadores da sociedade mexicana.


Ao longo do caminho a série vai desconstruindo a masculinidade enraizada na cultura mexicana, com Charly triunfando em cada prova, espelhando as contrações de um processo de mudança.


Charly não é apresentado como um mero jovem queer, mas como um indivíduo cheio de complexidades, camadas e questões pendentes a ser resolvidas. Em meio à provas de Touro Mecânico e Mariachi, ele irá deixar o amor florescer e mostrar o verdadeiro significado da masculinidade.


Christian Chávez, conhecido pela novela Rebelde, atua como Jerónimo, um prefeito corrupto, que vê nos resultados do concurso a oportunidade de ganhar votos. O personagem fornece boas doses de humor a série, que são dosadas por momentos mais sérios,  Do elenco adulto também destaca-se Alejandro de la Madrid, de Cuatro Lunas, como o amoroso pai de Charly.


Através de um olhar crítico a série não se limite a explorar apenas a experiência trans masculina, mas também masculinidade tóxica, transfobia, papéis de gênero e estruturas de poder.


Entre alguns tropeços, o mais bonito em El Rey de los Machos, é que a atração traz a questão da transmasculinidade para dentro da TV latino-americana, oferecendo um olhar fresco, sem ser didático, para que o espectador reflita os papeis de gênero na sociedade contemporânea.





domingo, 25 de agosto de 2024

Cidade; Campo (Brasil/França/Alemanha, 2024)

A cineasta Juliana Rojas bifurca Cidade;Campo em um drama sobre duas histórias diferentes de migração. Filmado em São Paulo e na zona rural do Mato Grosso do Sul, o longa fala sobre  a vida entre o meio urbano e o rural.

No primeiro conto, Joana (Fernanda Vianna),  de repente aparece na porta de sua irmã Tânia (Andrea Marquee) em São Paulo. Devido ao rompimento de uma barragem, ela perdeu tudo: sua casa, seu sustento e seu amado cavalo Alecrim. Com a ajuda do neto de Tânia, Jaime (Kalleb Oliveira), ela se aventura em um novo território profissional, em uma agência de diaristas.


Na segunda história, Flavia (Mirella Façanha) e sua parceira Mara (Bruna Linzmeyer) fazem o mesmo, mas de forma mais concretas. Flavia quer continuar na fazenda herdada após a morte de seu pai. Esse casal traz uma belíssima. e bem-vinda, representatividade de corpos para a tela. Mas os fantasmas do passado não querem descansar e colocam seu amor à prova. 


Apesar de cravado no realismo e tratar de questões importantes, o filme não deixa de utilizar do realismo mágico, em sequências que se manifestam em formas evocativas e criam uma relação com o sagrado, existências paralelas, bem como símbolos e a ênfase em formas. 


O filme contém uma corrente política de questões atuais no Brasil, incluindo a exploração dentro dos trabalhos autônomos, o uso  de medicamentos indígenas e o deslocamento devido à crise climática. Ao mesmo tempo que as duas histórias conversam, elas contrastam.


Com cinematografia de Cris Lyra e Alice Andrade Drummond, o longa é unido por uma paleta verde-acinzentada suave pontuada pelo espectro amarelo de luzes através de janelas, da lua e de objetos celestes.


O design de som, de Tiago Bello, também reflete uma interação oposta: a trilha sonora orquestral ambiente e dissonante com música de Rita Zart emula o constante desconforto de Joana, enquanto a inserção de uma canção  da dupla Leandro e Leonardo, garante o momento mais catártico do filme.


Rojas, que levou  o Prêmio Encounters de Melhor Diretora no Festival Internacional de Cinema de Berlim, infunde sua atmosfera mística, uma marca registrada, em um conto universal, tanto sobre finais quanto renascimentos, e como o ciclo da vida continua. Não há cidade sem campo, e vice e versa.




CRÍTICA POR MARCO GAL:


Juliana Rojas explora o luto em "”Cidade; Campo" que, apesar de ter a forte personalidade da diretora, perde um pouco de ritmo na metade final.
O filme conta duas histórias sobre migração, luto e a relação entre rural e urbano. A primeira é de Joana, int
erpretada por Fernanda Vianna, uma trabalhadora rural de Minas Gerais que perdeu tudo depois do rompimento de uma represa e tenta vida nova em São Paulo. 

