quinta-feira, 4 de dezembro de 2025

O Estrangeiro (L'Étranger, França, 2025)

François Ozon retorna à literatura com “O Estrangeiro”, uma adaptação que privilegia o essencialismo formal e a fidelidade filosófica ao romance de Albert Camus. Ambientado na Argel de 1938, o filme acompanha Meursault (Benjamin Voisin), jovem empregado cuja reação apática à morte da mãe inaugura uma sucessão de eventos marcados pela indiferença, pelo desejo e pela violência estrutural. Ozon recusa a reconstituição suntuosa e constrói uma narrativa que busca a secura do texto original, preservando sua opacidade moral enquanto amplia a dimensão histórica do período colonial.

A fotografia em preto e branco de Manu Dacosse é central para essa proposta. O contraste entre luz intensa e sombra profunda estrutura a atmosfera árida que envolve Meursault, fazendo do sol escaldante um elemento narrativo. A plasticidade da imagem evoca tanto a brutalidade da paisagem quanto a diluição emocional do protagonista, estabelecendo um espaço de tensão entre o calor físico e o vazio afetivo. A Argel aqui filmada não é cenário ilustrativo, mas território de isolamento, desejo e ameaça latente.

A atuação de Benjamin Voisin reforça o caráter enigmático de Meursault, incorporando um desinteresse que beira o mecanicismo, em sintonia com influências de Robert Bresson; A utilização pontual da voz-off resgata o monólogo interno do romance e diferencia a adaptação de Ozon ao permitir que o espectador acesse a lógica interna do protagonista. Essa escolha reforça o projeto de fidelidade literária, devolvendo ao filme a introspecção filosófica que muitas versões anteriores suavizaram.

Mesmo sem ser explicitamente uma obra queer, “O Estrangeiro” insinua uma dimensão homoerótica sutil, sobretudo nas cenas em que Meursault é filmado com corpo semi-nu na praia  o calor, o olhar contemplativo e a exposição sexualizada convergem para criar uma ambiguidade de desejo e corpo como objeto estético. O diretor transforma Meursault em objeto de desejo ambíguo, não apenas para Marie (Rebecca Marder), mas para um olhar erótico mais amplo. A fluidez dessa representação se torna coerente com a tradição de Ozon em retratar identidades em tensão e desejos fora de convenções.

A comparação com o “O Estrangeiro” de Luchino Visconti (1967) ressalta o gesto particular de Ozon. Enquanto Visconti priorizava uma leitura visual e menos introspectiva, influenciada por restrições políticas e pela conjuntura da guerra da Argélia , Ozon aposta na interioridade e no rigor psicológico. Seu filme assume a relação colonial de forma explícita, destacando tensões raciais e sociais que Visconti precisava contornar. 

Ao lidar com o assassinato do árabe na praia,  evento central, Ozon resiste ao melodrama e encara a violência como produto de circunstâncias banais, estúpidas e coloniais. A ausência de ênfase emocional amplifica o desconforto ético da narrativa, ressaltando a brutalidade silenciosa da ocupação francesa e a mecânica da indiferença que permeia os vínculos sociais. 

“O Estrangeiro” é uma adaptação rigorosa, inquietante e profundamente consciente de seu tempo. Ao conjugar fidelidade filosófica, olhar histórico e sensualidade ambígua, Ozon cria uma obra que confronta o espectador com a aridez do mundo de Meursault sem buscar explicá-lo. É cinema que mantém a ferida aberta, que atualiza a complexidade de Camus e que reafirma a capacidade do texto clássico de gerar novas leituras, estéticas, políticas e, aqui, também de um prisma queer.

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