“100 Nights of Hero”, de Julia Jackman, constrói um universo de fantasia histórica que aposta declaradamente no visual over, na composição plástica e na estilização como eixo principal de sua experiência. Inspirado na graphic novel de Isabel Greenberg e em “As Mil e Uma Noites”, o filme segue Cherry (Maika Monroe), deixada à própria sorte pelo marido Jerome (Amir El-Masry) depois de uma aposta com Manfred (Nicholas Galitzine), enquanto a empregada Hero (Emma Corrin) usa a narrativa como estratégia de sobrevivência e subversão. Desde o início, o longa deixa claro que sua ambição está menos na progressão dramática clássica e mais na criação de um espaço de fábulas onde imagens, cores e gestos falam mais alto que conflitos psicológicos densos.
A encenação de Jackman privilegia um mundo deliberadamente artificial, quase teatral, no qual figurinos exuberantes, cenários estilizados e uma fotografia de tons saturados criam um conto de fadas queer autoconsciente. Essa escolha estética é sedutora e coerente com a proposta de reescrever mitos a partir de uma perspectiva feminista e sáfica, mas também impõe um limite. Muitas vezes, a forma se sobrepõe ao conteúdo, transformando tensões políticas e afetivas em ornamentos visuais bem-acabados, porém menos incisivos do que poderiam ser.
A essência do filme está na relação entre Cherry e Hero, que se desenvolve como um romance de descoberta queer marcado pela delicadeza e pela curiosidade. Emma Corrin oferece uma Hero carismática, de gênero fluido, cuja presença organiza tanto o desejo quanto a rebelião simbólica do filme. Maika Monroe, por sua vez, encarna Cherry como uma figura em transição, menos uma personagem plenamente complexa e mais um corpo atravessado por despertar e deslocamento.
A crítica ao patriarcado é satírica e alegórica, com homens apresentados como figuras de bravata vazia, paranoia moral e controle institucionalizado. O Birdman interpretado por Richard E. Grant funciona como caricatura de um poder religioso e de gênero que dita regras absurdas, enquanto mulheres são punidas por falhas que não lhes pertencem.
Nesse contexto, a presença de Charli XCX surge como exemplo emblemático dessa lógica ornamental. Sua participação adiciona camadas de estilo, carisma pop e iconografia queer ao universo do filme, mas permanece superficial, funcionando mais como adereço estético do que como elemento narrativo com peso dramático real. É um gesto que reforça o caráter fashion e performático de “100 Nights of Hero”, mas também evidencia como certas escolhas parecem existir mais para compor um imaginário cool do que para aprofundar sentidos.
“100 Nights of Hero” é uma fábula queer feminista visualmente cativante, que celebra o poder da narrativa, da imaginação e do desejo entre mulheres como formas de resistência. No entanto, sua força reside muito mais na elegância da forma do que na complexidade do conteúdo. É um filme que prefere seduzir pelo brilho, pela composição e pelo encanto do artifício, deixando a sensação de que, por trás de tamanha beleza, havia espaço para um gesto mais radical, menos decorativo e mais disposto a ferir as estruturas que critica.
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