Essa primeira parte do filme tem uma atmosfera tão interessante que é inevitável não lembrar dos trabalhos anteriores de Rojas, como "Trabalhar cansa" e "Sinfonia de uma necrópole". Sequências como as que envolvem o cavalo Alecrim é onde a diretora melhor consegue imprimir o seu estilo, já tão bem estabelecido, e mergulhar ainda mais fundo.


Embora a história pareça bastante real (a tragédia vivida por Joana não é diferente daquela vivida por mais de 800 mil pessoas atingidas pelas enchentes no Rio Grande do Sul), alguns momentos da trama soam um pouco forçados, como a sugestão de Joana trabalhar na Diarex surgir da ingênua criança Gordo.


A segunda história é de Flávia, personagem de Mirella Façanha, que se muda para a fazenda que herdou após a morte de seu pai. A adaptação ao novo lugar testa os limites de sua relação com sua parceira, Mara, interpretada por Bruna Linzmeyer.


Enquanto a segunda parte de "Cidade; Campo" tem uma história interessante, o que falta é tempo para desenvolver as personagens e seus conflitos. São muitas linhas narrativas para explorar: a relação de Flávia com o pai, com a parceira Mara, com a misteriosa figura Isabel… A pressa para desenvolver essas relações faz com que o ritmo do filme pese um pouco na metade final e torne a experiência um pouco cansativa.


Há uma cena em que as personagens tomam Ayahuasca que é um dos momentos mais memoráveis do filme. Porém, o tema da Ayahuasca é introduzido de forma aleatória com a entrada de uma personagem bem tarde na história que, depois que cumpre sua função, se despede da trama com a mesma facilidade.


No fim, fica a impressão de que falta maior conexão entre as duas histórias. Principalmente porque o filme deixa pistas de que as duas narrativas vão se entrelaçar em algum momento, mas isso não acontece.


Apesar da casa de Mara ser uma das primeiras a receber a faxina de Joana, o pingente de coruja que ela encontra lá acaba não dando em nada. Antecipamos encontrar Getúlio, o filho que Joana espera retornar, visitando a fazenda de Flávia, mas ele nunca chega a aparecer. E o comentário de uma das amigas de trabalho de Joana, sobre como ouvir outros cantando no karaokê une os universos pessoais de cada um, soa um pouco familiar depois quando vemos com Flávia livros de seu pai sobre universos paralelos. Mas os dois mundos não se encontram diretamente.


É comum que um filme indique que vai para um caminho e depois ir para outro, a fim de surpreender o espectador, mas aqui falta algo. É como se o filme anunciasse algo que nunca acontece. Portanto, quando o filme chega ao seu destino final, embora tenhamos passado por pontos incríveis, fica a frustração da viagem que poderia ter sido.



sexta-feira, 23 de agosto de 2024

DoctorJekyll (Reino Unido, 2023)

Em 2021, a recém-revivida Hammer Films se uniria à UK Network Distributing para formar a Hammer Studios Ltd. Adquirido pela John Gore Organization, o primeiro lançamento da empresa é o thriller psicológico Doctor Jekyll, da mente do diretor Joe Stephenson e do roteirista Dan Kelly-Mulhern.

Doctor Jekyll é uma reinvenção contemporânea do personagem-título do livro, de 1886, de Robert Louis Stevenson. Dado que Jekyll e Hyde são papéis que precisam do foco e da energia completos de um artista, Eddie Izzard, artista gênero fluído, é uma escolha maravilhosa para interpretar ambas, embora o filme inverta o gênero de seu personagem principal e não dê grandes explicações sobre essa fluidez.


As transformações entre a Dra. Nina Jekyll e Rachel Hyde são lindamente sutis, pois uma é a conspiradora e a outra é uma manipuladora e tudo é mérito das expressões faciais de seu intérprete. Qualquer um que espere um monstro grotesco e metamorfoses emocionantes se sentirá enganado. 


Rob (Scott Chambers) acaba de sair da prisão. Ele está deprimido sem emprego ou maneira de ver sua filha Ari. Ari não apenas não conhece seu pai, mas ela está doente. Se Rob conseguisse um emprego, ele seria capaz de mudar sua vida e sustentar sua filha. Felizmente para Rob, seu irmão Ewan (Morgan Watkins) o acolheu e tentou ajudá-lo a se reerguer. Ewan arranjou uma entrevista de emprego para Rob com a Dra. Nina Jekyll.


