Orfeu Negro ou Orfeu do Carnaval, dirigido por Marcel Camus nos transporta para um Rio de Janeiro pulsante, onde o Carnaval não é apenas uma festa, mas o coração de uma tragédia moderna. O filme, que adapta o mito grego de Orfeu e Eurídice para os morros cariocas, me envolveu com sua mistura única de exuberância e fatalidade. Vencedor da Palma de Ouro em Cannes e do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro, ele é um marco do cinema, mas também um retrato que, olhando hoje, revela tanto seus encantos quanto suas limitações. Para mim, é uma obra que brilha pela música, pela energia e pelas atuações, mas que às vezes tropeça ao tentar capturar a alma do Brasil com um olhar estrangeiro.
A história segue Orfeu (Breno Mello), um condutor de bonde e sambista carismático que encanta a todos com seu violão, e Eurídice (Marpessa Dawn), uma jovem que chega ao Rio fugindo de um passado misterioso. Eles se apaixonam durante o Carnaval, mas o destino — aqui personificado por uma figura sombria chamada Morte (Adhemar da Silva) — os persegue implacavelmente. O enredo é simples, quase mitológico, mas o que me pegou foi como Camus usa o Carnaval como um palco vibrante para essa dança entre amor e tragédia. As cenas dos ensaios de escola de samba, dos blocos e da favela me fizeram sentir a alegria caótica da festa, enquanto a inevitável morte de Eurídice e o desespero de Orfeu me acertaram como um soco no estômago.
Visualmente, Orfeu Negro é um espetáculo. A fotografia de Jean Bourgoin captura o Rio em technicolor glorioso — os morros verdes, as fantasias coloridas, o sol queimando as ruas. Eu fiquei hipnotizado pela forma como a câmera acompanha os movimentos frenéticos do Carnaval, quase como se dançasse junto com os personagens. A trilha sonora, com composições de Luiz Bonfá e Tom Jobim, é simplesmente mágica — “A Felicidade” e “Manhã de Carnaval” grudaram na minha cabeça por dias, carregando toda a melancolia e o calor da história. É impossível não sentir o poder da bossa nova nascendo ali, uma revolução musical que o filme ajudou a levar pro mundo.
As atuações também marcaram. Breno Mello, que não era ator profissional, traz uma naturalidade magnética como Orfeu — ele é o cara que todo mundo quer por perto, com um sorriso que ilumina e uma tristeza que corta fundo quando tudo desmorona. Marpessa Dawn, americana com ascendência afro-caribenha, dá a Eurídice uma fragilidade doce, mas com um brilho nos olhos que me fez torcer por ela, mesmo sabendo o fim. Lourdes de Oliveira, como Mira, a ex-namorada ciumenta de Orfeu, rouba cenas com uma paixão explosiva que dá um tempero a mais à trama. O elenco, majoritariamente negro e brasileiro, é um ponto forte, mostrando rostos e corpos reais da favela, algo raro pra um filme da época.
Um detalhe que me chamou atenção em Orfeu Negro foi o leve, mas intrigante, subtexto queer que surge em alguns momentos, mesmo que não seja o foco da trama. O Carnaval, com sua explosão de liberdade e subversão, abre espaço pra leituras além do romance central entre Orfeu e Eurídice. Por exemplo, as figuras dos dançarinos e foliões, com suas fantasias extravagantes e gestos exagerados, flertam com uma ambiguidade de gênero que ecoa a cultura queer — algo que o filme não explora diretamente, mas que eu senti nas entrelinhas. A própria relação de Orfeu com a música e sua aura quase mítica tem um tom de sensualidade fluida, que transcende o heterosexual normativo, especialmente na forma como ele encanta a todos ao seu redor. Claro, sendo um filme de 1959, isso fica mais na sugestão do que na afirmação, mas pra mim, esse aspecto sutil reforça como o Carnaval é um terreno fértil pra identidades que desafiam regras, dando um charme extra à visão de Camus sobre o Brasil.
Mas nem tudo me convenceu. Como francês, Camus às vezes parece mais encantado com uma ideia romantizada do Brasil do que com sua realidade. O filme pinta a favela como um lugar exótico, quase mítico, cheio de música e dança, mas ignora as durezas da vida ali — a pobreza e a violência mal aparecem. Isso me deixou com a sensação de que ele viu o Carnaval e o povo brasileiro com lentes de turista, querendo capturar a "alma selvagem" sem entender os tons mais profundos.
Ainda assim, Orfeu Negro me conquistou. Talvez seja pela forma como ele transforma o mito em algo tão brasileiro — o Orfeu de Camus não desce ao Hades, mas carrega o corpo de Eurídice morro acima, numa cena que me arrepia só de lembrar. Ou talvez seja o Carnaval em si, que pulsa como um personagem vivo, misturando festa e fatalidade num só batuque. Pra mim, o filme é encantador — uma carta de amor ao Brasil que, mesmo com seus deslizes, acerta em cheio ao mostrar como o amor e a morte dançam juntos na cadência do samba.
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