domingo, 31 de agosto de 2025

Mariliendre (Espanha, 2025)

"Mariliendre", produção de Los Javis, segue Meri Román, uma ex-diva da vida noturna gay de Madri, a famosa ‘mulher bicha’, que aos 35 anos já não carrega mais o brilho do passado. Rainha destronada, ela vive atormentada por lembranças e entediada em um presente medíocre, até que a morte de seu pai a força a encarar sua própria identidade.

O retorno de Meri à cena madrilenha é retratado como uma volta a um baile para o qual já não foi convidada. Entre reencontros e memórias, ela revive os dias em que dançava sob as luzes de néon da Chueca, famoso bairro queer da capital espanhola, cercada de amigos excêntricos, enquanto no presente esses mesmos companheiros agora são adultos cansados, equilibrando contas e sonhos desbotados.


A narrativa se desdobra em dois tempos, o passado vibrante e o presente desencantado, criando um retrato da passagem do tempo na comunidade queer. Cada episódio se estrutura como um número musical, onde hits espanhóis dos anos 2000 são reimaginados em arranjos eletrônicos e coreografias inspiradas no voguing, funcionando como um espelho para falar de perda, identidade e reinvenção.


Com criação de Carmen Aumedes, Camila Caballero e Javier Ferreiro, a série aposta em uma estética que mistura excessos e melancolia. O passado é filmado com cores fúcsia intensas e energia de karaokê visual, enquanto o presente assume tons apagados, como se Madri tivesse perdido seu brilho. Mesmo com transições confusas ou coreografias que se alongam, há charme em sua imperfeição.


O elenco reforça esse contraste entre brilho e desgaste. Blanca Martínez dá vida a Meri com arrogância e fragilidade, personificando uma rainha de papelão. Omar Ayuso, carismático como Luis, equilibra humor e força, enquanto Martín Urrutia traz delicadeza a um personagem que merecia mais espaço. A trilha sonora, figurinos e ambientação contribuem para a sensação de mergulho em uma memória coletiva queer.


Em sua essência, Mariliendre é uma carta de amor a uma geração que encontrou liberdade no anonimato da noite e família nos clubes. A série erro com subtramas frágeis e músicas que soam repetitivas, mas o coração pulsa forte. É uma obra sobre como continuar dançando quando a pista parece vazia, lembrando que, para Meri e sua comunidade, parar nunca foi uma opção.


sexta-feira, 29 de agosto de 2025

A Hora do Mal (Weapons, EUA, 2025)

Zach Cregger, o cineasta que surpreendeu com “Noites Brutais”, retorna com “A Hora do Mal”, um horror em que uma pequena cidade é abalada pelo desaparecimento simultâneo de dezessete crianças, todas de uma mesma sala de aula, às 2h17 da madrugada. A narrativa se desdobra em capítulos autônomos, cada qual focado em um personagem distinto, compondo um retrato fragmentado de uma comunidade mergulhada no medo.

O que Cregger traz de novo ao terror é a combinação ousada de estrutura coral, humor ácido e atmosfera opressiva. Ao invés de um fio condutor único, o diretor constrói uma obra de múltiplas perspectivas, que dialoga tanto com “Magnolia” quanto com o horror de Stephen King. O recurso dos letreiros que apresentam os protagonistas funciona como um dispositivo estilístico marcante, que não apenas organiza a narrativa, mas também confere a cada arco a sensação de pequena antologia dentro de um todo. Entre os temas centrais estão a fragilidade da vida suburbana, a falência das instituições, a violência como herança cultural e o peso do segredo coletivo.


Entre os personagens que ganham destaque estão Justine (Julia Garner), professora da turma desaparecida, Archer (Josh Brolin), um pai desesperado em busca do filho, Marcus (Benedict Wong), diretor da escola e primeiro elo com a misteriosa Tia Gladys (Amy Madigan), um ícone camp do terror geriátrico, Alex (Cary Christopher), o único menino poupado pelo desaparecimento coletivo, e Paul o policial interpretado por Alden Ehrenreich, que joga seu charme mesmo diante do caos.

A presença queer surge de modo breve, mas significativo, na caracterização de Marcus, casado com outro homem. O filme trata essa informação de maneira naturalizada, sem transformar sua identidade em conflito narrativo. Embora não seja o foco da trama, essa inclusão orgânica contribui para a diversidade de perspectivas que compõem “A Hora do Mal”, marcando uma diferença em relação ao histórico do gênero, tantas vezes dependente de queer coding ou estereótipos.


