O reconhecimento crítico recente a “Labirinto dos Garotos Perdidos”, incluindo elogios da Rolling Stone, marcou um ponto de inflexão na trajetória de Matheus Marchetti. Um filme assumidamente menor em escala orçamentária e ambição industrial acabou se tornando o trabalho mais visível de sua carreira até aqui, ampliando público e consolidando uma estética autoral que transita entre o teatro filmado, o horror simbólico e o desejo queer como matéria dramática. A entrada quase integral de sua filmografia no catálogo da FILMICCA reforça esse movimento, oferecendo ao cinema de Marchetti uma circulação inédita no Brasil e reposicionando sua obra dentro de um ecossistema curatorial atento ao risco formal: “Meus filmes sempre circularam de uma forma mais underground, muitas vezes fechados na região Sudeste, e sinto que estou conseguindo atingir um público muito maior com eles”, comenta.
A expectativa é que esse novo alcance funcione também como terreno fértil para a recepção de “O Retrato de Dorian Gray”, previsto para o segundo semestre de 2026. Se “Labirinto dos Garotos Perdidos” dialogava com o universo do Grindr e com referências como “Depois de Horas”, de Scorsese, o aprendizado estético que desemboca em “Dorian Gray” vem, curiosamente, do teatro. Marchetti aponta a gravação de seu espetáculo “O Bosque dos Sonâmbulos” como experiência-chave. “Aquilo que era para ser um mero registro ganhou vida própria. A câmera revelou ângulos, texturas e detalhes invisíveis ao olhar do espectador ao vivo”, explica.
Essa descoberta orienta a concepção de “O Retrato de Dorian Gray”, pensado como uma peça filmada que se transforma em outra obra. A referência a Guy Maddin e ao “Drácula” encenado como balé no palco, assim como ao “Edward II”, de Derek Jarman, ajuda a situar o projeto. Ensaiado e gravado como teatro, o filme articula o espaço cênico quase vazio com intervenções externas, gravadas no litoral paulista e nas áreas nobres do Theatro Municipal. “Quando Dorian e Henry vão ao teatro assistir uma ópera, a ópera acontece no mundo real, enquanto a realidade deles se passa dentro do proscênio”, descreve o diretor, definindo o projeto como o mais formalmente experimental de sua carreira, ainda que narrativamente mais convencional.
| Matheus Marchetti em ação, em "O Retrato de Dorian Gray" |
Diferentemente de suas releituras livres de “Drácula” e Poe, Marchetti opta aqui por uma fidelidade quase radical ao texto de Oscar Wilde. A motivação é direta. “Tudo o que eu precisava já estava lá, era só colocar na tela”, afirma. O diretor chama atenção para algo recorrente nas adaptações anteriores, a timidez diante do homoerotismo explícito do romance. “Não chega nem a ser subtexto, é puramente texto. Não consigo imaginar ler esse livro e interpretá-lo de qualquer outra forma”, observa.
Embora ambientado na época vitoriana, “O Retrato de Dorian Gray” dialoga diretamente com inquietações contemporâneas. Marchetti rejeita uma atualização literal para o presente, apostando em anacronismos visuais e formais. O que interessa não é o culto digital à imagem, mas um medo mais profundo. “É o medo de envelhecer e morrer sem poder viver autenticamente, algo muito presente fora do sistema cisheteronormativo”, explica.
Essa angústia atravessa Dorian, Basil e Henry de maneiras distintas. A arte como substituto do toque, a juventude eterna como prisão e o desejo como força que isola são tensões centrais do filme. Visualmente, essa frustração se traduz em imagens deliberadamente imperfeitas. Filmado em digital, mas distante da alta definição cristalina, o longa aposta em ruído, fumaça e foco instável. “Assim como a busca de Dorian por perfeição é frustrada, a imagem nunca está completamente ‘limpa’”, comenta o diretor.
Apesar da aura gótica, Marchetti enfatiza o humor como elemento estruturante da obra, recuperando o Wilde satírico. “Muitos vão se surpreender com o quão engraçado esse texto consegue ser”, antecipa. O filme não se organiza como musical tradicional, mas incorpora números musicais, incluindo um dream ballet de quase dez minutos, reafirmando a relação do diretor com o erudito.
O horror surge como presença estilizada, em diálogo com o Expressionismo Alemão e com o cinema de Michael Powell e Emeric Pressburger. Trata-se menos de choque e mais de atmosfera, em sintonia com um cinema queer que trabalha o excesso como forma e o artifício como linguagem. Com Rodrigo Cavalini, Johnny Hooker, Tony Germano, Nuno Lima, Gabriel Muglia, Tuna Dwek, Yelon Daniel, Andy Cruz, Pedro Ferreira, Gabriel Cersosimo, Rafa Neves, Caio Mutai, Julio Mourão no elenco, “O Retrato de Dorian Gray” aponta para um cinema que não busca acomodação, mas reinvenção formal, fidelidade radical ao desejo e disposição para enfrentar seus próprios fantasmas estéticos e históricos.
Nenhum comentário:
Postar um comentário