terça-feira, 16 de dezembro de 2025

Call me Agnes (Países Baixos, 2025)

“Call Me Agnes”, estreia em longas do brasileiro radicado na Holanda Daniel Donato, aposta em uma forma híbrida para narrar a vida de Agnes (Agnes Geneva), uma mulher trans indonésia que construiu sua rotina na Holanda entre o trabalho em um pequeno restaurante, a convivência com amigos queer migrantes e a dança como espaço de respiração coletiva. Inspirado livremente na trajetória real de sua protagonista, o filme borra deliberadamente as fronteiras entre ficção e documentário, instaurando desde os primeiros minutos um jogo de intimidade e encenação que marca toda a experiência.

A chegada inesperada de Indra (Gianluca Koeswanto), jovem que cresceu na família de Agnes e a procura pelo irmão mais velho Hans, funciona como eixo dramático do filme. O conflito se estabelece não pela transição em si, que jamais é verbalizada, mas pelo peso afetivo de um passado que insiste em reaparecer. Essa escolha narrativa desloca o foco do discurso explicativo sobre identidade trans para um território mais sutil, onde o afeto, a memória e o pertencimento familiar produzem tensões silenciosas, ainda que nem sempre plenamente exploradas.

Um dos gestos mais potentes de “Call Me Agnes” está justamente na recusa em tematizar a transgeneridade como problema central. Agnes é apresentada como alguém em paz consigo mesma, cercada por uma comunidade queer migrante que compartilha rotinas, confidências e desejos. O filme sugere, de maneira delicada, que mesmo após uma transição bem resolvida, conflitos continuam a emergir, não como negação da identidade, mas como fricções emocionais entre passado e presente, intimidade e expectativa alheia.

A abordagem híbrida escolhida por Donato confere autenticidade a muitas sequências, especialmente aquelas que flertam com o registro documental, como os encontros esportivos e as cenas de dança. Agnes Geneva, interpretando a si mesma e colaborando no roteiro, sustenta o filme com uma presença magnética e generosa. No entanto, a indecisão formal do projeto cobra seu preço, já que interrupções frequentes da narrativa, seja por interlúdios musicais ou falas diretas à câmera, fragmentam o fluxo dramático e diluem a força do conflito central.

A direção revela o olhar atento de um cineasta formado na fotografia. Mesmo sob a direção de fotografia de Lamis Al Mohamad, Donato imprime um cuidado evidente com enquadramentos e texturas, criando imagens de forte apelo sensorial. Ainda assim, a tentativa de articular drama familiar, comédia leve e musical onírico resulta em uma mistura desigual. As passagens humorísticas e musicais, em vez de aprofundar a experiência emocional, frequentemente desaceleram o ritmo e tornam a dramaturgia hesitante, como se o próprio filme evitasse confrontar suas questões mais delicadas.

Apesar de suas fragilidades, “Call Me Agnes” permanece relevante pelo espaço que abre a uma subjetividade raramente vista no cinema, a de uma mulher trans migrante cuja história não se define pela explicação didática de sua identidade. O filme falha em organizar plenamente suas ideias, mas acerta ao oferecer um retrato afetivo, íntimo e imperfeito, que recusa classificações fáceis. Como obra inaugural, revela um cineasta em busca de forma e uma protagonista cuja presença sustenta, mesmo nas lacunas, a potência de uma narrativa queer que insiste em existir fora dos modelos convencionais.

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