O impacto do filme é duplo: por um lado, reafirma Cregger como um dos nomes mais inventivos do terror atual, capaz de manejar simultaneamente choque, atmosfera e ironia. Por outro, demonstra como é possível que o horror contemporâneo dialogue com questões sociais e representações diversas sem sacrificar a tensão narrativa. 


“A Hora do Mal” se ergue como um marco: uma obra que une tradição e inovação, que conversa com o passado do horror sem se prender a ele, e que abre espaço para novas possibilidades de narrativa. É um filme sobre medo, mas também sobre vínculos e fragilidades humanas.

quinta-feira, 28 de agosto de 2025

O Último Azul (Brasil/México/Países Baixos/Chile, 2025)

Por Bruno Weber Novo filme de Gabriel Mascaro, "O Último Azul" chega agora aos cinemas brasileiros após vencer o Urso de Prata no Festival de Berlim. O diretor pernambucano volta a explorar temas de indivíduos periféricos rebelando-se ou encontrando a si próprios.

O filme se passa num futuro próximo onde o governo envia compulsoriamente pessoas idosas para viver numa colônia afastada. Tereza, personagem de Denise Weinberg, tenta usar o tempo que lhe resta antes de ser forçada a partir pra realizar o sonho de viajar de avião.


Contando com a ajuda de desconhecidos que encontra pelo caminho, como o barqueiro vivido por Rodrigo Santoro e a vendedora de bíblias digitais vivida pela atriz cubana Miriam Socarrás, Tereza parte numa jornada sensorial por um Amazonas distópico.


Esse sistema futurista que trata pessoas idosas como mercadoria traz ecos da realidade, lembrando de como o governo brasileiro lidou mal com a pandemia. Para preservar a economia, sacrificaram as pessoas no grupo de risco - idosos, por acaso.


Gabriel Mascaro cria uma narrativa composta pela forte presença de cores: fogos de artifício, peixes coloridos, o "último azul" do céu onde Tereza quer voar e do muco alucinógeno de um caracol mítico. Símbolos do embate entre a sociedade e a natureza.


Apesar de algumas ressalvas - os diálogos são bem artificiais em certos momentos, e a trama, como a protagonista, demora a encontrar o rumo - "O Último Azul" tem as maiores virtudes na originalidade, visual impactante e bela atuação de Denise Weinberg.

Hairspray - E Éramos Todos Jovens (Hairspray, EUA, 1988)

“Hairspray” marca um momento singular na carreira de John Waters, um trabalho mais comercial, mas que nunca abandona totalmente sua identidade irreverente. Lançado em 1988, o filme coloca seu olhar debochado sobre a juventude dos anos 60 e mistura esse passado com sua estética exagerada, sempre muito ligada ao camp.

O elenco é simplesmente icônico, reunindo talentos improváveis em uma mesma tela. Divine brilha como Edna Turnblad, um dos papéis mais lembrados de sua carreira, e também aparece em um personagem masculino, reafirmando sua versatilidade. Ruth Brown, como Motormouth Maybelle, empresta não só sua voz poderosa, mas também um peso histórico à discussão sobre segregação racial. Há ainda Debbie Harry, deliciosamente cruel como Velma Von Tussle, e Sonny Bono.


No centro da trama está Tracy Turnblad (Ricki Lake) uma adolescente plus size que enfrenta preconceitos na escola por conta do seu cabelo volumoso. Sua jornada de afirmação a coloca em rivalidade com Amber Von Tussle, loira e maldosa representante do padrão de beleza da época. O conflito é típico de melodrama juvenil, mas Waters o conduz com ironia e subversão.


A recriação da Baltimore dos anos 60 é essencial, já que a cidade funciona como verdadeiro epicentro do cinema de John Waters. Ao mesmo tempo que captura a estética da época, o diretor a contamina com sua identidade visual carregada, abusando de cores, penteados, figurinos espalhafatosos, músicas e coreografias que parecem sempre à beira da sátira.


O filme ganha força especialmente ao abordar a questão da segregação racial. O programa de TV fictício que serve de pano de fundo para a narrativa funciona como metáfora para a sociedade americana da época, ainda resistente a qualquer mudança em relação à diversidade. É nesse ponto que Ruth Brown brilha como Maybelle, transformando sua participação em um manifesto.


