segunda-feira, 1 de dezembro de 2025

Ponto e Vírgula (Brasil, 2024)

 “Ponto e Vírgula” integra uma das vertentes mais urgentes do cinema brasileiro, ao deslocar para a terceira idade um conjunto de afetos que raramente alcança protagonismo. Dirigido e roteirizado por Thiago Kistenmacker, o curta de 2024 reafirma o compromisso do cineasta com histórias LGBTQIA+ que atravessam periferia, dissidência e memória. Seu percurso é marcado por trabalhos como “Voltando para casa”, “Canto da Sombra”, “Ontem” e “Memória de quem (não) fui”, e aqui a ampliação geracional surge como gesto político, trazendo para o centro dois homens idosos cujas trajetórias foram moldadas por expectativas heteronormativas e por décadas de apagamento.

Wilson Rabelo e Buda Lira, colaboradores frequentes de Kleber Mendonça Filho, interpretam João e Vitor, antigos amantes que a vida separou. Após a morte da esposa de um deles, o reencontro ocorre quando ambos já passaram dos 70 anos. Esse retorno não funciona como reparação melodramática, mas como abertura sensível para um tempo suspenso, onde o passado insiste em reaparecer. O filme organiza suas tensões a partir de olhares, hesitações, toques e diálogos contidos, permitindo que o reencontro expresse as marcas daquilo que foi vivido em segredo. O título sugere essa temporalidade intermitente, indicando que o que parecia encerrado pode ganhar continuidade, mesmo que impregnado por luto, vergonha, desejo e memórias não nomeadas.

A direção de Kistenmacker evidencia maturidade estética ao trabalhar com precisão as presenças desses corpos envelhecidos, frequentemente negligenciados pelo imaginário queer.  A câmera investiga gestos cotidianos com cuidado, ampliando as nuances do reencontro e explorando o impacto do tempo sobre vínculos interrompidos pela homofobia estrutural. A trilha de Liniker atua como extensão afetiva das memórias, criando uma camada sonora que acolhe, tensiona e ressignifica a história desses homens. A presença artística de Rocco Pitanga reforça o peso simbólico da narrativa, alinhada à escolha de um elenco composto por figuras negras e veteranas, algo que adiciona dimensão social à trajetória desses personagens.

O reconhecimento recebido em Gramado confirma a relevância de “Ponto e Vírgula”. O curta conquistou três Kikitos, incluindo Prêmio Especial do Júri, Melhor Ator para Wilson Rabelo e Melhor Trilha Musical para Liniker, resultado expressivo para um filme que inscreve a velhice queer no panorama de festivais brasileiros. Essa acolhida crítica e institucional reflete tanto a força das atuações quanto a delicadeza com que o filme estrutura afetos marcados por silenciamento histórico, racismo e normas de masculinidade. Há uma potência particular no modo como Kistenmacker articula intimidade e história, inscrevendo o desejo gay num recorte racial, de classe e geracional pouco retratado.

Com 17 minutos, “Ponto e Vírgula” constrói uma narrativa breve, mas de grande densidade emocional. A obra se destaca por rejeitar explicações excessivas, concentrando-se no impacto silencioso do reencontro entre dois homens que atravessaram a vida carregando as consequências do armário. O curta consolida um gesto fundamental dentro do cinema queer brasileiro, ao iluminar desejos que sobreviveram à repressão e ressurgem na longevidade como possibilidade de reconexão. A sensibilidade de Kistenmacker reafirma uma busca por histórias que ampliam o imaginário LGBTQIAPN+ para além dos recortes habituais, tornando o filme uma peça marcante na representação das masculinidades no país.

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