A Dra. Jekyll era um grande nome da indústria farmacêutica antes que um escândalo de abuso atrapalhasse sua carreira(uma CEO Trans, vemos num deslumbre). Desde então, ela se tornou uma reclusa, morando sozinha em uma casa gigante. Rob rapidamente descobre que o trabalho para o qual está sendo entrevistado é essencialmente o de cuidador da Dra. Jekyll. 


Stephenson e Kelly-Mulhern adotam uma abordagem única para o conto clássico de Stevenson. Nesta versão, os medicamentos de Jekyll são a única coisa que mantém a sinistra Rachel Hyde afastada. O talento de Izzard consegue transmitir a ameaça taciturna de Hyde sem a necessidade de maquiagem elaborada, tornando os dois lados do personagem palpáveis.


Para aqueles que esperam um retrato gótico completo do livro, terão que procurar em outro lugar. Aqueles familiarizados com a beleza cinematográfica sangrenta, peculiar e altamente estilizada de Hammer talvez sintam nostalgia. Este novo cult é algo que se encaixa perfeitamente com o resto do catálogo do estúdio e dá um frescor e uma nova energia para mais filmes.



quinta-feira, 22 de agosto de 2024

Polarized (Reino Unido/ Canadá, 2023)

Polarized, de Shamin Sarif, é sobre Lisa (Holly Deveaux), uma aspirante a musicista presa nas engrenagens rurais da vida na fazenda e Dalia (Maxine Denis), uma executiva de agricultura urbana cuja família muçulmana palestina a mantém em restrições rígidas. O que começa como um mal-entendido hostil floresce em compaixão e amor neste romance sáfico sobre família, honra, gentrificação e perda.

Ambas as personagens principais estão lutando, o que é especialmente o caso quando suas sexualidades são questionadas. Há um profundo sentimento de saudade que Sarif costuma utilizar na tela entre duas mulheres que é elétrico e envolvente. 


A diretora coloca com sucesso um enredo intenso em uma paisagem rica, com lindas terras agrícolas emoldurando a narrativa, mas essa atmosfera do roteiro  sugere que, apesar de uma bela locação, Lisa e Dalia estão expostas a uma realidade brutal. 


O drama é transmitido de forma autêntica e mostra que ambas as mulheres experimentam uma encruzilhada na vida em relação às suas famílias e identidades. Lisa deve aprender um maior senso de autoestima, enquanto Dalia procura expressar melhor sua vulnerabilidade. 


Da mesma forma, sua dinâmica permite uma exploração clara das complexidades do cristianismo, bem como das expectativas de gênero dentro de uma família árabe. Apesar de suas diferentes educações, tanto Lisa quanto Dalia têm expectativas familiares impostas a elas, o que as deixa abertas ao julgamento.

A relação entre as duas mulheres constrói lenta e deliberadamente, à medida que elas procuram esquecer suas diferenças e acabam se apaixonando no processo. Suas diferenças tornam seu vínculo mais forte à medida que lutam mais para ficarem juntas.


Inspirado na própria história de Sarif com a parceira e produtora Hanan Kattan, Polarized levanta questões importantes sobre as limitações de ver o amor através de uma lente binária, enquanto desafia o espectador a aceitar que mesmo as cidades mais pacatas e aparentemente inocentes podem transbordar de homofobia e intolerância.



Táxi para o Banheiro (Taxi Zum Klo, Alemanha Ocidental, 1980)

O professor do ensino médio de Berlim, Frank Ripploh, que apareceu em meados dos anos 70 como Peggy von Schnottgenberg em dois filmes de Rosa von Praunheim e Ulrike Ottinger, fez seu filme autobiográfico em 1980, depois de ter sido revelado como gay, em uma capa da Stern, para toda a Alemanha. Ele não apenas escreveu, dirigiu e produziu com pouco dinheiro, mas também assumiu o papel principal.

Em Táxi para o Banheiro,  Ripploh mostra  não apenas a vida cotidiana gay, mas também uma permissividade sexual extremamente incomum. Pouco antes da era da AIDS, ele se mostrou fazendo sexo oral até o orgasmo e uma chuva dourada, sem ser totalmente pornográfico


Ripploh então continua com o cruising: os momentos e lugares da subcultura homossexual do início dos anos 1980, de Berlim,  formam um mundo paralelo a outra vida, que o filme sugere. Nada é diluído aqui, com o diretor desde o início apresentando os parques, becos, saunas, banheiros e cinemões da cidade.