“Hairspray” também se destaca como uma obra sobre inclusão, seja pela representatividade de Tracy como protagonista fora do padrão, seja pela ousadia de Divine como Edna, quebrando barreiras de gênero e ampliando a ideia de quem pode ocupar a tela. Há ainda espaço para curiosidades como o cameo do próprio John Waters e a presença do lindo Michael St. Gerard, com sua aura de Elvis Presley.


Embora menos grotesco que outras produções do diretor, o filme mantém sua essência provocadora. Foi a última colaboração de Waters com Divine, encerrando uma parceria histórica no cinema queer e underground. Mesmo não tendo se adaptado ao mainstream de forma definitiva, Waters entregou aqui um hino pop, que transcende o camp ao revelar múltiplas camadas de crítica social, música, cor e pura diversão.


quarta-feira, 27 de agosto de 2025

La Joya: Bad Gyal (Espanha, 2024)

 “La Joia: Bad Gyal”, dirigido por David Camarero, é um retrato pulsante que se move entre documentário e ensaio visual, tomando como epicentro a figura magnética da cantora e performer Bad Gyal. Mais do que uma biografia musical, o filme se estrutura como uma cartografia afetiva de uma geração que busca afirmar sua identidade através do corpo, da música e da reinvenção estética.

Camarero evita o caminho tradicional das cinebiografias e aposta numa montagem fragmentada, quase sensorial, que se aproxima do fluxo da cultura pop contemporânea. “La Joia: Bad Gyal” não explica, sugere. Não oferece respostas prontas, mas provoca o a mergulhar na intensidade de uma artista que encarna liberdade sexual, hibridismo cultural e resistência queer em um cenário global ainda marcado por estruturas patriarcais.


A escolha de Bad Gyal como musa e ponto de partida não é gratuita. Sua persona, construída entre o trap, o dancehall e a estética hiperpop, desafia fronteiras linguísticas, de gênero e de mercado. No filme, sua imagem explode em colagens visuais, performances e depoimentos que revelam tanto sua vulnerabilidade quanto sua força. O resultado é uma obra que entende o pop não como produto descartável, mas como espaço de revolução e afirmação política.


O queer aqui não está apenas na temática ou na figura retratada, mas na própria forma de filmar: cortes abruptos, sobreposições de texturas, um ritmo que se aproxima da pista de dança e da febre dos videoclipes. Essa estética fragmentária dá corpo à ideia de identidade como processo em constante transformação.


Há também no filme uma dimensão de manifesto, ainda que sutil. Camarero constrói um discurso sobre o direito de existir fora da norma, sobre o poder da música em criar comunidades e sobre a vitalidade das culturas marginais em redefinir o que entendemos como mainstream. Nesse sentido, “La Joia: Bad Gyal” ecoa trabalhos de cineastas queer que utilizam a linguagem audiovisual não só para documentar, mas para reimaginar o mundo.


A obra se revela como um mosaico de desejos, cores e sons, mais próxima de uma experiência sensorial do que de um simples registro. “La Joia: Bad Gyal” é um filme que pulsa no ritmo da rebeldia, da fluidez e da celebração.



terça-feira, 26 de agosto de 2025

Aiden (Reino Unido, 2024)

Carl Medland, conhecido por seus experimentos no cinema de gênero independente e de micro-orçamento, entrega em “Aiden” um filme inquietante que parte de uma premissa dura: a experiência de um homem preso em um relacionamento abusivo e violento. O protagonista, interpretado pelo próprio Medland, busca escapar da teia de manipulação e agressões de Ivan (Ivan Alexiev), mas acaba mergulhando em um tratamento experimental que mistura confinamento, privação e a promessa de cura emocional.

O roteiro não foge da dureza do tema, mas encontra no horror psicológico uma via de amplificação. A escolha por filmar em cenários restritos, muitas vezes com enquadramentos claustrofóbicos, reforça a sensação de isolamento e paranoia que Aiden vivencia. A atmosfera é reforçada por uma fotografia simples e crua, aparentemente filmada em dispositivos de baixo orçamento, o que contribui para uma textura etérea e ansiosa.


Apesar da limitação técnica, Medland demonstra domínio do gênero. Ele sabe dosar os sustos, introduzir elementos queer e, sobretudo, manter o público em alerta constante, entre a dúvida do real e do imaginado. Essa habilidade já se evidenciava em trabalhos anteriores como “Paranormal Farm”, mas aqui se alia a uma narrativa de maior densidade emocional, que busca falar também sobre masculinidade tóxica e o silêncio em torno da violência doméstica em relações entre homens.


