quinta-feira, 18 de dezembro de 2025

Abre Alas (Brasil, 2025)

A estreia em longa-metragem de Ursula Rösele, “ABRE ALAS”, aposta em um gesto radicalmente simples e politicamente potente: reunir sete mulheres entre 53 e 85 anos em um mesmo espaço e permitir que suas histórias sejam ditas, encenadas e partilhadas. O filme não se organiza a partir de uma progressão narrativa clássica, mas como um dispositivo de escuta e presença, no qual memória, performance e corpo se articulam como matéria cinematográfica. O que emerge não é um inventário de traumas, mas um campo de elaboração, em que falar torna-se ação e a experiência vivida ganha forma estética.

Rösele constrói um documentário que opera no limite entre o real e o simbólico, recusando tanto o didatismo quanto a exploração sensacionalista das dores narradas. As protagonistas não são tratadas como personagens exemplares ou casos a serem explicados, mas como sujeitos que performam a própria existência, reencenando lembranças, afetos e rupturas. A câmera sustenta esse pacto ético com enquadramentos que respeitam o tempo da fala e do corpo, criando uma relação de proximidade que não invade, mas acompanha.


As histórias atravessam violências domésticas, abandono, exclusão social, luto, transfobia e precariedade econômica, porém o filme evita fixar essas mulheres exclusivamente na posição de vítimas. Walkíria, mulher trans com mais de 60 anos, apresenta uma compreensão expandida de família e pertencimento, enquanto Dora afirma sua identidade feminina para além da dor e da vergonha impostas. Silvana, Sheila, Regina, Lorena e Heloísa compartilham trajetórias marcadas por perdas e reinvenções, revelando como o amadurecimento pode abrir espaço para desejo, prazer e autonomia, mesmo após décadas de silenciamento social.


A dimensão coletiva é um dos eixos mais relevantes de “ABRE ALAS”. Ao reunir essas mulheres em um mesmo espaço, o filme produz um campo de ressonância entre experiências distintas, criando alianças afetivas e políticas que ultrapassam recortes geracionais, identitários ou de classe. A presença de mulheres trans ao lado de mulheres cis, sem hierarquização ou exotização, amplia o alcance do filme dentro de um cinema brasileiro ainda carente de representações maduras, complexas e interseccionais da velhice e da feminilidade.


Formalmente, o trabalho dialoga com a tradição da performance documental associada a Eduardo Coutinho, mas encontra uma assinatura própria ao transformar o set em espaço de criação compartilhada. A fotografia de Jenny Cardoso e a montagem de Beatriz Pomar sustentam um equilíbrio delicado entre intimidade e construção estética, evitando a ilusão de espontaneidade absoluta e assumindo o cinema como encontro mediado, consciente de sua forma.


Premiado no Femina 2025, “ABRE ALAS” afirma Ursula Rösele como uma diretora interessada menos em respostas do que em processos. O filme entende o cinema como prática de cuidado, elaboração e reinvenção, propondo um olhar que reconhece as marcas do passado sem aprisionar suas personagens nelas. Ao colocar mulheres maduras no centro da cena, com desejo, contradição e potência criativa, a obra amplia o repertório do documentário brasileiro contemporâneo e reivindica, com delicadeza e rigor, o direito de existir em plenitude.



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