“Ruas da Glória” parte de uma dor familiar para desvelar uma inquietação íntima: Gabriel (Caio Macedo), jovem recifense professor de literatura, perde a avó, deixa sua zona confortável e vai ao Rio em busca de algo que nem ele sabe dizer. Em meio a luto e privilégio, ele encontra Adriano (Alejandro Claveaux), garoto de programa uruguaio cuja presença magnética o arrasta para um abismo de desejo, obsessão e autodestruição. Esse encontro marca o início de uma trajetória existencial onde Gabriel troca segurança por risco, mofo por visceralidade, máscara por verdade.
O submundo da prostituição masculina é mais do que cenário de tensão sexual em “Ruas da Glória”, é campo de batalha moral e corporal. Gabriel se torna acompanhante, mergulha no espectro da marginalidade, e expõe a ferida da identidade represada. O espectador não é poupado do aspecto mais pervertido do sexo, ou então do intenso consumo de drogas. O Bar da Glória, sob domínio de Mônica (Diva Menner), atriz trans premiada no Festival do Rio, surge como refúgio, como família escolhida e também como contrapeso à violência social
O retrato visual do filme faz justiça às emoções que empurram Gabriel. A fotografia de Léo Bittencourt capta o Rio não apenas como cidade luminosa, mas como palco de sombras, becos, calçadas úmidas, puteiros, as noites na Cinelândia, no centro, luzes de néon que piscam. A montagem de Luisa Marques enfatiza o ritmo da busca, o compasso irregular da obsessão, o hiato entre expectativa e ausência. A trilha também é personagem, com canções que vão de Letrux à Bethânia passando por Lady Zu. As cenas de sexo são ousadas e um ponto chave de intensidade: o corpo torna-se documento de paixão, dor, redenção.
Gabriel não é herói nem mártir: ele é alguém vibrando na tormenta. Sua sexualidade “saída do armário” não é glamour nem redenção imediata, é gume cortante de verdade pessoal contra o negativo social. Adriano não é idealizado, é desejo que consome, sombra que some. Há, na história, culpa, desejo, medo de julgamento, autodestruição. Sholl se recusa a pintar tudo suave: ele mergulha no caos emocional porque sabe que é lá que o queer encontra sua matéria mais crua.
“Ruas da Glória” também é um filme de comunidade, de barro, de voz, de corpo presente. O carisma de Mônica como dona do bar não é acessório, é central. É ela que costura laços, que oferece companhia, escuta, alimento e dignidade. O filme propõe que ser LGBTQIA+ em contexto operário, marginalizado, é também criar filiação, família escolhida, compreensão onde o sistema nega. Resistência que se faz em coletivo.
A obsessão se estende em círculos perturbadores de paranoia. Figuras secundárias poderiam ter ido mais fundo. Mesmo assim, “Ruas da Glória” brilha como obra de passagem, entre a dor e a coragem, entre identidade suprimida e voz afirmada. É um filme que exige do espectador coragem emocional, que pergunta o peso de existir, amar, ser visto.
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