O pequeno elenco funciona de maneira eficiente dentro dessa proposta. Ivan Alexiev compõe um antagonista convincente, sedutor e ameaçador, enquanto Darren Earl Williams, como o excêntrico Dr. Williams, adiciona uma camada desconfortável e ambígua à história. Medland, por sua vez, entrega uma performance contida, que reforça o aspecto vulnerável de seu personagem, e que se torna chave para a empatia do espectador.


Outro ponto relevante de “Aiden” é sua inserção dentro da representação queer no cinema de gênero. Ainda são raros os filmes que exploram relações homoafetivas em contextos de abuso e toxicidade sem reduzir seus personagens a caricaturas. Medland busca um olhar mais direto e honesto, ainda que inserido em um universo de horror, e com isso amplia a representação LGBTQIA+ na tela.


“Aiden” se equilibra entre o bizarro e o humano, entre a precariedade técnica e a sinceridade autoral. Pode não agradar a quem espera uma produção polida, mas cumpre seu papel como cinema outsider: inventivo, experimental e inquietante. É, acima de tudo, uma obra que prova como Carl Medland transforma restrições em estilo, criando um filme de terror pequeno em escala, mas intenso em impacto.

segunda-feira, 25 de agosto de 2025

El Fantástico Caso del Golem (Espanha, 2023)

“El Fantástico Caso del Golem”, dirigido pelo coletivo Burnin' Percebes (Juan González e Fernando Martínez), é uma comédia absurda que se vale do fantástico para refletir sobre identidade, relações humanas e a fragilidade da masculinidade. O duo mantém a essência independente, destacando-se pela criatividade em produções de baixo custo no cinema espanhol contemporâneo. Ao brincar com a ideia mítica do golem, a narrativa cria um universo delirante, onde o absurdo se torna crível e o impossível parece cotidiano.

A trama segue Juan (Brays Efe), um jovem aparentemente simples que, após uma noite intensa de festa em Madri, presencia uma tragédia bizarra no telhado de sua casa. Bêbado ao lado de seu melhor amigo David (David Menéndez), Juan vê David cair durante uma piada e se despedaçar em mil pedaços de cerâmica ao colidir com um carro abaixo. Atônito com a passividade de todos ao seu redor, Juan inicia uma investigação solitária pela verdade, desvendando segredos sobre a origem dos golems e uma possível conspiração corporativa. Essa jornada o leva a confrontar réplicas de si mesmo e situações surreais, como pianos caindo do céu, transformando o luto em uma aventura imprevisível e tragicômica.

Brays Efe, que já brilhou em produções como “Paquita Salas” e “Maricón Perdido”, entrega uma performance central e marcante como Juan, um personagem patético e relatável que reflete a mediocridade da vida urbana moderna. Sua atuação equilibra o humor físico com camadas emocionais, capturando a confusão existencial de alguém que questiona sua própria identidade ao lidar com duplicatas fantásticas.

O elenco coadjuvante enriquece a narrativa com carisma e intensidade. Luis Tosar agrega credibilidade, servindo como contraponto às derivas absurdas de Juan, enquanto Bruna Cusí e Javier Botet destacam-se em papéis que misturam o dramático com o cômico. Botet, conhecido por papéis em filmes de terror, traz um toque único às sequências surreais, e Cusí adiciona nuances sentimentais às relações interpessoais.

O humor surreal de Burnin' Percebes permanece como marca registrada, há toques de Alex de la Iglesia e Pedro Almodóvar, transformando situações banais em tragicomédias que expõem o ridículo da busca por relevância na sociedade contemporânea. O ritmo mescla a estética de sitcom com experimentações visuais independentes, com o colaborador Ion de Sosa, de “Mamántula” gerando um estranhamento atraente.