Entrelaçados estão momentos de ironia cômica, e crítica social, sequências que fornecem um contrapeso ao personagem assumidamente promíscuo. Ao longo do caminho, Ripploh captura o humor da vida real em todas as cenas, além de um senso de edição perversamente engraçado.


Filmado com uma autenticidade corajosa que é mais documentário do que drama, e livre de qualquer narrativa real, o verdadeiro coração do filme é a luta interna de Frank para encaixar seu amor e sua libido em seu mundo. 



quarta-feira, 21 de agosto de 2024

Summer Solstice (EUA, 2023)

Um ator trans doce e excessivamente tranquilo  passa um fim de semana no campo com uma amiga cisgênero da faculdade, que testa seu relacionamento, no comovente filme de Noah Schamus. Summer Solstice examina essa amizade enquanto ela é posta à prova durante alguns dias juntos.

A trama começa com Leo (Bobbi Salvör Menuez, de My Animal), passando por uma audição digna de vergonha, para um papel trans que cheira ao estereótipo com os quais as pessoas trans estão muito familiarizadas. Esta cena de abertura dá o tom do que virá a seguir.


Enquanto Leo é puxado para uma escapadela de fim de semana por sua melhor amiga heterossexual Eleanor (Marianne Rendón), o filme investiga as complexidades confusas de sua amizade. Eleanor, cheia de charme e heterossexualidade barulhenta, leva Leo para o mundo dela, onde ele se sente dispensável e invisível. 


Ao longo do fim de semana, a passividade de Leo se torna um ponto de frustração e empatia. A direção de Schamus, combinada com a performance diferenciada de Menuez, nos mantém envolvidos com as lutas internas do protagonista. 


O elenco de apoio brilha, principalmente na forma como eles interagem com Leo. Alice, de Monica Sanborn, é a mulher cis por excelência por quem Leo não pode deixar de se sentir atraído, mesmo quando seus desejos se chocam com suas esperanças. Oliver, de Mila Myles, um homem trans queer confiante, oferece a Leo um vislumbre do que ele poderia ser se parasse de se conter. 


A cinematografia, de Jack Davis, é simples, mas eficaz, com o cenário rural servindo como um pano de fundo tranquilo para a turbulência interna dos personagens. A casa onde a maior parte do filme se passa parece claustrofóbica e expansiva, espelhando as próprias emoções conflitantes de Leo.


Summer Solstice, de Noah Schamus, é um filme indie que ousa conceder aos dramas mais silenciosos da vida de uma pessoa trans a importância da tela. É um filme de baixo orçamento que abraça suas limitações, capturando seu excelente roteiro e performances com uma forma simples, mas confiante. 




terça-feira, 20 de agosto de 2024

Motel Destino (Brasil/França/Alemanha/Reino Unido, 2024)


Por Bruno Weber

Dois homens brincam alegres numa bela praia deserta. É assim que começa Motel Destino, novo filme do diretor Karim Aïnouz. Nascido em Fortaleza, ele volta a filmar no Ceará após dez anos, para contar essa história carregada de desejo e tensão claustrofóbica. A aparente inocência da primeira cena é rapidamente quebrada quando, após uma conversa entre Heraldo (Iago Xavier) e seu irmão, um fuzil entra casualmente no quadro, revelando que os dois trabalham para a traficante Bambina (Fabíola Líper).


Mas Heraldo deseja deixar tudo para trás. A carreira no crime, a cidade e toda sua vida até então. Bambina ordena um último serviço, um último assassinato, e ele estará livre. Porém, uma noitada com uma desconhecida no Motel Destino põe as coisas a perder para Heraldo. Ele se atrasa, o plano dá errado e seu irmão acaba morrendo. Heraldo então se torna um fugitivo na cidade dominada por Bambina, e sua única alternativa é abrigar-se no próprio Motel Destino, sob os cuidados de seus proprietários, Dayana e Elias. O casal interpretado por Nataly Rocha e Fábio Assunção começa a envolver Heraldo em suas vidas, num jogo de controle e sedução que se torna cada vez mais arriscado.


