“Hairspray” marca um momento singular na carreira de John Waters, um trabalho mais comercial, mas que nunca abandona totalmente sua identidade irreverente. Lançado em 1988, o filme coloca seu olhar debochado sobre a juventude dos anos 60 e mistura esse passado com sua estética exagerada, sempre muito ligada ao camp.
O elenco é simplesmente icônico, reunindo talentos improváveis em uma mesma tela. Divine brilha como Edna Turnblad, um dos papéis mais lembrados de sua carreira, e também aparece em um personagem masculino, reafirmando sua versatilidade. Ruth Brown, como Motormouth Maybelle, empresta não só sua voz poderosa, mas também um peso histórico à discussão sobre segregação racial. Há ainda Debbie Harry, deliciosamente cruel como Velma Von Tussle, e Sonny Bono.
No centro da trama está Tracy Turnblad (Ricki Lake) uma adolescente plus size que enfrenta preconceitos na escola por conta do seu cabelo volumoso. Sua jornada de afirmação a coloca em rivalidade com Amber Von Tussle, loira e maldosa representante do padrão de beleza da época. O conflito é típico de melodrama juvenil, mas Waters o conduz com ironia e subversão.
A recriação da Baltimore dos anos 60 é essencial, já que a cidade funciona como verdadeiro epicentro do cinema de John Waters. Ao mesmo tempo que captura a estética da época, o diretor a contamina com sua identidade visual carregada, abusando de cores, penteados, figurinos espalhafatosos, músicas e coreografias que parecem sempre à beira da sátira.
O filme ganha força especialmente ao abordar a questão da segregação racial. O programa de TV fictício que serve de pano de fundo para a narrativa funciona como metáfora para a sociedade americana da época, ainda resistente a qualquer mudança em relação à diversidade. É nesse ponto que Ruth Brown brilha como Maybelle, transformando sua participação em um manifesto.
“Hairspray” também se destaca como uma obra sobre inclusão, seja pela representatividade de Tracy como protagonista fora do padrão, seja pela ousadia de Divine como Edna, quebrando barreiras de gênero e ampliando a ideia de quem pode ocupar a tela. Há ainda espaço para curiosidades como o cameo do próprio John Waters e a presença do lindo Michael St. Gerard, com sua aura de Elvis Presley.
Embora menos grotesco que outras produções do diretor, o filme mantém sua essência provocadora. Foi a última colaboração de Waters com Divine, encerrando uma parceria histórica no cinema queer e underground. Mesmo não tendo se adaptado ao mainstream de forma definitiva, Waters entregou aqui um hino pop, que transcende o camp ao revelar múltiplas camadas de crítica social, música, cor e pura diversão.
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