“El Fantástico Caso del Golem” é uma fábula tragicômica sobre solidão, amizade e o desafio de se reconhecer no espelho, seja ele real ou fantástico. Com forte apelo LGBTQ+ e reflexões sobre amor familiar, o filme reafirma o talento do coletivo Burnin' Percebes em reinventar o cinema espanhol. Uma obra que celebra a imaginação livre, provando que o humor e a ficção ainda têm espaço para surpreender e entreter.

domingo, 24 de agosto de 2025

Nem Toda História de Amor Acaba em Morte (Brasil, 2025)

“Nem Toda História de Amor Acaba em Morte”, dirigido por Bruno Costa, é um filme que surge como marco importante no cinema brasileiro contemporâneo. Em meio a um cenário onde ainda falta espaço para narrativas inclusivas, a obra apresenta uma protagonista surda. Esse gesto, por si só, já é profundamente significativo, mas o filme vai além, integrando a Libras como linguagem estética e narrativa, não apenas como ferramenta de acessibilidade.

A história acompanha Sol (Chiris Gomes), uma mulher de meia-idade que reencontra Lola (Gabriela Grigolom), uma artista surda cheia de vitalidade e criatividade. A relação que se estabelece entre as duas desafia estereótipos e apresenta o amor como construção múltipla, feita de gestos, silêncios e olhares que muitas vezes comunicam mais do que palavras. Esse encontro de mundos revela que nem toda história de amor precisa ser trágica, como tantas vezes se repetiu nas representações de relacionamentos queer.


Visualmente, o filme encontra momentos de poesia ao transformar a Libras em coreografia. Com sua equipe de artistas PCds, negros e trans, cada gesto é filmado com atenção e cuidado, valorizando sua beleza como movimento e linguagem. Ao mesmo tempo, a direção de Costa encontra equilíbrio entre a delicadeza intimista das cenas cotidianas e a energia vibrante das performances artísticas, criando um diálogo entre vida e criação. Esse recurso reforça o quanto a imaginação e a expressão são ferramentas fundamentais de pertencimento.


O elenco é outro ponto alto. A entrega dos atores traz naturalidade e carisma, sustentando uma narrativa que, embora previsível em alguns momentos, nunca perde seu calor humano. Octavio Camargo, no papel de Miguel, dá densidade as arestas do triângulo, enquanto Sophia Grigolom, como Maya, completa esse grupo com presença carismática. A química entre Gabriela Grigolom e Chiris Gomes fortalece a mensagem de que histórias queer não precisam estar atreladas ao sofrimento ou ao fim trágico. A leveza e o humor que surgem em alguns trechos funcionam como respiros importantes em uma trama que fala de dores, mas também de superações.


Nesse sentido, “Nem Toda História de Amor Acaba em Morte” dialoga com um avanço notável da representatividade PCD, e, ainda mais, queer, no cinema nacional. Além dele, destacam-se o documentário “Assexybilidade”(2023), dirigido por Daniel Gonçalves (o mesmo de “Meu Nome é Daniel”, obra autobiográfica sobre sua deficiência), e o curta “Zagêro”(2024), de Victor Di Marco e Márcio Picoli, que reforçam a construção de um espaço mais plural, onde corpos e experiências diversas podem ser protagonistas e não apenas figuras marginais. Esse movimento inscreve a diferença como potência criativa, e não como limitação. 


“Nem Toda História de Amor Acaba em Morte” se consolida como um filme que acredita na esperança e no poder transformador das relações. Ao recusar a tragédia como destino inevitável, Bruno Costa oferece uma história que ilumina possibilidades, reforça a importância da diversidade e abre caminhos para que outras narrativas queer, negras e surdas possam florescer no cinema brasileiro. É um filme que merece ser celebrado tanto pelo gesto político quanto pela delicadeza de sua execução.



sexta-feira, 22 de agosto de 2025

Shadows in Mind (EUA, 2023)


Desde os primeiros minutos, "Shadows in Mind" impressiona por sua escolha narrativa: um thriller psicológico que se desenrola quase exclusivamente por ligações em linha de apoio LGBT, alternando com flashbacks que revelam os eventos que levaram à crise. Dirigido por Mark Schwab, "Shadows in Mind" acompanha Simon, operador de linha direta LGBTQ, que se torna cínico até Danny ligar, prometendo matar outros antes de si. Traição, dark web e relacionamentos perigosos alimentam um thriller tenso e introspectivo.

A atuação de Corey Jackson e Christian Gabriel confere uma intensidade comedida que serve ao tom do filme, rompendo com o esquema exagerado frequente em thrillers. Em vez disso, os diálogos são pontuados por pausas que falam tanto quanto as palavras, e a alternância entre o tenso ambiente do call center e os fragmentos de memória que explicam Danny permite que a trama se revele de forma orgânica e gradual.


