quarta-feira, 26 de fevereiro de 2025

I Don't Want to Be Just a Memory (Alemanha, 2024)

O documentário "I Don't Want to Be Just a Memory", de Sarnt Utamachote, é uma obra profundamente pessoal e politicamente engajada que emerge nas camadas emocionais e sociais da comunidade queer de Berlim. O filme oferece um retrato comovente e multifacetado sobre luto, memória e resiliência em meio às crises de saúde mental e abuso de substâncias que afetam a comunidade LGBTQIA+. Utamachote, cineasta não-binário de origem sudeste-asiática radicado em Berlim, utiliza o cinema como ferramenta de cura coletiva, transformando a dor da perda em um exercício de resistência e conexão.

O filme centra-se em membros da comunidade queer de Berlim que compartilham memórias, rituais e reflexões sobre amigos perdidos para o abuso de substâncias e a crise de saúde mental. A metáfora central do documentário — a comparação com fungos bioluminescentes que brilham na escuridão — é tanto visual quanto conceitual, sugerindo que, mesmo na morte, as relações e os legados podem iluminar e sustentar os vivos. 


O documentário aborda de forma sensível e poderosa a representatividade queer em diálogo com o luto, explorando as camadas emocionais e sociais que atravessam as vivências de pessoas LGBTQIA+. A obra mergulha nas memórias e nas perdas de uma comunidade frequentemente marginalizada, destacando como o luto não é apenas uma experiência individual, mas também coletiva, marcada por lutas contra a invisibilidade e o apagamento. 


Estilisticamente, o filme parece equilibrar uma estética crua e documental com momentos de poesia visual. A escolha de filmar em locações reais de Berlim reforça a autenticidade da narrativa, ancorando-a no contexto urbano que molda as experiências dos personagens. 


O diretor estabeleceu uma equipe de conscientização para garantir consentimento contínuo durante e após a produção, refletindo um compromisso com a segurança emocional dos participantes. Essa abordagem ética não é apenas um bastidor técnico, mas uma extensão da própria narrativa, que busca dar voz a indivíduos frequentemente traumatizados sem explorá-los.


Uma das maiores forças de "I Don't Want to Be Just a Memory" é sua capacidade de transformar o luto em um ato coletivo de resistência. Ao focar em rituais de memória e na crítica à cena clubber de Berlim (descrita como emocionalmente fria e incapaz de lidar com a dor), o filme desafia a superficialidade muitas vezes associada à nightlife e propõe uma reflexão mais profunda sobre cuidado e pertencimento.


A metáfora dos fungos bioluminescentes é um dos elementos mais intrigantes. Ela sugere uma rede interconectada de suporte que transcende a morte, remetendo a ideias de ecologia emocional e memória como sustento para o futuro. Esse simbolismo eleva o filme de um simples registro de perdas a uma reflexão filosófica sobre como as comunidades podem se regenerar em tempos de crise.


"I Don't Want to Be Just a Memory" é oportuno e necessário. Ele dialoga com outras obras contemporâneas que exploram o luto queer,  como os registros históricos da crise da AIDS, nos anos 1980 e 1990 , mas atualiza essa narrativa ao abordar os desafios do século XXI, como a solidão nas metrópoles e os impactos do hedonismo.



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