O motel é um palco eficiente para essa trama. Um ambiente hipersexual, carregado de uma violência implícita, que se transforma aos olhos de Heraldo num misto de esconderijo e prisão. Um parque de diversões atraente e macabro, de onde ele não consegue escapar dos próprios pesadelos e lembranças. É notável como a fotografia de Hélène Louvart ressalta isso, com cores gritantes que, ao mesmo tempo em que celebram a beleza natural da costa cearense, concedem uma artificialidade bizarra e asfixiante para o motel, embalada pelo som quase incessante dos gemidos de seus clientes.


Esse conflito entre o artificial e a natureza, entre o humano e o animal, está sempre presente. Elias cria vários animais na propriedade, e a vida selvagem da área está sempre invadindo o motel. Isso chega ao ápice na resolução da narrativa. Resolução essa que, infelizmente, é um pouco apressada e anticlimática, ao mesmo tempo em que o texto do Karim Aïnouz acaba entregando diálogos didáticos e nada sutis. Essa perda de força no final, aliando-se a uma linguagem audiovisual neutra e monótona, resulta num filme que poderia exigir mais de seu público e de si mesmo.


Ainda assim, o verdadeiro forte aqui é o trabalho incrível de todo o elenco, permeado por atuações entregues ao físico, que aliam o emocional com o corporal. É, afinal, uma história de sexo e violência, contada habilmente pelos corpos dos atores. Especialmente Fábio Assunção, que cria em Elias um personagem à primeira vista carismático e atraente, mas que vai revelando camadas mais repulsivas. Obcecado pelo controle daqueles ao seu redor, ele se torna cada vez mais inseguro e destrutivo ao perdê-lo. E é sua relação com Dayana e Heraldo, mediada por desejo e raiva latentes, que prende os olhos do espectador. Como um voyeur espiando um quarto de motel.



segunda-feira, 19 de agosto de 2024

Rosalie (França/Bélgica, 2023)

Rosalie (Nadia Tereszkiewicz), a protagonista do filme homônimo de Stéphanie Di Giusto, vive  escondida por seu pai devido à sua incompreensão do hirsutismo, uma condição que causa crescimento excessivo de pelos nas mulheres. Na França, de 1870, Rosalie acaba de ser dada como dote a Abel (Benoît Magimel), um dono de bar em declínio.

Entre a alegria de ocupar um novo espaço no mundo e o medo de revelar sua "identidade" ao marido, surge um sentimento de rebeldia. Depois de ser rejeitada, Rosalie é libertada; Superada a decepção, ela ressurge sem máscaras, revelando sua verdadeira barba. A partir desse momento, ela iniciará uma jornada interna que sofrerá duros ataques do exterior, mas que, também contra todas as probabilidades, despertará o interesse de uma rígida sociedade rural do século XIX pelo exótico.


A inspiração é real, na verdade vem de Clémentine Delait, uma mulher peluda que ficou famosa no início do século XX, mas a diretora não se interessa pela cinebiografia e não quer contar a provação de uma mulher estranha, na verdade ela evita cair nos clichês do freak para explorar a feminilidade de uma mulher que tem que lidar com o olhar dos outros e quer transformar sua peculiaridade em uma força.


Mas nem todos recebem bem a revelação de Rosalie de sua identidade, ameaçando o amor florescente entre ela e Abel. Por meio de performances lindamente elaboradas e exame cuidadoso de temas relevantes, Rosalie apresenta uma história compassiva de autoaceitação, desafiando visões do que é normal e o poder do amor incondicional para transcender até mesmo os preconceitos mais profundos.


A jovem extrapolará sua própria aceitação para o mundo. Isso também melhorará a vida de Abel, afogado por dívidas. Tudo renascerá com Rosalie. Assim, desta forma, Di Giusto apresenta um drama romântico às vezes emocionante.


O filme trata sobretudo sobre a condição da mulher, sexualmente, socialmente, em relação a outras pessoas. Rosalie tem muito a dizer sobre a condição humana. Em sua essência, é uma história sobre a diferença e como a sociedade muitas vezes luta com aqueles que não se encaixam em normas estabelecidas.



domingo, 18 de agosto de 2024

John (EUA, 2023)


JOHN é um drama social dirigido por Le Han em sua estreia no cinema. O filme narra a vida de um profissional do sexo latino que vive na parte mais pobre de Los Angeles. Ardente e comovente, o longa  retrata as dificuldades que  trabalhadores do sexo LGBTQ+ enfrentam diariamente, contadas em uma narrativa vívida.

