Por Bruno Weber A obra de Rebecca Lenkiewicz possui um interesse particular por segredos femininos. Foi assim em “Desobediência”, com as ex-amantes Ronit e Esti reavivando seu romance em meio a uma comunidade judaica ortodoxa. Ou com a jovem freira “Ida”, na Polônia dos anos 60, investigando uma tragédia familiar. Em outro drama de época intitulado com o nome da protagonista, a dama da sociedade parisiense “Colette" se inspira na própria juventude na França rural para escrever secretamente o best-seller de seu marido. E, finalmente, “Ela Disse”, de 2022, adapta a história real das jornalistas Megan Twohey and Jodi Kantor, cujo trabalho ajudou a dar início ao movimento #MeToo. Em todos esses trabalhos de Lenkiewicz como roteirista, um tema recorrente é o de mulheres entrando em conflito com fantasmas do passado, e qualquer tipo de catarse que possa vir desse enfrentamento. E mantendo-se nessa temática, em seu primeiro trabalho como diretora ela escolhe adaptar para as telas o romance “Hot Milk”, de Deborah Levy.
Lenkiewicz, que também assina o roteiro, adapta de maneira fiel e direta a trama do livro, que nos apresenta a extremamente complicada relação de Rose (Fiona Shaw) e Sofia (Emma Mackey), mãe e filha, durante uma longa estadia em Almería, uma cidadezinha na costa da Espanha. No início do filme, descobrimos que Rose hipotecou a casa e gastou suas últimas economias para vir nessa viagem e se entregar a um tratamento experimental com o Dr. Gomez (Vincent Perez), um médico misterioso. Ela busca uma cura para a doença que há anos a deixa presa a uma cadeira de rodas, com exceção de alguns dias, quando inexplicavelmente consegue andar. Sofia a acompanha nessa jornada, auxiliando Rose em todas as suas necessidades ao mesmo tempo que atura o abuso emocional e as constantes críticas da mãe. Presa nesse momento letárgico de sua vida, estendendo de forma interminável os seus estudos de antropologia ao mesmo tempo que não parece ter nenhuma outra companhia além da mãe, Sofia encontra uma chance de despertar - e talvez escapar - quando encontra Ingrid (Vicky Krieps), uma alemã desinibida e descontraída, outra turista forasteira daquela terra.
É nas interações entre essas personagens, habilmente interpretadas por esse elenco fortíssimo, que está o maior êxito de “Hot Milk”. A relação entre Sofia e Rose, especialmente, mesmo sendo uma representação bem típica de um relacionamento materno tóxico, é profundamente explorada em suas conversas, mas também em seus momentos de silêncio. Por exemplo, a forma com que Rose tenta diminuir Sofia com cada palavra que sai de sua boca, e também como tenta incutir nela uma aversão aos homens, demonstra o comportamento típico de uma mãe narcisista, que indiretamente quer manter a filha eternamente sob seu controle, ao mesmo tempo que ignora completamente sua verdadeira sexualidade.
Mas além disso, também denota as marcas de um passado traumático do qual ela desesperadamente tenta fugir, e que vai muito além do casamento fracassado com o pai de Sofia. Da mesma forma, Sofia também revela muito de si mesma ao buscar um relacionamento romântico com Ingrid, uma mulher mais velha, caracterizada como uma hippie clássica, fruto de uma época mais livre e repleta de descobertas. Quase uma antítese de Rose, Ingrid representa pra Sofia mais do que uma amante, mas uma espécie de nova figura materna. Um desejo infelizmente fadado ao fracasso, quando Sofia se sente cada menos capaz de lidar com Ingrid, com suas liberdades e traumas. E é interessante como todas as cenas das duas juntas, ainda que possuam demonstrações verdadeiras de carinho, sempre terminam em algum desconforto ou sensação de perigo. Ainda assim, ela ajuda a catalizar o âmago rebelde que Sofia passou anos ignorando.É uma pena que essas relações intrigantes entre as personagens não sustentem um filme com um ritmo tão errático. “Hot Milk” parece ser mais longo do que realmente é, se perdendo em cenas que deviam ilustrar o tédio e confusão que Sofia sente, mas que por isso mesmo parecem tediosas e confusas. Sem falar de sequências de sonho desnecessárias, que não conseguem nem ser muito inspiradas visualmente. Algumas das metáforas que o filme emprega também parecem muito óbvias. Como o cachorro do vizinho que não para de latir, reclamando por estar amarrado - um simbolismo claro para o modo que Sofia se sente. Ou quando ela assiste a um vídeo de antropologia sobre uma dança folclórica africana em que um grupo de garotas devem derrotar uma bruxa - uma alusão direta ao seu desejo de se libertar da mãe. Ainda assim, o filme utiliza algumas táticas e subversões interessantes. Em especial, o momento em que Ingrid entra em cena, cavalgando pela praia, e aos olhos de Sofia é quase como um príncipe encantado numa história de fantasia.
Porém, nenhuma dessas poucas virtudes de sua linguagem - e nem sua cena final impactante - conseguem livrar “Hot Milk” da sensação de que o filme parece ter algo importante a dizer, mas que não consegue. Em alguns momentos, parece um tanto cru e inacabado. Como um daqueles filmes que surgem quando um estudante de cinema diz "quero fazer um filme", e começa a escrever sem saber exatamente de onde vem e para onde vai. Talvez seja sintoma de uma diretora estreante que ainda pense muito como uma roteirista consolidada, e por isso mesmo não sabe o que cortar.
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