Produzido por Yann Gonzalez, “Anapidae (Appelle-moi)”, de Mathieu Morel, transforma luto, desejo e memória em cinema. O filme segue Mino (Pierre Léonard), guardião de um cemitério em Naarièges, que preserva os mortos enquanto tenta sobreviver à ausência do homem que amou. Nesse território isolado, a presença de uma aranha gigante, criatura metonímica que dá nome ao filme, materializa a dor que consome o protagonista, capturado por um luto que se recusa a dissolver. A narrativa abraça essa dimensão fantástica para encenar um processo emocional que transborda o realismo, insistindo que o sofrimento também possui corpo, textura e presença.
Ao adotar uma estética experimental construída em Super 8, VHS e cenários kitsch, Morel radicaliza a percepção do tempo e das lembranças. A combinação desses formatos cria uma granulagem instável que confere ao filme um aspecto de relíquia afetiva, como se a própria imagem estivesse corroída pela dor que define Mino. Elementos visuais desgastados, luz que atravessa espaços antigos e camadas texturais e ao mesmo tempo cenários coloridos numa vibe Pierre et Gilles criam um anacronismo vibrante. Essa escolha intensifica a atmosfera de ritual e vigília que sustenta a narrativa, transformando o ambiente em extensão emocional dos personagens.
A chegada de Maya (Léa Durocher), viúva do amante falecido de Mino, reorganiza essa paisagem afetiva. O encontro entre essas duas figuras, marcadas por diferentes formas de perda, revela um triângulo emocional que resiste à linearidade. Maya carrega a força de quem tenta seguir adiante, enquanto Mino permanece aprisionado ao fantasma que insiste em chamá-lo de volta, pedido que ecoa literalmente na súplica “appelle-moi”.
Simbolicamente, a aranha gigante condensa a experiência de Mino: um organismo que tece, captura e devora o que está ao alcance, funcionando como metáfora para um luto que paralisa e drena sua vitalidade. Morel investe na criatura como figura poética e monstruosa ao mesmo tempo, aproximando o curta de um imaginário fantástico que utiliza o corpo e o simbólico para discutir estados internos. Esse gesto inscreve o filme dentro de uma tradição queer de imagens que externalizam dores íntimas através de elementos fantásticos, reforçando a dimensão sensível e metafórica de sua dramaturgia.
Dentro de sua moldura estética, “Anapidae” mergulha no terror queer com uma precisão particular. As duas meninas, filhas de Maya, evocam de imediato a iconografia das gêmeas de “O Iluminado”. A própria biologia da aranha, filmada em detalhes, causa desconforto e contamina o espaço com uma presença que é ao mesmo tempo repulsiva e hipnótica. O desejo necrófilo que atravessa determinadas sequências intensifica o horror, aproximando o filme das obsessões temáticas encontradas em outros trabalhos de Moreau, onde corpo, morte e erotismo são forças que se enroscam.
“Anapidae (Appelle-moi)” é uma obra potente sobre o peso da memória e a impossibilidade de se desprender de certos amores. A mise-en-scène ritualista, o uso expressivo de formatos analógicos e a construção metafórica da aranha transformam o curta num estudo sensível e inquietante sobre um luto que se recusa a afrouxar seus fios. No encontro entre Mino e Maya, emerge a promessa de cura possível, mesmo que fragmentada, contrapondo dois modos de existir diante da perda.
Nenhum comentário:
Postar um comentário