Esta escolha estética reflete uma tendência crescente no cinema queer contemporâneo, onde thrillers e obras de gênero ganham protagonismo ao tratar a experiência LGBTQ+ com nuance e profundidade. Filmes como "Femme" (2024), de Sam H. Freeman e Ng Choon Ping, apostam num thriller de vingança carregado de trauma, desejo e ambiguidade moral Mas com "Shadows in Mind", utiliza a introspecção e mecanismos bastante específicos de gênero para tecer sua narrativa queer, ampliando o espectro do que se espera do cinema nessas fronteiras.


A fluidez narrativa e o foco emocional de "Shadows in Mind" ressoam bem com a proposta de um thriller. não se trata apenas de representação, mas de usar o suspense como plataforma para explorar questões complexas do afeto, da invisibilidade e dos riscos que circundam a comunidade queer. Ao contrário de thrillers convencionais, "Shadows in Mind" não disseca apenas o medo externo, mas sobretudo o conflito interno, o que faz a proposta ser tanto um suspense quanto uma elegia.


Ao comparar com "Femme", que desafia expectativas ao transformar um ataque em relação ambígua e carregada de tensão, vemos uma convergência temática: o thriller queer não precisa seguir os tropos de redenção ou justiça, mas pode funcionar como estudo de personagens em conflito, ressignificando estética e moralidade."Shadows in Mind", com seu minimalismo narrativo, destaca-se por fazer muito com pouco, a crise, a violência, o silêncio, tudo isso se transforma em densidade narrativa.


O longa encontra sua força na simplicidade e no foco emocional. Marcado por uma abordagem sóbria e respeitosa da experiência queer, o filme confirma que o thriller LGBTQIA+ contemporâneo não precisa de espetáculo, mas de caráter e criatividade. Como parte desse movimento recente, ele reforça a relevância de histórias que utilizam a tensão para iluminar dilemas pessoais e coletivos. 


quinta-feira, 21 de agosto de 2025

O Que Terá Acontecido a Baby Jane? (What Ever Happened to Baby Jane?, EUA, 1962)

 Há filmes que nasceram para o escândalo, e “O que terá acontecido a Baby Jane?” (1962) é um deles. Dirigido por Robert Aldrich, o longa coloca frente a frente duas divas do cinema clássico, Bette Davis e Joan Crawford, em um duelo que extrapola a tela e invade os bastidores. A trama é deliciosamente mórbida: Baby Jane Hudson, ex-estrela infantil em total decadência, vive ao lado da irmã Blanche, uma atriz paralisada e presa à cadeira de rodas. O que poderia ser um drama sobre irmandade se torna um espetáculo grotesco de ressentimentos, cárcere privado e vingança.

A cena em que Jane serve a irmã com um rato morto no prato é talvez um dos momentos mais icônicos do horror psicológico. É escandaloso, cruel e cômico ao mesmo tempo, um reflexo perfeito do tom híbrido do filme, que transita entre o grotesco e o camp. O espectador ri nervosamente, chocado pela violência do gesto, mas seduzido pela teatralidade de Davis, que mergulha sem freios na caricatura monstruosa. Crawford, em contraste, oferece uma Blanche fragilizada, sofrida, manipulada e, ainda assim, carismática.


O embate entre Davis e Crawford não era apenas encenação: os bastidores foram combustíveis para o mito. As atrizes realmente se odiavam, trocavam insultos, disputavam cada segundo de tela. Davis teria colocado pesos nos bolsos ao arrastar Crawford numa cena; Crawford, por sua vez, compareceu ao Oscar de 1963 só para roubar os holofotes da colega indicada. É o tipo de rivalidade que transformou o filme em lenda e que Ryan Murphy eternizaria em “Feud: Bette and Joan” décadas depois.


O impacto de “Baby Jane” não se restringe às fofocas. Esteticamente, é um marco do hagsploitation, subgênero que explorava atrizes veteranas em papéis de terror e decadência. O contraste entre a casa gótica, a maquiagem grotesca e os maneirismos caricatos de Davis constrói uma atmosfera sufocante. Aldrich filma cada close como uma punhalada, expondo rugas, suor, lágrimas e uma decadência impossível de disfarçar. É Old Hollywood sendo devorado pelo próprio espelho.