O filme gira em torno de John (Sebastian Perez), um jovem michê sem sorte que trabalha nas ruas de West Hollywood, LA. John está sob as asas de dois profissionais mais velhos: o viscoso Miguel (Seth Hafley) e a bondosa Peaches (Celine Jackson), que é trans. Observamos John passar seus dias, conhecer vários clientes e, em geral, apenas tentar suportar a vida. Por meio de suas experiências angustiantes, vemos com que garotos de programa lutam diariamente: pobreza, vício em drogas, HIV, violência. A decisão de usar atores não profissionais é  inspirada no neorrealismo italiano e  confere ao filme uma qualidade de documentário. Entre os coadjuvantes, Jackson se destaca por sua atuação atrevida, mas sincera. Peaches e John desenvolvem uma amizade íntima que faz fronteira entre o maternal e o romântico.

A clientela variada de John também rouba as cenas com suas torções e singularidade. Em uma cena comovente, John conhece um cliente que o paga apenas para conversar. Um homem gay enrustido, ele admite a John seu remorso por aprovar leis que prejudicam os gays.

Os visuais do filme são lindos. O longa foi feito com apenas um Iphone, em locais sujos por toda Los Angeles, capturando com precisão o ponto fraco da cidade e a desolação sentida pelos personagens presos lá. A cinematografia é ao mesmo tempo temperamental e extravagante.

O filme lembra Tangerine, de 2015, sobre profissionais do sexo, que foi filmado inteiramente em um iPhone. Ambos os filmes se movem com a mesma energia cinética bruta que só pode ser extraída de artistas não profissionais. Da mesma forma,os dois são repletos de comentários sociais.

Sempre corajoso e implacável, JOHN faz um ótimo trabalho ao contar uma história trágica sem recorrer ao melodrama ou sentimentalismo. Em última análise, é um filme experimental que especificamente nunca tenta ser eloquente nem refinado. Ao fazer isso, ele captura a textura grosseira de seu assunto, a feiura e a melancolia.


sexta-feira, 16 de agosto de 2024

National Anthem (EUA, 2023)

Dirigido por Luke Gilford e escrito por Tony Tost, o filme segue um trabalhador da construção civil de 21 anos, no Novo México, que se junta a uma comunidade de artistas de rodeio queer em busca de sua própria versão do sonho americano. 

National Anthem é estrelado por Charlie Plummer como Dylan. Ele encontra seu povo enquanto o rancho, House of Splendor, oferece um refúgio de sua mãe (Robyn Lively), que rouba seu dinheiro suado para beber. 


O filme é baseado vagamente nas experiências do diretor como fotógrafo de rodeios, quando Dylan se apaixona por Sky (Eve Lindley) e, até certo ponto, por seu namorado Pepe (Rene Rosado) em um enredo inspirado no próprio relacionamento de Gilford com uma mulher trans.


O caso de Dylan com Sky e Pepe culmina com um trio no deserto, mas sua verdadeira descoberta acontece no rodeio. Gilford aproveita a energia positiva e a atmosfera aberta que inspira sua coleção de fotografias, criando as cenas de rodeio no terreno real com fazendeiros, cavaleiros e cowboys prosperando na arena.


Além disso, o filme frequentemente conecta os elementos de drag e rodeio que chamam a atenção para a dinâmica performativa do gênero. Uma queen afável, Carrie (Mason Alexander Park), dá  conselhos a Dylan sobre como lidar com esse novo mundo.


Tudo é apoiado lindamente pela cinematografia rica e romântica de Katelin Arizmendi. A direção de Luke Gilford é discreta, mas elegante, abraçando tudo o que o maravilhoso cenário da fazenda tem a oferecer. Um dos aspectos mais atraentes é como National Anthem flui organicamente em crescimentos silenciosos.


Enquanto outros filmes se concentram em obstáculos, este trabalho se concentra em conquistas. A comunidade do Rodeio retrata identidades queer com naturalidade, e como meio de descoberta, com uma visão de inclusão. National Anthem, portanto, oferece um olhar único das convenções do faroeste.