Também é impossível ignorar o subtexto: “Baby Jane” é uma reflexão amarga sobre o destino das mulheres em Hollywood, descartadas pela idade e aprisionadas em imagens públicas irreconciliáveis. Davis e Crawford não estão apenas atuando, estão exorcizando os próprios fantasmas da carreira. O resultado é um espetáculo tão cruel quanto honesto, em que a degradação feminina é explorada, mas também denunciada. É cinema de terror, sim, mas é também melodrama, sátira e tragédia.


Mais de sessenta anos depois, o filme permanece um clássico exagerado, referência direta para cineastas e séries que buscam tensionar glamour e decadência. De “Feud” a obras de John Waters, passando pela estética camp queer que abraça o grotesco, em telenovelas e programas de TV, “Baby Jane” segue como uma ferida aberta no cinema americano. Uma história de ódio, vaidade e showbusiness que nunca envelhece, pelo contrário, ganha força com o tempo. Porque, afinal, quem consegue esquecer Baby Jane cantando “I’ve Written a Letter to Daddy” enquanto o mundo desmorona à sua volta?

FEUD: Bette and Joan (EUA, 2017)

 

"Feud: Bette and Joan", de Ryan Murphy, revive a rivalidade lendária entre Bette Davis e Joan Crawford, explorando os bastidores de “O que terá acontecido a Baby Jane?”. A série questiona a construção da fama, o envelhecimento e o estrelato feminino numa indústria marcada pelo etarismo, glamour e manipulações veladas, temas pertinentes ainda hoje.

Susan Sarandon e Jessica Lange dominam a tela, transmitindo fragilidade, tensão e poder com precisão. O elenco de apoio, incluindo Catherine Zeta-Jones, Kathy Bates, Alfred Molina e Stanley Tucci, adiciona densidade dramática e com pequenas figuras como Mamacita (Jackie Hoffman), surge um humor ácido que alivia e humaniza a narrativa, obrigado, Ryan Murphy.

A narrativa fragmentada alterna drama tradicional com momentos de mockumentary, incluindo entrevistas e reimagniações de clássicos. A recriação de “A Malvada”, de “Almas em Suplício” e de cenas icônicas de “O que terá acontecido a Baby Jane?” evoca Old Hollywood, METACINEMA PURO. Figurinos, maquiagem PREMIADOS COM O EMMY, e cenários são meticulosamente recriados, refletindo um cuidado estético digno de prêmios. A forma que a série mostra como foi feita a cena icônica na praia, consolida o metacinema como um dos pilares da atração.

Desde o início, a rivalidade entre Davis e Crawford é palpável, reforçada pela trilha incidental, troca de farpas, pencas de cigarros, drinks e canções icônicas. A manipulação masculina é explorada por figuras como Robert Aldrich (Alfred Molina), o diretor do filme, e Jack L. Warner (Stanley Tucci), o chefão da Warner Bros, que alimentam o ódio e os conflitos entre as estrelas, transformando tensão em espetáculo público. Joan Crawford é tratada com mais camadas, oferecendo uma perspectiva mais complexa para quem odiou “Mamãezinha Querida”.


Na segunda metade vemos o lançamento de “Baby Jane” como um filme B, aclamado contra todas as expectativas. A personagem Pauline (Alisson Wright) surge como voz pioneira das mulheres no cinema. O episódio do Oscar é puro glamour e veneno, recriando 1963 com traições de Crawford que traumatizam Davis e com maior relevância de Olivia de Havilland (Zeta-Jones).

Já em final de carreira, Crawford brilha em “Almas Mortas”, transformada em diva trash, com direito a machado e participação de John Waters. Surge então a tentativa fracassada de repetir o sucesso de “Baby Jane” em “Com a Maldade na Alma”, culminando em ironia máxima com o letreiro Beba Coca-Cola e um processo para a rainha da Pepsi. O encerramento é agridoce, com declínios televisivos, revelações íntimas e procedimentos estéticos, reforçando a atmosfera melancólica do mockumentary e encerrando a série como uma ode sombria, caótica e apaixonada a Hollywood.

Ryan Murphy demonstra talento ao transformar bastidores em narrativa fascinante. Parcerias recorrentes, como a presença de Sarah Paulson ou Alfred Molina (The Normal Heart), reforçam a continuidade criativa. A série destaca representatividade queer, especialmente na relação de Davis com Victor Buono (Dominic Burgess), incluindo cenas que exploram cinema pornô e a polícia da época, simbolizando os segredos do armário de Hollywood, universo em que Murphy se renderia brevemente em uma série homônima.

"Feud: Bette and Joan" combina estudo de personagem, crítica social, atuações gigantes e homenagem histórica. Ao equilibrar drama, ironia e tensão familiar, a série revela os mecanismos da fama e do ódio em Hollywood, reafirmando o legado de Davis, Crawford e Baby Jane, e mostrando que rivalidade, genialidade e humor ácido podem caminhar lado a lado. É sombria, melancólica, mas também um tributo vibrante ao cinema e às mulheres que ajudaram a moldá-lo.

quarta-feira, 20 de agosto de 2025

13 anos de A24: 13 filmes queer para celebrar


Fundada em Nova York em 2012, a A24 rapidamente se tornou um dos principais nomes do cinema independente. A produtora consolidou sua identidade ao investir em narrativas ousadas, dar liberdade criativa a cineastas autorais e construir um catálogo que transita entre o prestígio dos prêmios e a devoção dos cinéfilos.

Para marcar os 13 anos de existência, o CINEMATOGRAFIA QUEER selecionou 13 produções que exploram experiências e sensibilidades queer em diferentes gêneros e estilos. São filmes que reafirmam a importância da diversidade dentro da linguagem cinematográfica e que fazem da A24 uma referência incontornável de inovação e representatividade.

Moonlight, de Barry Jenkins


Da infância à vida adulta, Chiron busca identidade, afeto e pertencimento em meio à dureza de Miami. Um retrato poético da masculinidade negra e queer que venceu o Oscar de Melhor Filme.

"Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo" (Everything Everywhere All at Once) (2022, dir. Daniel Kwan & Daniel Scheinert)
Evelyn, imigrante chinesa, descobre que precisa salvar o multiverso enquanto enfrenta crises familiares. Uma aventura caótica, emocional e queer que fez história no Oscar.

"I Saw the TV Glow" (2024, dir. Jane Schoenbrun)
Escrito e dirigido por Schoenbrun, explora identidade queer e depressão de maneira abstrata. Vendido como terror, mas é um drama psicodélico e psicológico sobre crescer em um mundo hostil.

"Queer" (2024, dir. Luca Guadagnino)
Baseado em William Burroughs, acompanha a solidão e os amores de um expatriado gay no México dos anos 1950. Intenso, literário e vulnerável.

Um imigrante salvadorenho tenta permanecer em Nova York enquanto persegue sonhos artísticos. Fantasia, humor absurdo e crítica social se misturam em chave queer.

"Bodies Bodies Bodies" (2022, dir. Halina Reijn)
Um grupo de jovens ricos se reúne para uma noite de jogos e drogas, mas a tensão vira paranoia e violência. Terror satírico sobre amizade, sexualidade e privilégio.

"Aftersun" (2022, dir. Charlotte Wells)
Um pai e sua filha passam férias na Turquia nos anos 90. Memórias fragmentadas revelam a melancolia e os silêncios de uma relação íntima e dolorosa.

Aftersun, de Charlotte Wells

"Close" (2022, dir. Lukas Dhont)
A amizade intensa entre dois garotos é abalada pelo olhar cruel da sociedade. Um filme delicado sobre inocência, masculinidade e perda.

"A Baleia" (The Whale) (2022, dir. Darren Aronofsky)
Um professor recluso busca se reconectar com a filha enquanto enfrenta a obesidade extrema. Uma história de dor, redenção e amor queer.

"Love Lies Bleeding" (2024, dir. Rose Glass)
Anos 80, fisiculturista e gerente de academia iniciam um romance explosivo em meio a violência, desejo e corpos em transe. Um noir queer cheio de músculos e paixão.

"The Inspection" (2022, dir. Elegance Bratton)
Um jovem gay rejeitado pela mãe entra para os fuzileiros navais. Entre disciplina e preconceito, encontra força para afirmar sua identidade.

"Sing Sing" (2023, dir. Greg Kwedar)
Drama baseado em fatos reais, mostra presos ensaiando uma peça de teatro. O afeto queer emerge como resistência em meio ao encarceramento.

"Saint Maud" (2019, dir. Rose Glass)
Enfermeira recém-convertida ao catolicismo se torna obcecada por salvar a alma de sua paciente. Terror psicológico com desejo, fé e delírio.

Tudo em Todo Lugar ao Mesmo Tempo, dos Daniels